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A CRIAÇÃO DO OUTRO: UMA PERSPECTIVA CONTEMPORÂNEA SOBRE A

3.5.1 A prática representacional de uma outra sociedade

Para a questão comparativa das imagens do discurso escrito dos primeiros relatos de viagem sobre o Novo Mundo faremos um diálogo entre Léry, Tzvetan Todorov – historiador, filósofo e linguísta – e as reflexões sobre mimese e representação de Michel Foucault.

A discussão tratará das reciprocidades do pensamento de Todorov, acerca da investigação da questão da assimilação cultural do outro como dispositivo de controle do corpo social Tupinambá, a saber: a problemática do outro exterior – outra sociedade sob uma perspectiva histórica mais moral, no sentido ético, mais do que metodológico e teórico. Todorov aborda uma perspectiva ética para sua investigação. Detém-se numa reflexão sobre os signos, a interpretação e a comunicação na relação com o outro. A questão fundamental de Todorov é responder “como se comportar em relação a esse outro?”

Mas o que é isso? O outro? Falar sobre a ideia de um outro é assunto imenso para Todorov. Ele faz o recorte da problemática do outro exterior, uma outra sociedade para conhecer o outro:

[…] uma outra sociedade que, dependendo do caso, será próxima ou longínqua: seres que em tudo se aproximam de nós, no plano cultural moral, e histórico, ou desconhecidos, estrangeiros cuja língua e costumes não compreendo, tão estrangeiros que chego a hesitar em reconhecer que pertencemos a uma mesma espécie.279

279 TODOROV, 2011, p. 3-4.

Para conhecer o outro, ele escolhe os relatos espanhóis sobre a descoberta e a conquista da América Espanhola, que contam os cem anos da descoberta, isto é, o século XVI. A razão dessa escolha é a do mundo da descoberta do outro, a história do encontro do outro americano que, para ele, é o encontro mais surprendente da história ocidental. Todorov sugere que há, na história da descoberta desse continente e desse outro, a emergência do sentimento mais radical de estranheza (do outro) dos acontecimentos dos encontros entre povos. Em suas palavras, “O século XVI veria perpetrar-se o maior genocídio da

humanidade na ação da Conquista da América […].”280

Por outro lado, nosso recorte do outro traz o relato da conquista do Brasil na escrita do viajante Jean de Léry, protestante, que vem, brevemente, participar da tentativa de conquista francesa, a França Antártica, no ano de 1555, portanto, cinquenta anos após a descoberta. Além da reciprocidade com a perspectiva que utilizamos na investigação das políticas do corpo no relato de Léry, a complementaridade da análise de Todorov sobre o primeiro relato do encontro, amplia a reflexão sobre a produção do discurso de Léry, inserindo-o na reprodução e circulação do capital mimético do século XVI.281

Em Possessões Maravilhosas, Greenblatt demonstra que o registro do discurso da descoberta é um registro vigoroso das reinvindicações e dos limites característicos da prática representacional européia.282 O discurso da representação nos múltiplos locais e o movimento de reprodução entre o meio produtor e a multidão dos leitores e ouvintes sugerem que o problema da assimilação do outro está ligado à reprodução e à circulação do capital mimético: “Desejo, isso sim, enfatizar os múltiplos locais da representação e o vaivém da multidão em meio a eles, pois sugerem que o problema da assimilação do outro está ligado ao que poderemos chamar, adaptando Marx, a reprodução e a circulação do capital mimético”.283

As respostas dos europeus ao Novo Mundo, no âmbito do emprego da tecnologia simbólica,284 considerando a dimensão geral européia, servia mais à ação sobre o outro do que ao conhecimento do outro. No encontro entre europeu e americanos, nas palavras de Greenblatt, “nada há na tecnologia simbólica disponível de ambos os povos que fosse capaz

280 TODOROV, 2011, p. 7, grifo nosso. 281 GREENBLATT, 1996, p. 22. 282 Ibid., 1996, p. 41.

283 Ibid., 1996, p. 22. 284 Ibid., 1996, p. 30.

de determinar um maior ou menor acesso à verdade das coisas Portanto o que movia a construção sobre o outro não era a razão mas a imaginação.”285

Na prática representacional europeia do Novo Mundo, as imagens que têm poder de

reprodução são as que têm poder de capital. Há uma conexão vital entre capital e mimese:

a proliferação e a circulação de representações ganham magnitude com o interesse em ultrapassar distâncias, como no caso da distância entre Europa e América, antes inimaginadas, para atingir “lucros, descobrir e representar objetos naturais e humanos radicalmente exóticos”.286

O capital mimético se relaciona com a ação de acumular representações de um conjunto de imagens e equipamentos geradores de imagens, que se acumulam e são depositados em livros, arquivos, coleções, pinturas, enfim, em todos os meios de comunicação pertinentes à época da descoberta e conquista do Novo Mundo. Que são utilizados até o momento em que essas representações são requisitadas para gerar novas representações.287 Portanto, as imagens que têm poder de capital “são as dotadas de poder de reprodução, que se sustentam e se multiplicam transformando contatos culturais em formas novas e não raro inesperadas.”288

Neste caso, a mimese seria uma relação social de reprodução, na qual uma representação, além de ser reflexo ou produto de relações sociais, seria

[…] também uma relação social em si mesma, ligada à compreensão grupal, às hierarquias, às resistências e aos conflitos existentes em outras esferas da cultura nas quais ela circula. Ou seja, as representações não são só produtos, são igualmente produtores capazes de modificar decisivamente as próprias forças que lhes dão nascença.289

