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POLÍTICAS DO CORPO NO BRASIL DO SÉCULO XVI – A CRIAÇÃO DO OUTRO MESTRADO EM HISTÓRIA

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

MARIA CRISTINA PEREIRA BRANDINI

POLÍTICAS DO CORPO NO BRASIL DO SÉCULO XVI – A CRIAÇÃO DO OUTRO

MESTRADO EM HISTÓRIA

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

MARIA CRISTINA PEREIRA BRANDINI

POLÍTICAS DO CORPO NO BRASIL DO SÉCULO XVI – A CRIAÇÃO DO OUTRO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em História, sob a orientação do Prof. Dr. Amilcar Torrão Filho.

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BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________ Prof. Dr. Amilcar Torrão Filho

__________________________________________________ Prof. Dr. Helena Katz (PUC)

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nós (nos) apagamos

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AGRADECIMENTOS

Aos meus mestres, que me conduziram ao caminho da pesquisa do corpo que dança Klauss Vianna, Maria Duschenes, Berta Vishnivetz e Mat Mattox.

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O objeto desta dissertação é a questão do corpo Tupinambá no olhar do viajante Jean de Léry, em sua escrita Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil, ou seja, o relato de um viajante do século XVI sobre o encontro com o Novo Mundo e sua contribuição para a construção do corpo indígena brasileiro.Abre-se, assim, uma discussão sobre a possibilidade de controle, ou domesticação do corpo Tupinambá, que estaria nas entrelinhas da escrita conquistadora. Assim como a contribuição de Léry para engrossar a construção de um imaginário verbal sobre esse corpo social-outro nos primórdios do Brasil e de suas continuidades no contemporâneo. Ainda, a escrita recebe um tratamento de agente nos mecanismos de domesticação e conquista dos europeus na questão da construção do corpo selvagem, mais especificamente, no que envolve entendimentos de corpo que inauguram o conceito de modernidade no discurso escrito da literatura de viagem do século XVI. Fato que possibilita reflexão sobre a historicidade do corpo moderno dada pelo descobrimento do Novo Mundo. O processo de investigação leva a questão da normatização do corpo ocidental, bem como ao encontro de outras “realidades”, na relação entre corpo e sociedades que se chocam pelo inesperado e se distanciam pela impossibilidade de compreensão. Um jogo de assimilações e resistências emerge das políticas do corpo praticadas entre “civilizado e selvagem”. O aporte teórico para esta investigação historiográfica põe Léry num diálogo transdisciplinar com Michel de Certeau, Frank Lestringant e Tzvetan Todorov, para tratar do encontro com o Tupinambá no século XVI. Lançamos mão, também, no intuito de entendermos a corporalidade Tupinambá, do estudo do antropólogo Viveiros de Castro que pesquisou a tribo dos Araweté da Amazônia, último reduto dos Tupinambá no século XXI. O estudo dos autores citados encaminhou a pesquisa para discussões específicas, a saber: o estado de exceção instaurado durante o período da conquista e suas conseqüências na formação do imaginário e nos modos como o corpo foi simbolizado, traços que se estendem até a contemporaneidade.

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The focus of this dissertation is the question of Tupinambá’s body through the Jean de Léry ‘s traveller seeing, in his writ, Histoire d’un Voyage faict en la terre du Brésil, in other words, the traveller narration of the XVI century about the meeting with the New World and his contribuition for the body construction of the brasilian indian, the other. Opening in that way a discussion about the possibility of a control action or a domestication of the Tupinambá social body that could be hidden in Léry’s writ with the intention for conquest. And even the dimension of Léry’s contribuition for the construction through the verbal imagery about the indian social body during the begining of Brasil history and its continuities on ours contemporary time. And how this writ takes a handling of agent into the domestication mechanisms and european conquest on the question of the savage body construction. Particularizing what is envolving on the body knowledges that opening the modern concept found in the discourse of the traveller literature writing of the XVI century. A reflextion about a modern body historicity is opening with the New World discovery and how the process investigation lead to the question of the occidental body normatization, as well, to the meeting of others realities that concern about the relation between body and society, that promote a reation for separation and crash because of the unexpected and the impossibility of understanding the unknown. A game of assimilations and resistances emerges from the body policy executed between “civilized and savage”. The theoretical matter for this historygraphy investigation puts Léry into a dialogue between Michel de Certeau, Frank Lestringant and Tzvetan Todorov, upon the academic treatment about the meeting with the Tupinambá during the XVI century. We’ll take too the study of the brazilian antropologist Eduardo Viveiros de Castro, who investigates the Araweté tribe of Amazônia, the last Tupinambá survivors during the XXI century. These authors refletion indicates a investigation that open specifics discussions: a brasilian state of exception established during the conquest period and his consequences above the construction of a imaginary ontology about the brasilian indian and in the manner how the savage body was simbolized, vestiges that are extended to the contemporary time.

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LISTA DE FIGURAS E ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Dois mundos se encontram: O encontro dos europeus e os índios brasileiros... p. 28 Figura 2 O explorador Vespúcio diante da índia que se chama América ... p. 34 Figura 3 A Melancolia I, Albrecht Dürer, 1514... p. 42 Figura 4 The Fall (Adam and Eve), Lucas Cranach, the Elder, 1510-20... p. 58 Figura 5 The Golden Age, Lucas Cranach, the Elder, 1530... p. 60

Figura 6

Bacchantes brésiliennes agitant des maracás. Antoine Jacquard, Les Divers Pourtraits et figures faictes SUS les meurs des habitants du Noveau Monde,(?), circa 1620... p. 62 Figura 7 Massacre du prisonnier... p. 71 Figura 8 Theodore de Bry, 1592 …... p. 73 Figura 9 L’Enfer au Brésil, avec bradypes et poisons volants, 1580…... p. 79

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 13

CAPÍTULO I ... 23

1 POLÍTICAS DO CORPO EM LÉRY? ... 23

1.1 NOVO MUNDO E O OUTRO NO DISCURSO ESCRITO DOS VIAJANTES DO SÉCULO XVI ... 23

1.1.1 As dimensões da Escrita Conquistadora do Novo Mundo – A Colonização do Corpo no discurso para conhecer o outro ... 23

1.2 A CONDIÇÃO SENSÍVEL DO APAGAMENTO: SER SELVAGEM ... 35

1.3 MELANCHOLIA – O PRAZER DE VER ... 40

CAPÍTULO 2 ... 44

2 A ESTETIZAÇÃO DA NUDEZ TUPINAMBÁ ... 44

2.1 O OLHAR DE LÉRY E A DIMENSÃO QUE SUA ESCRITA ESTABELECE COM A CONSTRUÇÃO DO CORPO TUPINAMBÁ ... 44

2.2 A NUDEZ TUPINAMBÁ VISLUMBRADA NA PERCEPÇÃO DO VIAJANTE ... 45

2.3 A ESTETIZAÇÃO CRISTÃ – O CONTROLE DAS REPRESENTAÇÕES DO CORPO NU NA PINTURA RENASCENTISTA ... 52

2.4 A ESTETIZAÇÃO DO SELVAGEM NA ESCRITA CONQUISTADORA EM LÉRY . 60 CAPÍTULO 3 ... 67

3 ANTROPOFAGIAS – A ESCRITA, UM RITUAL ANTROPOFÁGICO ... 67

3.1 A PERSPECTIVA “ANTROPOFÁGICA” – ANALOGIA E DIFERENÇA ... 67

3.1.1 O Mesmo: uma visão de mundo que destitui a alteridade indígena ... 67

3.2 A CONSTRUÇÃO ANALÓGICA DO BOM E DO MAU SELVAGEM NA RESOLUÇÃO DO IMPASSE DO CANIBALISMO ... 70

3.3 A PRAXIS RELIGIOSA DA CATEQUESE DO SELVAGEM ... 76

3.4 AMÉRICA PARAÍSO E AMÉRICA INFERNO ... 79

3.5 A CRIAÇÃO DO OUTRO: UMA PERSPECTIVA CONTEMPORÂNEA SOBRE A QUESTÃO DO ESTADO DE EXCEÇÃO NO NOVO MUNDO ... 84

3.5.1 A prática representacional de uma outra sociedade ... 84

3.5.2 Mimesis e representação nos relatos de viagem – a categoria do comentário ... 88

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3.7 ESCRAVIZAR – A POSSE DO CORPO DO OUTRO ... 92

