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A CONSTRUÇÃO ANALÓGICA DO BOM E DO MAU SELVAGEM NA

Na perspectiva de Lestringant, a dimensão da religião cristã (protestante) projetada na cultura Tupinambá esbarra no impasse da questão da antropofagia do índio e da construção do mito do bom selvagem. De que modo a leitura de Léry trata esse impasse?

O tratamento apresenta o distanciamento em relação aos fatos e a visão se decanta e se ordena, se esquematiza. Em sua escritura, o canibal ganha a qualidade de símbolo, o que permite compreender, por analogia, a antropofagia que ocorre durante as revoltas religiosas na França. Léry, nessa releitura, enriquece as considerações e os usos simbólicos, apresentando duas modalidades principais: “Por um lado ele sistematiza a explicação pela vingança: por outro, ele faz do ato de comer um uso alegórico, esvaziando-o de seu conteúdo carnal e elevando-o a um sentido mais elevado”.235

No caso da interpretação do canibalismo Tupinambá como ato de vingança, ele empresta a formulação clássica: o ato de comer antropofágico é entendido como honra e coragem, o que não é estranho ao europeu. Léry descreve o canibalismo (fig. 7) compreendido

233 LESTRINGANT, 1999, p. 91.

234 Ibid., 1999, p. 90. 235 Ibid., 1999, p. 91.

como um ritual de vigança guerreira e não o simples fato de estar inserido na alimentação do Tupinambá, numa das passagens do texto encontramos sua leitura etnográfica do ritual:

Com efeito, estando eu numa aldeia chamada Sariguá, vi um prisioneiro lançar uma pedra com tanta violência na perna de uma mulher que supus have-la quebrado. Esgotadas as provisões de pedras e cacos e de tudo que o prisioneiro pode apanhar junto de si, o guerreiro designado para dar o golpe, e que permanecerá longe da festa, sai de sua casa, ricamente enfeitado com lindas plumas, barrette e outros adornos; e armado de um enorme tacape aproxima-se do prisioneiro e lhe dirige as seguintes palavras: ‘Não és tu da nação dos maracajás, que é nossa inimiga? Não tens morto e devorado aos nossos pais e amigos?’ […] o prisioneiro, mais altivo do que nunca, responde no seu idioma (margaiás e tupiniquins se entendem reciprocamente) pa, che tan tan ajucá atupavé – ‘Sim, sou muito valente e realmente matei e comi muitos’.236

Figura 7: Massacre du prisonnier.

Fonte: Jean de Léry, gravure da seconde edition, Genève, 1580. 237

236 LÉRY, 2007, p. 196. 237 GAMBINI, 2000, p. 115.

É nesse lugar da leitura etnográfica de Léry, que ele deixa o documento, que contribuirá para o trabalho dos antropólogos no processo do resgate da alteridade dos ameríndios, como vemos brilhantemente no trabalho de Viveiros de Castro. Léry percebe a alteridade do Tupinambá: comer seu semelhante humano não é uma questão de alimento. É uma necessidade simbólica de honra e coragem dessa sociedade, aí, a diferença entre ser canibal e ser antropófago.

Repetindo a síntese que desenvolvemos sobre a antropofagia Tupinambá,238 segundo Viveiros de Castro, a perspectiva indígena do rito do canibalismo – o rito do grande presente que perpetua o passado e o futuro –, sociedades sem escrita, como a dos Tupinambá, apreende sua memória na vingança guerreira. A vingança guerreira é a perpetuação da história, a memória. A boca canibal é provida de dentes, em vez de devorar, ela se limita a proferir.239 O prisioneiro profere sua “canção guerreira” no momento de sua morte, para perpetuar a vingança. Os discursos proferidos pelo matador e pelo que vai ser morto, produzem uma relação dialógica que perpetua a vingança:

A vingança não era uma daquelas tantas máquinas de abolir o tempo, mas uma máquina de produzi-lo, e de viajar nele(o que talvez seja o único modo de aboli-lo). Ligação com o passado, sem dúvida; mas gestação do futuro igualmente, por meio do grande presente do duelo cerimonial. Sem a vingança, isto é, sem os inimigos, não haveria mortos, mas tampouco filhos, e nomes, e festas. A carne que vai ser devorada não é um alimento mas um signo. O matador era o único a não comer a carne do inimigo. O discurso, “representação da vingança“, transformava num signo a carne que se ia consumir. O cozinheiro dialógico não provava dela.240