Essa qualidade de circulação e proliferação das imagens, construídas ou imaginadas ao longo do encontro com as sociedades do continente Americano, vão constituindo um imaginário do maravilhoso e do estranhamento sobre as novas culturas relatadas no discurso escrito dos viajantes. Neste espaço de rede, o paradoxo da razão e da imaginação se conectam ao sentimento de superioridade do europeu:

285 GREENBLATT, 1996, p. 29. 286 Ibid., 1996, p.22. 287 Id. 288 Id. 289 Ibid., 1996, p. 22-3.

Às vezes é difícil especificar as fontes desse senso de superioridade, embora a convicção que os cristãos tinham de estar na posse de uma verdade religiosa absoluta exclusiva deva ter desempenhado um papel de destaque, virtualmente em todos os seus contatos culturais.290

É o domínio europeu da escrita, a vantagem de escrever, que pode registrar, preservando e reproduzindo. Há, aí, um componente narscisista que sempre está presente por trás da palavra da pessoa que escreve, os que escreveram livros, nas palavras de Greenblatt:

[…] que nos legaram testemunhos, esses viam a escrita como uma marca decisiva de superioridade. Deus deu ao homem a razão e a fala, escreve Purchas, dom duplo que está além da capacidade de qualquer outra ‘criatura sensível’. O sentido do dom duplo está na graça de dois dons: a escrita baseada na razão e o dom do homem ser superior às Bestas. E agora os homens civilizados, mais sociáveis e religiosos e que tem o dom do uso da letra e da escrita, esses podem exeder aos outros homens sem escrita, bárbaros, selvagens e brutos (GREENBLATT, 1996, p. 26).

Torrão Filho,291 ressalta que a narrativa de viagem é uma retórica da alteridade que implica o desejo de conhecer o outro e, por conseguinte, a si mesmo. Por isso, o discurso do texto viático “é uma operação de tradução: visa a transportar o outro ao mesmo (tradere) - constituindo, portanto uma espécie de transportador da diferença.”292

290 (GREENBLATT, 1996, p. 26).

291 TORRÃO FILHO, 2010, p. 55.

292 HARTOG, François. O Espelho de Heródoto. Ensaio sobre a representação do outro. Apud TORRÃO FILHO. Arquitetura da alteridade. A cidade luso-brasileira na literatura de viagem (1783-1845). Belo Horizonte: UFMG, 1999, p. 251-2, cap. I.

3.5.2 Mimesis e representação nos relatos de viagem – a categoria do comentário

Para a reflexão sobre mimese e representação no discurso escrito, utilizamos a arqueologia da teoria da representação de Michel Foucault. Em As Palavras e as Coisas, Foucault afirma que, no Ocidente, a linguagem do Renascimento “estava numa postura de pérpetuo comentário”,293 a representação na linguagem supunha o mundo como um entrelaçamento de marcas e palavras:

Em relação a si mesma, a linguagem do século XVI estava numa postura de perpétuo comentário: ora, este só pode exercer-se se houver linguagem – linguagem que pré existia silenciosamente o discurso pelo qual se tenta fazê-la falar; para comentar, é preciso a antecedência absoluta do texto; e inversamente, se o mundo é um entrelaçamento de marcas e de palavras, como falar dele senão sob a forma de comentário? 294

Na linguagem do Renascimento, encoberta pelo enigma da marca, o papel do comentário na representação é o de decifrar o propósito enigmático “que está oculto sob seus signos.”295 O comentário é a forma visível da descoberta de um conteúdo oculto. O saber do Renascimento se dispunha segundo um espaço cerrado, a forma secreta do saber se projetava na superfície das configurações sociais. O papel do saber era o de

[…] fazer falar as siglas mudas: visava reconhecer-lhes formas, interpretá-las e transcrevê-las em outros traços que, por sua vez, deviam ser decifrados; de tal sorte que nem mesmo a descoberta do segredo escapava a essa ardilosa disposição que a tornava a um tempo tão difícil e tão preciosa.296

No Renascimento, similitude e signo se interpelam. A similitude é o domínio do conhecimento. A organização do sistema dos signos é ternária, apela

[…] para o domínio formal das marcas, para o conteúdo que se acha por elas assinados e para as similitudes que ligam as marcas às coisas designadas; porém como a semelhança é tanto a forma dos signos quanto o seu conteúdo, os três elementos distintos dessa distribuição se resolvem numa figura única.297

293 FOUCAULT, op. cit., 2011, p. 109. 294 Id.

295 Id.

296 Ibid., FOUCAULT, 2011, p. 123. 297 Ibid., FOUCAULT, 2011, p. 58.

Esse jogo na experiência da linguagem faz nascer duas outras formas do discurso: o comentário e o abaixo o texto. O “comentário retoma os signos dados com um novo propósito e, abaixo, o texto, cujo comentário supõe a primazia oculta por marcas visíveis a todos.”298

Há a interdependência da linguagem e do mundo, e a escrita configurava uma camada uniforme em que o visto e o lido, o visível e o enunciável se entrecruzavam indefinidamente:

Saber consiste, pois, em referir a linguagem à linguagem. Em restituir a grande planície uniforme das palavras e as coisas. Em fazer tudo falar. Isto, é, em fazer nascer, por sobre todas as marcas, o discurso segundo o comentário. O que é próprio do saber não é nem ver e demonstrar, mas interpretar. Comentário das Escrituras, comentários dos antigos, comentário do que relatavam os viajantes, comentário das lendas e das fábulas; não se solicita a cada um desses discursos que se interpreta seu direito de enunciar uma verdade; só se requer dele a possibilidade de falar sobre ele. A linguagem tem em si mesma seu princípio interior de proliferação.299

3.6 O REGIME DOS SIGNOS NO SÉCULO XVI PARA CONHECER O MUNDO: O