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[...] fechamos o corpo como fechamos um livro

por já sabê-lo de cor

Fechando o corpo como quem fecha um livro em língua desconhecida e desconhecido o corpo desconhecemos tudo.

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INTRODUÇÃO

O imaginário sobre a sociedade indígena se construiu numa rede de imagens que transcorria nas tensões entre o controle europeu e a resistência do brasileiro, manifestada na escrita de relatores da corte, viajantes, missionários da catequese, legisladores do império, antropólogos e historiadores modernos. As imagens de docilidade, inconstância, nudez, canibalismo, lascívia, guerras de vingança, demonização, paraíso,1 exotismo do selvagem, do bárbaro, dos filhos de Can,2 entre muitas outras, formam o construto do controle e da posse da terra e dos corpos (animais, plantas e o homem).

O imaginário da terra esquecida por Deus, último reduto do demônio, onde viviam os homens sem fé, sem lei, sem posse, sem rei e sem escrita, legitimou a barbárie, desde o início da história do Brasil, aplicada aos corpos indígenas pela violência da catequese, da escravidão, da matança e da expulsão do seu território.

Na criação do outro, a rede de imagens que se construiu sobre a cultura indígena legitima a continuidade da barbárie sobre os corpos indígenas e sua condição de matabilidade? Quando nos deparamos com as notícias de jornal, na contemporaneidade brasileira, como, por exemplo, o fato ocorrido em Brasília na noite do dia 20 de abril de 1997, em que um índio Pataxó-hã-hãe foi barbarizado, tendo seu corpo queimado, vivo, por meninos brancos ricos, enquanto dormia num abrigo de ônibus, após as manifestações do Dia do Índio! Corpo bárbaro e matável?3 Os atores do assassinato afirmaram que confundiram o índio com um mendigo de rua!!! O que nos leva a pensar que ambos os corpos, índio e mendigo, são corpos descartáveis e matáveis?! Imaginário construído num processo de 500 anos de história do corpo do índio no Brasil e nas Américas.

1 TODOROV, Tzvetan. A conquista da América, a questão do outro. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2011,

p.21-2: “[...] a crença mais surpreendente de Colombo é de origem cristã: refere-se ao Paraíso terrestre. Ele leu no Imago Mundi de Pierre d’Ailly que o Paraíso terrestre devia estar localizado numa região temperada alem do equador. Não encontra nada durante sua visita ao Caribe; porém, de volta aos Açores declara: “O Paraíso terrestre está no fim do Oriente, pois essa é uma região temperada ao extremo[...]. Descobri que o mundo não era redondo da maneira como é descrito, mas mas da forma de uma pêra [...] sobre a qual, em um certo ponto, estaria algo como uma teta de mulher, e parte deste mamilo fosse a mais elevada e a mais próxima do Ceu, e situada sob a linha equinocial neste mar Oceano, no fim do Oriente (Carta aos reis, 31.8.1498).”

2 TODOROV, 2011, p. 12: “Colombo queria encontrar o Grande Can, ou imperador da China, cujo retrato

inesquecível tinha sido deixado por Marco Pólo. “Estou determinado a ir à terra firme e à cidade de Quisay entregar as cartas de Vossas Altezas ao Grande Can, pedir-lhe resposta e retornar com ela” (21.10.1492) [...] ainda de acordo com Marco pólo, “há muito tempo o imperador de Catai pediu Sábios para instruí-lo na fé de Cristo (Carta raríssima, 7.7.1503), e Colombo quer fazer com que ele possa realizar este desejo. A expansão do cristianismo é muito maia importante para Colombo do que o ouro [...].”

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Em Tristes Trópicos,4 o relato do viajante do século XX, Lévi-Strauss, assim como todos os relatos sobre o Novo Mundo, inicia com a travessia do Atlântico: O mar e o continente e, agora, as cidades. Porém, o Novo Mundo se tornou velho: a fauna mais escassa, pedaços da floresta e da flora que resistem à ausência dos perfumes do Éden e do índio e à presença do europeu.

Os trópicos são uma miragem pobre e sem consistência da materialidade da arquitetura das cidades e da cultura européia. A destruição do Novo Mundo e seus restos misturados com a modernidade de cenário. Modernidade que é uma colonização exploradora. Uma máscara de modernidade? E sempre as comparações aqui e lá: a inconstância da alma selvagem.5 Inconstância que se estende nas mudanças sem projeto de um progresso predador, que não fixa nada, e se aglutina numa massa arqueológica.

Devorando a materialidade do passado que só sobrevive pelo abandono e pelo esquecimento do espaço que já não serve mais. Espaço e sua gente de tetas secas. Lévi-Strauss é tomado de melancholia ao vislumbrar a paisagem dos trópicos, do Novo Mundo.

Melancholia por não poder ver o que os olhos de Léry viram na França Antártica e nas terras dos Tupinambá. Melancholia de perceber que só poderia ver os vestígios dessa terra e de seu povo nos cacos vermelhos-brancos-pretos da cerâmica Tupinambá, que resistem no lodo do manguesal da Baia de Guanabara. À la Léry, a escrita de Lévi-Strauss deixa transparecer a

melancholia das continuidades e dos apagamentos. Tristes trópicos? Ou a morte do exotismo, do Éden terrestre perdido? Sua escrita é um deslumbrante sambaqui da história do Brasil desde o descobrimento.

A melancholia do presente toma outras proporções que é a condição do contínuo

apagamento dos índios brasileiros, sua condição de matabilidade. E, agora, um acontecimento novo: o suicídio de adolescentes Guarani-Kaiowá. É a continuidade do processo de genocídio pela disputa dos recursos naturais no século XXI, que escorre pela mão do controle e aparece timidamente nos jornais:

[…] não seria necessária uma lupa sobre o povo Guarani-Kaiowá para constatar o processo de genocídio a que nas últimas décadas está submetida essa segunda maior população indígena do Brasil (43,3 mil, conforme o IBGE)? Segundo dados do Conselho Indigenista Missionário, entre 2003 e 2011, 279 pessoas do povo

4 LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras: 1996, p. 86-94.

5 Sobre a inconstância selvagem ver: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem.

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Kaiowá foram assassinadas. No mesmo período, a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) registrou 555 suicídios.6

Quando não suportam mais não pertencerem nem à sua cultura e nem à cultura ocidental, o suicídio é a única saída que esses adolescentes índios buscam, ou têm?