A comensalidade, a bebedeira e o riso da simbolização antropofágica do corpo do rito na festa da antropofagia dos Tupinambá, que Léry presenciou e documentou, foi utilizada pelos antropólogos para conhecer a sociedade indígena. Foi o Lévi-Strauss – que levava o livro de Léry no bolso, dizendo que era seu breviário –, o primeiro a tematizar a questão da corporalidade na América do Sul, em sua obra Mitológicas:

Uma obra monumental sobre a lógica das qualidades sensíveis, qualidades do

mundo apreendidas no corpo ou pelo corpo: cheiro, cores, propriedades

sensoriais e sensíveis. Ele ali demonstrava como era possível a um pensamento

238 Ver p. 31 dessa dissertação.

239 LESTRINGANT, Frank. Le cannibalisme des cannibales. Bulletin de la societé dês anms de Montaigne, 1982, 9/10, p. 27-40

articular proposições complexa sobre a realidade a partir de categorias muito próximas da experiência concreta.241

No documento etnológico de Léry está registrada uma das dimensões dos primeiros encontros europeu/índio com a antropofagia. Segundo o que o próprio Léry presenciou corporalmente, mesmo que como obsevador:

Todas as aldeias circunvizinhas são avisadas do dia da execução e breve começam a chegar de todos os lados homens, mulheres e meninos. Dançam o cauinam. O próprio prisioneiro, apesar de não ignorar que a assembléia se reúne para seu sacrifício dentro de poucas horas, longe de mostrar-se pesaroso enfeita-se todo de penas e salta e bebe como o mais alegre dos convivas. Depois de ter comido e cantado durante seis ou sete horas com os outros, ele é agarrado por dois ou três personagens mais importantes dos bandos e sem que oponha a menor resistência, ele é amarrado pela cintura com cordas de algodão ou de fibra de uma árvore a que chamam vyre, semelhante à nossa tília. Deixam-lhe os braços livres e o fazem passear assim pela aldeia, em procissão, durante alguns momentos. Não se imagine porém que o prisioneiro com isso se deprime. Ao contrário, com audácia e incrível segurança jacta-se das suas proezas passadas e diz aos que o mantém amarrado: ‘Também eu, valente que sou, já amarrei e matei vossos maiores’.242

Figura 8: Ilustração de Theodore de Bry, 1592. Fonte: GAMBINI, 2000, p. 115.

241 LESTRINGANT, 1982, p. 27-40. 242 LÉRY, 2007, p. 193-4.

À dimensão alegórica da vingança, Léry justapõe a analogia do bom canibalismo e do mau canibalismo, adentrando na comparação entre o canibalismo Tupinambá e o dos Outecas, expondo uma série de tipologias comparativas que culmina na questão do cru e do cozido:243 os Ouetacas seriam bárbaros, praticam canibalismo comendo a carne crua para se alimentar. Os tupinambas cozinham a carne e a consomem para vingar-se. O ato do cozimento afasta a condição de bárbarie, tornando o Tupinambá homem selvagem, ou bom selvagem, e os Ouetacas selvagens animais, ou mau selvagem.

Entretanto, a analogia ganha complexidade na dimensão religiosa de Léry, calvinista. A leitura se desdobra numa estratégia de recusa à condenação do canibalismo Tupinambá, que vai urdindo longa teoria de exemplos de outras práticas canibais, que se extende desde a interpretação da Eucaristia pelos católicos da França Antártica, passando pela analogia dos judeus:

‘Canibalismo dos judeus nos templos de Trajano’, as ‘crueldades execráveis de Amurat e Mechmet’, segundo Calcondílio, aquelas de Vlad III, chamado Drácula, e os horrores das guerras de religião anteriomente listadas na História eclesiástica

francesa de Teodore de Beza. A enumeração encerra-se com um ‘tríptico canibal’, no qual a litânia dos suplícios precedentemente evocados ocupa o lugar no triplo cenário simultâneo das carnificinas brasileira, turca e francesa, exibindo à saciedade peças de carne humana e troncos mutilados.244