O objeto de pesquisa desta dissertação concentra-se na investigação sobre a emergência de ações de domínio, manipulação e controle sobre a construção do corpo social brasileiro, indígena, no século XVI. Sobretudo, no encontro entre franceses protestantes com os Tupinambá, percorrendo o que se evidencia na escrita dos relatos de viagem, ou na literatura de viagem, durante o período da descoberta; e trazermos uma reflexão sobre a tentativa de conquista da terra e dos habitantes deste Novo Mundo, o Brasil.

A fonte histórica, para este estudo, parte da literatura de viagem de Jean de Léry, na

obra Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil (1578). A viagem, como método de

conhecimento histórico, vem ganhando corpo na metodologia historiográfica.7 O historiador Torrão Filho, especialista em literatura de viagem concorda que o:

[...] deslocamento da viagem obriga à alguma forma de questionamento sobre o mundo, quando não é este questionamento mesmo que a provoca, sendo claro que as relações entre teoria, viagem e conhecimento são premissas subterrâneas da política ocidental e da teoria social desde a era clássica.8

Nas palavras de Torrão Filho: “Um viajante quase sempre tem projetos políticos, sociais ou filantrópicos, e os espaços exóticos são um campo fértil no qual eles podem teorizar a aplicação de suas ideias.”9

O texto do viajante Léry é emblemático, sendo considerado obra prima da literatura etnográfica por Lévi-Strauss.10 A construção do discurso de Histoire d’un voyage faict en la

terre du Brésil “não poderia ser mais moderna”, construído como primeiro modelo de

6 NAVARRO, 2012, p. 4.

7 TORRÃO FILHO, Amilcar. A arquitetura da alteridade. A cidade luso-brasileira na literatura de viagem

(1783-1845). São Paulo, Editora Hucitec; FAPESP, 2010, p. 286.

8 Idem.

9 Ibidem, 2010, p. 21.

10 LÉRY, Jean de. Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil, 1578. Paris, Librairie Générale Française,

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monografia de etnólogo contemporâneo11 que se propõe a apresentar ao leitor o conhecimento de outro espaço geográfico, o Brasil, e de outra sociedade, a Tupinambá.

O conhecimento deste outro através do viajante Léry é a descrição do que os olhos vêem e o que o ouvido escuta sobre “o meio, a vida material, a alimentação, a preparação dos alimentos, as relações familiares e de casamento, as crenças religiosas”12 que faz com que sua “experiência passar à frente das informações de segunda mão que ele vai recolhendo ao longo da sua estada no Brasil, e convivência com os Tupinambá.”13

Publicada em Genebra no século XVI, ano 1578, reeditada seis vezes ainda durante a vida de seu autor, a Historie d’un Voyage faict en la terre du Brésil de Jean de Léry,14 constitui fonte de peso para a análise dos primeiros encontros da sociedade moderna européia com os índios Tupinambá. Literatura de viagem considerada por Claude Lévi-Strauss uma escritura pré-etnográfica, seu breviário de etnólogo.

Militante calvinista e etnógrafo avant la lettre, Léry nasceu em La Margelle, nas vizinhanças da abadia de Saint-Seine de Borgonha, em 1534. Sua origem é discutida, mas parece ter pertencido a uma família burguesa de primeiros adeptos da Reforma, na Borgonha. Aos dezoito anos, encontra-se em Genebra, cidadela do protestantismo, seguindo os cursos de teologia e a pregação de Calvino.

Léry esteve no Brasil entre 1554 e 1555. Veio numa comitiva protestante, organizada por Calvino a pedido de Villegagnon, que pretendia fundar no Brasil a França Antártica, seu sonho de criar um império no Novo Mundo onde haveria diálogo entre protestantes e católicos. Sonho malogrado. O Vice–rei da França Antártica, Villegagnon, escreveu diretamente a Calvino, seu antigo condiscípulo na Universidade de Paris, comunicando o projeto de aumentar os recursos da colônia com a introdução de colonos livres e a concessão de liberdade religiosa, por meio da fundação de uma França americana e de um espaço de asilo para os franceses que desejassem gozar de liberdade de consciência, permanecendo fiéis à Metrópole.

11 LÉRY, 1994, p. 8.

12 Idem: “Le milieu, la vie materielle, la nourriture, la preparation des aliments, les relations de famille, les

marriages, les croyances religieuses...Je l ‘ai dejá écrit, je le répeté: il s’ agit vraiment lá du premier modele d’une monographie d’ethnologue.”

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Calvino acolheu a solicitação e organizou uma comitiva com 14 genebrinos, entre eles Léry, e dois pastores, Richier e Chartier. O interesse de Calvino era propagar a sua doutrina no Novo Mundo por intermédio do cavaleiro de Malta, Nicolau de Villegagnon.15

No prefácio de Léry, ele conta sobre o rompimento, a conseqüente perseguição de Villegagnon aos protestantes e como nosso viajante recebeu asilo dos Tupinambá. Léry conviveu com a sociedade indígena na baía de Guanabara durante seis meses, e escreveu sua experiência, publicada vinte anos depois em Genebra. No entreato da viagem ao Brasil e de sua volta à França, foi a Genebra a fim de completar sua formação e tornar-se pastor.

Em 1560 recebeu o título de burguês de Genebra e foi nomeado ministro, sendo enviado para Belleville-sur-Saône, perto de Lyon, onde dominavam os protestantes. Em 1562, Léry será inserido no meio da primeira das oito guerras civis religiosas francesas, em Beleville. Sua trajetória nômade, fugindo das vitórias francesas, o levou a Genebra em 1562, onde se refugiou. Em 1564 é nomeado ministro em Nevers e, em seguida, em La Charité. Durante a trágica Noite de Saint-Barthélemy, ainda se encontra em La Charité invadida e tomada pelo Duque de Nevers que trucidou 22 protestantes.

Escapou mais uma vez e se refugiou em Sencerre, lugar de resistência e refúgio para protestantes perseguidos das cidades de Bourges, La Charité, Gien, Orléans entre outras. Léry participou ativamente na resistência ao cerco de Sencerre, onde ensinou o corpo de guarda a usar as redes brasileiras, nas quais podiam repousar sem abandonar as armas.

Com a rendição de Sencerre, Léry é escoltado para Blet, cantão de Nerondes, Saint Armand, no Cher, sob a jurisdição do Sr. De la Chastre. Mais tarde retirou-se para Genebra, onde escreveu, em 1577, durante a sétima guerra religiosa, a Narrativa do cerco de Sencerre. Após o Édito de Nantes, encontrava-se em Berna, sua última residência, onde morreu em 1611, aos 77 anos.

A biografia do viajante Léry se desenvolveu num ambiente religioso e de guerras. Seu relato é dedicado à sua religião e à memória de sua experiência no Novo Mundo, em suas palavras:

A perpetuar a lembrança de uma viagem feita à America para estabelecer o verdadeiro serviço de Deus, entre os franceses que para aí se haviam retirado, como entre os selvagens que habitam esses países, estimei de meu dever levar à posteridade o nome daquele que foi o motivo da expedição. Em verdade, considerando que não houve em toda a antiguidade um chefe francês e cristão que estendesse o reino de Jesus Cristo, rei dos reis e senhor dos senhores, e os limites de

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seu príncipe soberano a pais tão longínquo, ninguém poderá exaltar demasiado uma tão santa e realmente heróica empresa16

A narrativa de viagem do genebrino, pastor protestante, Jean de Léry é dedicada ao Conde Francisco de Coligny, senhor de Chantillon, governador por graça do rei, da cidade de Montepellier que lhe dá proteção após o cerco de Sancerre durante as guerras religiosas na França do século XVI. (LÉRY, 2007, p. 16).

Num primeiro olhar, a intenção de Léry ao escrever, vinte anos depois, o que observou e anotou durante seu convívio com os Tupinambá, é contestar e defender os protestantes de acusações e calúnias do católico André Thévet,17 feitas, principalmente, em sua

Cosmographie Universelle escritaem 1575:

A fim de provar que tudo o que diz não passa de palanfrório e sem sequer considerar se viu ele os ministros do Brasil e muito menos ainda os crimes alegados na sua Cosmographia, impressa cerca de dezessete anos mais tarde, vemos pelo que afirma ele próprio em sua obra “Singularidades da America”que chegou a Cabo Frio a 10 de novembro de 1555 e quatro dias após ao rio Guanabara, na América, de onde regressou para a França a 31 de janeiro seguinte. Ora, como o mostrarei nesta narrativa, nós só chegamos ao forte de Coligny, no mesmo rio, em princípios de Março de 1557. Há treze meses, portanto, já aí não se encontrando, como pôde Thévet ser bastante ousado para escrever que nos viu?18

Assim, Léry dedica dezessete páginas do prefácio de seu livro a refutar mentiras e calúnias de Thévet sobre os acontecimentos da estada dos protestantes no primeiro Brasil francês e sobre os Tupinambá. Durante o tempo em que participou da convivência no projeto de Villegagnom, e em seguida a convivência com os Tupinambá, escreveu suas anotações sobre o que observou e viu sem a intenção de escrever um livro. Eram apenas informações, para Calvino, movidas pela curiosidade diante do novo.

Para a investigação histórica do objeto desta dissertação, que é a questão do corpo Tupinambá no olhar do viajante Léry em sua escrita da Histoire d‘un voyage faict en la terre du Brésil, utilizaremos o documento Léry da segunda edição da Histoire traduzida para o português por Sérgio Milliet.19 Nesta tradução há um Apêndice sobre a pesquisa do histórico

16 LÉRY, 1994, p. 106.

17 Angoulême de Thévet, cosmógrafo do rei Henrique II, companheiro de Villegagnon no Brasil e seu defensor

contra o partido protestante. Escreveu duas obras: Singularités de la France Antarctique em 1558, e

Cosmographie Universelle, em 1575.

18 LÉRY, 2007, p. 37.

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das edições da obra de Léry, feito por Paul Gaffarel,20 que traduziu e recompilou a segunda edição da obra de Léry, de 1580. Gaffarel fez um levantamento do histórico das edições e impressões do relato de Léry de 1578 à 167721 nas bibliotecas de Paris e da Província.22 Utilizamos, ainda, como suporte documental a edição francesa23 no original. As ilustrações da dissertação foram extraídas da tradução latina da coleção Grands et petits voyages, de Teodore de Bry.24

Léry escreve sua experiência de viagem ao Novo Mundo em pleno Renascimento. A

Histoire foi editada em 1577, após vinte anos de sua viagem ao Brasil, onde conviveu com os Tupinambá do Rio de Janeiro. Sua escrita não possui cunho literário, está livre dos cânones das belas-letras,25 entretanto, compromete-se com a verdade, ou melhor, com a veracidade, a razão no lugar da ficção,26 apresentando documentos, provas e gravuras em seu livro, que atestem a sua veracidade e não a de seu concorrente, o cosmógrafo francês, André Thévet e

sua Singularités de la France Antarctique. Angoulême de Thévet foi cosmógrafo do rei

20 LÉRY, 2007, p. 27.

21 Ibid., p. 27-9. Tradução e notas da segunda edição da obra de Léry, de Antoine Chupin, 1580, feita por Sérgio

Milliet; bibliografia de Paul Gaffarel; colóquio na língua brasílica e notas tupinológicas de Plínio Ayrosa; p. 27.

A primeira edição do livro traz o mesmo título da segunda edição, com as seguintes palavras a mais: Revista,

corrigida e bem aumentada nesta segunda edição, tanto em relação às gravuras como a outras coisas notáveis acerca do autor; foi impressa em 1578, por Antoine Chupin; A Segunda edição do documento Léry, foi impressa em Genebra, em 1580, por Antoine Chupin: Léry, Jean de. Narrativa de uma viagem feita à terra do Brasil, também dita America, contendo navegação e coisas notáveis vistas no mar pelo autor: a conduta de Villegagnom naquele país, os estranhos costumes e moda de vida dos selvagens americanos; com um colóquio em sua língua e mais a descrição de muitos animais, plantas e demais coisas singulares e absolutamente desconhecidas aqui, cujo sumário se verá dos capítulos no princípio do livro. Tudo colhido no

próprio lugar por Jean de Léry, natural de La Margelle, Saint- Seine, ducado de Bourgogne. Revista,

corrigida e bem aumentada nesta segunda edição, tanto em relação às gravuras como as outras coisas

notáveis acerca do autor; A terceira edição: Genebra, Antoine Chupin, 1585; A quarta edição: Genebra,

Herdeiros de Eustáquio Vignon, 1594; A quinta edição: Genebra, Herdeiros de Eustáquio Vignon, 1599; A

sexta edição: Genebra, Herdeiros de Eustáquio Vignon, 1600; A sétima edição seria de 1677, segundo Mnsel,

Biblioteca Histórica (t. III, parte II, p. 50). Garraux, A.L. (Bibliographie Brésilienne. Catalogue des ouvrages français et latins relatifs au Brésil - 1500/1898) refere-se a uma edição de 1611, de Jean de Vignon, Genève.

22 Ibid., p. 29.

23 LÉRY, op. cit., 1994. 24 Coleção dos

Grands et petits voyages de Teodoro de Bry. Francfort, 1592, terceiro vol. com o título:

Navigatio in Brasilian Americae, quae auctoris navigatio, quae memoriae prodenda in mari viderit,

Brasiliiensum victus et mores a nostri valdes aliem, animália incógnita describuntur: adiectus insuper

dialogus, eorum língua conscriptus; a Ioanne Lerio Borgundo Gallice primum scripta, deinde latinitate donata. Variic autem figuris illustrada per Theodorum de Bry. Francofurti Venales repeintur in officina Theodori de Bry. Apud MILLIET, Sérgio. In LÉRY, Jean. Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte, 2007, p. 27-9.

25 LÉRY, 2007, p. 50: “[...] Quanto ao estilo e à língua, bem sei que na opinião de muitos não terei as frases nem

os termos suficientemente adequados à descrição da arte da navegação ou às demais coisas por mim ventiladas. Os franceses, principalmente, não os acharão de seu gosto, pois, amantes que são das flores da retórica, só apreciam escritos em língua nova e poética [...].”

26 Id.: “[...] Menos ainda me será possível satisfazer os que julgam inúteis ou estéreis os livros que não

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Henrique II, que esteve na França Antártica e defensor de Villegagnom contra o partido protestante.