Léry construirá uma representação do canibalismo que o “representa além do que ele é”.245 O viajante se dedica à estratégia de construção continua, acrescentando sempre novas ilustrações, “em vez de falar dos canibais do Brasil e do caráter específico de seus ritos sangrentos, ele nos entretém com todas as violências, das quais a história pode nos dar testemunho.”246

Assim, a representação do canibalismo Tupinambá ganha analogia paradoxal: a recusa do canibalismo Tupinambá, quando comparada à da história das guerras de religião na França de Léry, e dos povos da antiguidade, que apaga a imagem de bárbaro do Tupinambá e realoca a imagem do selvagem, transformando-a na do bom selvagem:

[…] esse canibalismo, que estava em parte nenhuma, está em todas as partes. […] Léry, por antecipação, levou esse raciocínio até as últimas consequências. Não estando lá, onde pensávamos encontrá-lo, entre os mais bárbaros dentre os bárbaros,

243 LESTRINGANT, 1977, p. 103-119. 244 Ibid., 1997, p. 111.

245 Ibid., 1977, p. 103-119. 246 Ibid., 1977, p. 111.

o canibalismo estava em todas as outras partes, mesmo entre pretensos cristãos, até no próprio seio da comunidade reformada. Ao longo de sua tumultuada vida, Léry fez dele uma amarga experiência.247

Nas considerações de Viveiros Castro, o núcleo duro248 do índio é que ele não abre mão de sua cultura – a guerra, a nudez e o canibalismo. No discurso da Histoire, durante o relato do capítulo sobre a religião dos selvagens, Léry deixa entrever a inconstância da alma selvagem249 ao dizer que o selvagem é bom, mas insalvável. A resistência que o corpo do índio opõe à tentativa de redução intelectual, ou simbolização como aprisionamento do outro, é percebida por Léry. O viajante nota a resistência, mas ele a captura na estetização do corpo e em sua perspectiva teológico-política.

O que podemos perceber é que, na construção analógica de Léry, a reflexão que está presente o tempo todo no decorrer de sua leitura é a imagem de bom cristão. O interesse de seu olhar é a cristianização reformada. Nesse procedimento, Léry deixa sua contribuição para o enfraquecimeno e o esvaziamento da alteridade dos Tupinambá.

Se a assimilação da cultura indigena é para fazer virar o mesmo, a alteridade não seria antropofagizada?

No tratamento de Léry há a tessitura da oikonomia (disposito do latim),250 que, segundo Agamben, é o dispositivo de controle dos teólogos:

Os teólogos se habituaram pouco a pouco a distinguir entre um ‘discurso – ou logos – da teologia’ e um ‘logos da economia’, e a oikonomia torna-se assim o dispositivo mediante o qual o dogma trinitário e a idéia de um governo divino e providencial do mundo foram introduzidos na fé cristã. Mas, como frequentemente acontece, a fratura que os teólogos procuraram deste modo evitar e remover em Deus sob o plano do ser reaparece na forma de uma cesura que separa em Deus ser e ação, ontologia e praxis. A ação (a economia, mas também a política) não tem nenhum fundamento no ser: esta é a esquizofrenia que a doutrina teológica da oikonomia deixa como herança à cultura occidental.251

247 LESTRINGANT, 1997, p. 111.

248 BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012, p. 215-16: “[...] a identidade de uma sociedade tem raízes, em última instância, numa rede mais ou menos invariante de relações sociais; a natureza “societal” da sociedade consiste acima de tudo numa teia de interdependências desenvolvida e sustentada pela e na interação humana. As relações sociais são elas próprias o “núcleo duro”da interação concreta (tal como a estrutura social é o núcleo duro da organização social – da “forma como as coisas são feitas na comunidade ao longo do tempo”). Elas são o esqueleto permanente, duradouro, pouco sujeito a mudanças, da prática societal, são padrões, o fulcro de estabilidade num casulo de eventos flutuantes.”

249 VIVEIROS DE CASTRO, 2011, p. 183-264. 250 AGAMBEN, o. cit., 2009, p. 37-40.

Agamben utiliza a oikonomia como um conjunto de praxis, saberes, medidas, instituições, cujo objetivo é gerir, governar, controlar e orientar, num sentido que supõe útil, os gestos e os pensamentos dos homens.252 É nesse sentido da oikonomia que fazemos a pergunta: como se deu a praxis religosa da catequese do povo Tupinambá?