No prefácio da narrativa, Léry afirma seu objetivo de ser observador para descrever o Novo Mundo. A referência de Léry para a escrita em primeira pessoa, ou o uso do eu, não é por acaso, pelo contrário, é o testemunho ocular e da presença do observador diante do fato experenciado pelo viajante, que não se trata de ficção ou de imaginação.27

Torrão Filho, sugere que a literatura de viagem, ou o gênero viático, usada como fonte na operação historiográfica, constitui um gênero literário específico que se configura em uma poética, uma retórica e um estilo que lhe são próprios. 28 Na dimensão da retórica na escrita do viajante “a mediação da experiência pessoal seria uma das considerações de veracidade da literatura de viagem, e são esses dois aspectos aparentemente antinômicos, a fiabilidade e a liberdade do relatório, que dominam o gênero ao nível da retórica.”29

Lestringant afirma que no relato de Léry há um sentido e um valor de autopsia, ou ver por si mesmo, “c’est à dire de veue et d’experience”.30 Léry explica que o motivo do uso do

eu no desenvolvimento do seu relatoé o fato de estar presente no acontecimento. A presença física do escritor viajante é argumento da veracidade do que ele está contando ao leitor. No texto de Léry fica explicita a querela com Thevet.

Para Léry, o cosmógrafo do rei, Thevet, escreve ficção:31

Aliás, pergunto eu aos que lêem histórias diariamente impressas, de guerras ou outras, como exemplificações alheias, embora adaptadas ao assunto, se não as aborrecem, e se alguém alegar ter eu ao refutar aqui o Sr. Thévet cometido iguais erros e se me condenarem por usar da primeira pessoa ao descrever os costumes dos selvagens, responderei que se trata de coisas científicas, de experiências, de coisas que talvez ninguém tenha ainda tratado, não com referência não só à America em geral mas ao lugar em que residi durante quase um ano, sob o trópico de Capricórnio entre os selvagens Tupinambá. Finalmente, assegurando aos que preferem a verdade dita simplesmente à mentira bem vestida que aqui

encontrarão não fatos verdadeiros mas ainda dignos, muitos deles de admiração,

27 Cf.; LIMA, Luiz Costa. Trilogia do controle. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007, p. 234: “[...] é preciso que o eu

autoral testemunhe a veracidade de seu ato.”

28 TORRÃO FILHO, op. cit., 2010, p. 37.

29 GANNIER, Odile. La Littérature de Voyage. Paris: Ellipses, 2001, p. 36. In TORRÃO FILHO, 2010, p. 38. 30 A tradução “primeira pessoa”: não se refere a forma gramatical, mas a um eu autoral. Na segunda edição de

1578, em Frances, p. 98, não se encontra o termo gramatical primeira pessoa: “[...] si quelqu’un, di-je, trouve mauvais que, quand ci-apres je parleray de la façon de faire des suvages(comme si je me voulois faire valoir0 j’use si souvent de ceste façon de parler, Je vis, je me trouvay, cela m’advint, et choses semblalbles, je respon, qu’outre(ainsi qui j’ay touché) que ce sont matieres de mon prope sujet,[...] qu’encores, comme on dit, est-ce est-cela parlé de scienest-ce, c’est à dire de veue et de experienest-ce: voire diray des choses que nul n’a possible

jamais remarquées si avant que j’ay faict, moins s’en trouve-il rien par ecrit (LÉRY, 1994, p. 98, grifo

nosso).” A referência de Léry à escrita na primeira pessoa não é por acaso, muito pelo contrário, é o testemunho ocular e da presença do observador diante do fato experienciado.

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pedirei ao Senhor, autor e conservador de todo o universo, que faça com que esta pequena obraalcance bom êxito para a glória de seu Santo Nome. Amém.32

Segundo notas da segunda edição, sob coordenação de Lestringant, quanto à querela com Thévet, Léry se coloca na posição de topógrafo e não na de cosmógrafo como Thévet.33 No primeiro parágrafo do capítulo 1, Do motivo que nos levou a empreender esta longínqua viagem à terra do Brasil. Na ocasião em que a fizemos, Léry ressalta seu comprometimento com a veracidade e a neutralidade de seu testemunho:

Como alguns cosmógrafos e historiadores de nosso tempo já escreveram acerca de dimensões, formosura e fertilidade desta quarta parte do mundo, chamada América ou terra do Brasil, bem como a respeito das ilhas e terras adjacentes, inteiramente desconhecidas dos antigos, e de várias navegações que para aí se fizeram nestes primeiros oitenta anos decorridos desde seu descobrimento, não me deterei nestas generalidades; minha intenção e meu objetivo serão apenas contar o que

pratiquei, vi, ouvi e observei, quer no mar, na ida e na volta, quer entre os

selvagens americanos com os quais convivi durante mais ou menos um ano (LÉRY, 2007, p. 53, grifo nosso).

O viajante europeu diante das terras do Novo Mundo

[...] leva em toda a sua bagagem, além de toda a Europa materializada em ideal, os cadernos onde vai relatar suas experiências vividas em terras estranhas, bem como a experiência e a autoridade de outros autores lidos antes de sua viagem, ou mesmo durante su deslocamento, como guias de trajeto.34

A querela Léry-Thevet, além de uma disputa teológica, traz para o discurso do relato a questão da religião reformada e da religião católica, o acontecimento do fracionamento da cristandade no século XVI. O viajante “navega ou caminha com sua cultura”.35 Além da materialidade de sua cultura e sua erudição, o viajante leva também

[...] as regras da verossimilhança da descrição. Se a discordância com outros viajantes com outros viajantes, muitas vezes, pode provar que o autor esteve realmente no lugar que conta, pois viu o que os outros não viram, por desleixo ou por não terem realmente viajado, ela pode voltar-se contra seu autor se ele diferir muito da maioria dos testemunhos.36

32 LÉRY, 1994, p. 52, grifos nossos. 33 LÉRY, 2007, p. 52.

34 TORRÃO FILHO, 2010, p. 40.

35 MOUREAU, François. Le théàtre des voyages. Une scénographie de l’Age classique. Paris: Presses de

L’Université de Paris-Sorbone, 2005, p. 18. Apud TORRÃO FILHO, 2010, p. 40.

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Ainda na dedicatória, Léry dá inÍcio à querela com Thévet,37 católico e cosmógrafo de Henrique II,

[...] por isso a vós é que terá que prestar contas Thévet por ter, de um modo geral e na medida de suas forças, condenado e caluniado a causa pela qual fizemos essa viagem à América e ainda ao falar do almirantado de França na sua Cosmografia,

por ter ousado denegrir o nome venerado de todos os homens de bem de quem foi o promotor da viagem.38

A descrição de Léry sobre a Guanabara desenha a busca de um retrato fiel de tudo o que ele viu neste espaço do novo, sobretudo, como sugere Torrão Filho,

[...] uma refutação das fantasiais e mentiras de André Thévet, cosmógrafodo rei e papista emperdenido, inimigo dos huguenotes. Uma das ‘mentiras’ de que se lhe acusa é a invenção de uma falsa cidade na França Antártica, uma suposta Ville-Henry, esta ‘soberba cidade’ a qual “fantasticamente ele nos construiu no ar, na América”.39

Léry é um homem do Renascimento e pastor protestante. Inserido fisicamente no fracionamento da cristandade,40 sua neutralidade e veracidade está comprometida com as normas de seu tempo: numa disputa teológico-política. Já no prefácio da Histoire e na dedicatória à Francisco de Coligny, e no capítulo VI, Léry deixa clara a intenção da viagem e o motivo da expedição para estabelecer “o verdadeiro serviço de Deus” e, ao mesmo tempo, a sua intenção de perpetuar na história “a lembrança de uma viagem feita expressamente à América.”41

Segundo Sztutman, na primeira empresa francesa de ocupar o território do Brasil “a idéia de ocupação divergia fortemente em relação à portuguesa e, ali, a conversão não se colocava como objetivo palpável, sobretudo porque se tratava de uma empresa prioritáriamente huguenote, protestante.”42

37 TORRÃO FILHO, Amilcar. O cosmógrafo e o huguenote: a disputa pela verdade nos relatos sobre o Brasil

seiscentista em Jean de Léry e André Thevet. (Inédito). 38 LÉRY, 2007, p. 32, Nota 19.

39 TORRÃO FILHO, op. cit., (Inédito), p. 21. 40 Ibid., (Inédito), p. 21.

41 LÉRY, 2007, p. 31.

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CAPÍTULO I

1 POLÍTICAS DO CORPO EM LÉRY?

1.1 NOVO MUNDO E O OUTRO NO DISCURSO ESCRITO DOS VIAJANTES DO SÉCULO XVI

1.1.1 As dimensões da Escrita Conquistadora do Novo Mundo – A Colonização do Corpo no discurso para conhecer o outro

Neste primeiro capítulo pretendemos investigar as dimensões da escrita conquistadora43 para conhecer o Novo Mundo, e o acontecimento do encontro entre o europeu e o indígena. Como se construiu verbalmente o espaço e os sujeitos que o habitam? Que visão de mundo podemos observar no tratamento das políticas do corpo, na relação desses primeiros encontros nos relatos dos viajantes europeus? De que maneira as imagens verbais podem se constituir em ações de domesticação da corporalidade indígena?

A construção verbal do espaço e dos habitantes na narrativa dos viajantes do século XVI, que se dá nos relatos sobre o Novo Mundo, insere-se no pensamento da teoria da representação e da imagem da semelhança, o discurso escrito obedece a uma ordem mimética. A produção dos textos de viagem é um processo análogo à produção do conhecimento. É preciso ir observar esse lugar, e que a visão do viajante seja transformada em conhecimento – que está atrelado a uma demanda de mimesis, ou a uma descrição entendida como realidade –, que vai imitar aquilo que viu e transformá-la em discurso. Essa demanda de mimesis, ou as representações da realidade, é o que está na base desse diário de viagem.44

Para Torrão Filho, o objetivo de quase toda viagem é a busca da alteridade, da diferença “que opõe as antípodas da civilização e define suas marcas e suas fronteiras, sendo, ao fim o objetivo de quase toda a viagem. Essa alteridade se constrói textualmente pela

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tradução do outro ao mesmo, da analogia, da comparação, da inversão.”45 Torrão ressalta a construção textual de uma representação da diferença no tratamento que o viajante faz do outro. Todavia, o que ele edifica, neste tratamento, é uma representação de si mesmo: “classificando o outro, classifico-me a mim mesmo e tudo se passa como se a tradução se fizesse sempre na esfera da versão.”46

Quanto a Léry, sua escrita de viagem se passa no século XVI. Considerando o escritor viajante inserido em sua contemporaneidade seu discurso escrito estaria atrelado aos cânones racionais do Renascimento, que atingem toda a construção do conhecimento, fundamentado no princípio damimesis. Para Costa Lima:

[...] a mímesis aristotélica supunha uma concepção da physis, que continha duas faces, dynamis e energeia, o atual e o potencial. A mimesis não dizia respeito senão ao possível, ao capaz de ser criado, à energeia; seus limites não eram outros senão o do possível de ser concebido, embora a partir do que se conhecia. Entre os renascentistas, ao contrário, a posição do possível será ocupada pela categoria do verossímil, que, evidentemente, depende do que já é, do atual, então confundido com o verdadeiro.47

Léry emprega a enargeia,48 teoria retórica utilizada na Antiguidade que faz uso de palavras em sentido figurado, ou metáforas.49 O processo narrativo que empregava a enargeia

era recomendado por Quintiliano na Institutio oratória, e por Erasmo na Copia, enargeia. A energeia é um processo narrativo “onde as coisas ausentes eram apresentadas a nossa imaginação através de uma nitidez tão poderosa que elas (as coisas) pareciam em verdade estar diante de nós.”50

A questão da verdade é central na literatura de viagem e o papel da anedota na narrativa viática “pode dar a impressão de verdade e consequentemente da certeza”51 daquilo que se está relatando. A anedota, neste caso, se encontra numa “fronteira delicada que, de um

45 TORRÃO FILHO, 2010, p. 19.

46 HARTOG, François. O espelho de Heródoto. Ensaio sobre a representação do outro; tradução Jacyntho Lins

Brandão. Belo horizonte: UFMG, 1999, p. 259. In TORRÃO FILHO, Amilcar, 2010, p. 20.

47 LIMA, 2007, p. 48.

48Cf.: evidentia, evidencia, intensidade. In JUALL, Scott D. Beaucoup plus barbares que les Sauvages mesmes:

Canibalism, Savagery, and Religious Alterity in Jean de Léry’s Histoire d ‘un Voyage faict en la terre du Brésil. Revista L ‘Esprit Créateur, vol. 48, n. 1, 2008, p. 58-71.

49 JUALL, 2008, p. 61.

50 QUINTILIAN, Institutio Oratória, H. E. Butler, trans. (Cambridge; Havard UP, 1926), 2:434-35. Apud,

JUALL, Scott, 2008, nota 7, p.71: “[...] whereby things absent are presented to our imagination with such extreme vividness that they they seem actually to be before our eyes.”

51 LINON-CHIPON, Sophie. Certificata Loquor. Le Role de l’anecdote dans les récits de Voyage (1658-1722).

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lado historiciza a narrativa do viajante e de outro o engaja sobre a via da literatura de ficção [...]. A habilidade retórica do narrador será, na maior parte, convencer ou não o leitor.”52

Em se tratando da escrita de viagem ao Novo Mundo, os modos representacionais da realidade são os registros das anedotas representativas53 que são representações engajadas

com o interesse dominante, que não é o conhecimento do outro, mas a ação sobre o outro. Em Léry, ou a partir de Léry, o conhecimento é uma forma de ação sobre o outro. Ou seja, encontramos as duas coisas, o conhecimento do outro e a ação sobre o outro. Sob este ponto de vista, Michel de Certeau sonda a etnologia e a história, tratando o trabalho de conhecimento do outro, o Novo Mundo e seus habitantes. Para ele, o trabalho de articulação, do oral da etnologia e da escrita da história determina-se mutuamente. Assim, ele propõe uma arqueologia da etnologia balizada a partir de uma série de relatos de viagem “esta articulação da palavra e da escrita é por sua vez encenada na Histoire.”54

Léry dá ao seu relato uma forma circular no trajeto de descrever e de dar a conhecer o indígena brasileiro, o movimento se inicia

[...] de cima (ici a França) para baixo (là-bas, os Tupi). Transforma a viagem em um ciclo. Trás de là-bas, como objeto literário, o selvagem que permite retornar ao ponto de partida. O relato produz um retorno, de si para si, pela mediação do outro. Mas alguma coisa no texto permanece là-bas: a palavra tupi. Ela é aquilo que, do outro, não é recuperado – um ato perecível que a escrita não pode relatar.55

Para Stephen Greenblatt os “viajantes pensavam saber para onde estavam indo e acabaram num lugar de cuja existência jamais haviam suspeitado.”56Na escrita dos itinerários dos viajantes do Renascimento, ele observa a presença de uma narrativa sistemática ou de intenção teleológica,57 entretanto, o que aparece de mais envolvente é a característica anedótica da narrativa. A anedota sai da dimensão do oral e entra na dimensão da escrita do relato de viagem. É a forma que esses viajantes utilizarão para explicar o “impacto do não-familiar, na provocação de uma curiosidade intensa, no excitamento local de maravilhas descontínuas.”58

52 LINON-CHIPON, 2001, p. 193.

53 GREENBLATT, Stephen. Possessões maravilhosas. São Paulo, Edusp, 1996, p. 19. 54 CERTEAU, 2010, p. 215.

55 Ibid., 2010, p. 214-15.

56 GREENBLATT, op. cit., 1996, p. 18.

57 Teleologia: a ideia de causa final para a explicação de todos os fenômenos. Teleologia. Disponível em:

<http://pt.wikipedia.org/wiki/Teleologia>. Acesso em: 28 jan. 2014.

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O registro do desconhecido tem na anedota uma forma de comunicação sobre o encontro com o inesperado, com o diferente. Os europeus que viajavam para o Novo Mundo encontraram na anedota a maneira de transplantar para a América uma prática representacional que pudesse descrever para seus compatriotas europeus “o que viam e faziam.”59 O maravilhamento diante do outro desconhecido “efetua a ruptura crucial com um outro que só pode ser descrito e testemunhado na linguagem e nas imagens da similitude”;60 entra como elemento inicial na dimensão de rede da escrita conquistadora dos europeus – aqueles europeus que puderam se aventurar na descoberta e na conquista deste Novo Mundo. Aqui não estamos generalizando e, sim, tratando dos que romperam as barreiras da travessia oceânica e foram lançados no espaço do não-familiar.

O maravilhamento permite romper as barreiras da distância e adentrar no espaço do estranho, propondo um movimento que se realiza

[...] da alteridade radical – não se tem nada de comum com o outro – para o auto-reconhecimento que é também um modo de auto-alienação; o eu é o outro e o outro é o eu [...]. O movimento, aqui, vai da identificação para a alienação completa: por um instante o eu se vê confundido com o outro, mas logo faz com que o outro se torne um objeto estranho, uma coisa que se pode destruir ou incorporar à vontade.61

A operação literária de Léry é uma tentativa de reconduzir “para o mesmo produtor o lucro dos signos, enviados à distância” com uma condição: “a diferença estrutural entre ‘ïci’e ‘là-bas’. O relato joga com a relação entre a estrutura- que propõe a separação – e a operação – que a supera criando assim efeitos de sentido. O corte é o que o texto supõe por toda a parte, trabalho de costura”62. Esse corte, inicialmente, aparece como corte oceânico: é o Atlântico, fenda entre o Antigo e o Novo”63. Aqui já se encontra o maravilhoso no discurso de Léry, “Contando tempestades, monstros marinhos, feitos de pirataria [...] maravilhas “ou avatares da navegação transoceânica.”64

No prefácio da Histoire nos deparamos com a posição do relator quanto ao diferente:

Este país da América o qual, como deduzirei, tudo que se vê aí, seja na maneira de viver dos habitantes, forma dos animais e em geral naquilo que a terra produz sendo

59 GREENBLATT, 1996, p. 23. 60 Ibid., 1996, p.176.

61 Id.

62 CERTEAU, 2010, p. 219. 63 Id.

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dissemelhante do que temos na Europa, Ásia, África, bem pode ser chamado de mundo novo, do nosso ponto de vista.65

Para Certeau, no relato de Léry “o maravilhoso, marca visível da alteridade, não serve para propor outras verdades ou um outro discurso, mas pelo contrário, serve para fundar uma linguagem sobre a capacidade operatória de dirigir a exterioridade ao “mesmo”66. A tentativa de Léry para descrever a sociedade Tupi, por sua vez, engendra uma maneira “sistemática de um quadro das “dissemelhanças” “que se devem atribuir a cada gênero e a cada grau de ser, a situar no cosmos.”67

O espaço da representação do mundo não é distinto do olhar que o observa, está conectado num primeiro plano às ações empreendidas ou vividas por um sujeito.68 Num plano seguinte esse mundo se dirige aos objetos, coisas e seres viventes, que Léry vai dispo-los num espaço que rege “uma taxonomia dos viventes.”69 Isto já se percebe no título do Capítulo X

da Histoire: Dos animais, veação, lagartos, serpentes e outros animais monstruosos da

América. Na descrição do tapir (anta), ou tapiruçu, animal desconhecido na Europa, Léry nos dá a taxonomia e o maravilhoso, que informa de uma maneira “científica” e “fantástica” a existência deste animal, que deveria ser assustadora e fascinante ao leitor da época,70 e ainda hilário para nós leitores contemporâneos. Transcrevemos o texto da Histoire:

Na descrição dos animais silvestres do país, chamados genericamente sôo,

começarei pelos que servem de alimentação. O primeiro e mais comum é o

tapirussú de pêlo avermelhado e assaz comprido, do tamanho mais ou menos de uma vaca, mas sem chifres, com pescoço mais curto, orelhas mais longas e pedentes, pernas mais finas e pé inteiriço com forma de casco de asno. Pode-se dizer que, participando de um e de outro animal, é semi-vaca e semi-asno.71

O conjunto dos registros dos primeiros encontros com o outro do Novo Mundo são os únicos documentos, como fonte histórica, que se tem em mão “o único remédio é não ler esses textos como enunciados transparentes e tentar ao mesmo tempo, levar em conta o ato e

65 LÉRY, 2007, p. 135. 66 CERTEAU, 2010, p. 227. 67 Ibid., 2010, p. 220. 68 Ibid., 2010, p. 226. 69 Ibid., 2010, p. 226.

70 Cf.; sobre a crítica do fantástico na literatura de viagem escrita no século XVI: RABELAIS. François. De

como visitamos o País de Cetim. In: RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Belo Horizonte, Itaiaia, 2009, Capítulo XXX, p. 890.

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as circunstâncias de sua enunciação. Porque as questões aqui levantadas remetem menos ao conhecimento do verdadeiro do que do verossímel.”72

A investigação de Todorov sobre os relatos do encontro europeu espanhol se apóia num estudo que chega à totalidade das fontes sobre a descoberta e a conquista da América espanhola, mesmo que centrada em Colombo, Cortez e Las Casas. Seu estudo procura abarcar em profundidade as dimensões e os paradoxos dos projetos pessoais e comuns das personagens da descoberta e conquista da América.

Para a história da escrita de Certeau os relatos do encontro “são as lendas que um meio se conta.”73 O que Léry teria em comum e de novo em comparação a esses relatos na representação do Tupinambá?

Figura 1: Dois mundos se encontram: o encontro dos europeus e os índios brasileiros, Theodore de Bry, 1592. Fonte: GAMBINI, 2000, p. 29.74

72 TODOROV, 2011. 73 CERTEAU, 2010, p. 63.

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1.2 Estratégias das políticas sobre o corpo Tupinambá

O que pretendemos enfocar neste estudo é a visão de mundo no tratamento das políticas do corpo, quanto à relação desses primeiros encontros entre europeus e ameríndios, no que se observa no relato dos viajantes europeus. No documento de Léry, o que é comum na comparação do discurso destes relatos na construção da posse do corpo tupi? O que emerge de comum nestes relatos é a intenção de um projeto assimilacionista da cultura indígena, ou seja, um projeto que pretende torná-la civilizada e não selvagem. Buscamos refletir sobre o paradoxo do desejo desses europeus comprometidos com a conquista e a intenção de civilizar através da cristianização e, simultaneamente, extorquir as riquezas, possuir as terras e escravizar o homem americano. Escravizar o outro significa tomar posse do corpo do outro.

A narrativa de viagem na relação com esse outro engendra duas atitudes, comuns na experiência da alteridade, que são propostas por Todorov:

[...] o assimilacionismo na projeção de seus próprios valores sobre os outros, e a diferença, que é imediatamente traduzida em termos de superioridade e inferioridade (no caso, obviamente são os índios inferiores), que desembocam na recusa da existência de uma substância humana realmente outra, que possa não ser meramente um estado imperfeito de si mesmo. Essas duas figuras básicas da experiência da alteridade baseiam-se no egocentrismo, na identificação de seus valores com os valores em geral, de seu eu com o universo; na convicção de que o mundo é um só.75

Deteremos-nos na investigação da arquitetura verbal para representar este espaço e esses sujeitos, de um mundo que se apresenta pela primeira vez ao olhar do europeu, e na criação das imagens verbais na representação sobre o corpo indígena. O corpo indígena como objeto de estudo histórico convoca a presença das tentativas de domesticação e manipulação deste corpo nas relações dos primeiros encontros entre o europeu conquistador e o novo território a conquistar reveladas na representação do corpo indígena.

O aparato escrito da literatura de viagem, no caso do Brasil, engendrará o primeiro imaginário do corpo brasileiro, que servirá ação posterior do colonizador na tentativa de domesticação do corpo indígena. É uma questão política a invenção do corpo inserida na

74 GAMBINI, Roberto. Espelho Índio. A formação da alma brasileira. São Paulo: Axis Mundi; Terceiro Nome,

2000.p.115.

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temporalidade de cada cultura “Cada sociedade tem seu corpo, assim como ela tem sua língua.”76 Assim como a língua:

[...] o corpo também está submetido à gestão social tanto quanto ele a constitui e a ultrapassa. Memória mutante das leis e dos códigos de cada cultura, registro das soluções e dos limites científicos e tecnológicos de cada época, o corpo não cessa de ser (re)fabricado ao longo do tempo. Seria, portanto, empobrecedor analisá-lo tomando-o como algo já pronto e constituído para, em seguida privilegiar suas representações ou o imaginário da época em que está submerse.77

Certeau apresenta a história, ou o trabalho do historiador, como um empreendimento simultâneo de reconstrução do passado e uma pesquisa do corpo em que a recomposição de vestígios históricos coloca questões, entre elas, a do uso metafórico do corpo e o corpo como objeto histórico sempre construído e elaborado. A investigação da história do corpo faz transparecer que o corpo está submetido a uma gestão social. O corpo é feito de uma “simbolização sociohistórica de cada grupo. Há um corpo grego, um corpo indiano, um corpo ocidental moderno (seriam necessárias muitas outras subdivisões). Eles não são idênticos, tampouco são estáveis, pois há lentas mutações de uma imagem à outra).”78

O corpo é um processo contínuo de produção, ou de “ficções de corpos “E este processo está sempre atrelado à um conjunto de codificações móveis que forma este corpo, mas que sempre escapa à compreensão. Mas o campo de possibilidades e de interdições que ele constitui em cada sociedade não é representável.”79 Para Certeau, o corpo, embora controlado pela dupla função de representá-lo “por meio de citações (fragmentos representativos) e de normatizá-lo com a ajuda de modelos”, sempre escapa à compreensão: é sempre “desconhecimento inquietante”.80

A investigação que propomos é, portanto, a escrita da história do Brasil e a possibilidade de que estes primeiros relatos – sendo o relato de Léry o foco central – , constroem imagens corporais da sociedade indígena. E, para tanto, o fio de Ariadne

que a conduz é o pensamento de Certeau quanto à idéia de que a “história produz

semblantes de corpos que têm simultaneamente um valor representativo e um

valor normativo. Essas fantasias criadas para representar o corpo dando uma

aparência de realidade exorcizam o inquietante desconhecimento do corpo,

76 LANEYRIE-DAGEN, N. L’invention du corps: la representation de l’Homme, du Moyen Age à la fin du XIX

siécle. Paris; Flamarion, 1997 apud VIGARELLO, Georges. História do corpo1 – Da Renascença às Luzes, Introdução. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 16.

77 CERTEAU, 2010, p. 12.

78 CERTEAU, Michel de. Histórias de corpos. Revista Esprit n. 62, Paris, fevereiro de 1982. In VIGARELLO,

Georges. Projeto História, 25. Corpo & Cultura. São Paulo: Educ, dezembro/02.

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substituindo-o por imagens, uma objetivação fictícia, ao mesmo tempo em que, pela seleção das quais eles resultam, pela fascinação que exercem, pela autoridade

‘científica’ a que são tocados, adquirem uma importância canônica. Essas

produções da história seriam ficções reguladoras.81

Como sugere Certeau:

[...] o historiador ‘compõe’, assim, de maneira mais ou menos alusiva, uma cartografia de esquemas corporais – maneira de se comportar, de combater, de residir, de saudar, etc. Com essas citações de corpos, ele não apresenta o corpo de uma sociedade (no sentido que utilizei acima), mas o o sistema de convenções que define essa própria sociedade. Substitui as regras (a civilidade) de um corpo social pelo funcionamento social do corpo físico. Trabalho alquímico da história: ela transforma o físico em social; ela se credita do primeiro para construir o modelo do segundo; ela produz imagens de sociedade com pedaços.82

A discussão que pretendemos fazer é a problematização da historicidade das representações do corpo indígena no Brasil do século XVI, de acordo com o relato do viajante Jean de Léry,83 e as contribuições de seu discurso escrito sobre a construção das representações que engrossarão o imaginário sobre o corpo Tupinambá. Abre-se, dessa forma, uma reflexão sobre as políticas constituintes da construção do corpo europeu e as imagens desse constructo projetadas nas imagens dos Tupinambá, tendo em vista a política de dominação do corpo social indígena.

É nas entrelinhas da escrita do viajante que se inaugura o novo funcionamento da escrita ocidental sobre o outro, a “escrita conquistadora”.84 Observa-se um traço de utilidade que transforma o espaço do outro num campo de expansão para um sistema de produção. A partir de um corte entre o sujeito e objeto de operação, entre um querer escrever e um corpo escrito (ou a escrever) fabrica-se a história ocidental.

A escrita da história é o estudo da escrita como prática histórica. Se, há quatro séculos, todo o empreendimento científico tem como característica a produção de artefatos lingüísticos autônomos (línguas e discursos “próprios”) e sua capacidade de transformar as coisas e os corpos dos quais se distinguiram (uma reforma ou revolução do mundo envolvente segundo a lei do texto), a escrita da história remete a uma história “moderna” da escrita.85

81 CERTEAU in VIGARELLO, 2002, p. 408, grifos nossos. 82 Ibid. apud VIGARELLO, 2002, p. 409.

83 Usaremos a tradução para o português: LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia,

2017. E o original: LÉRY, Jean de. Histoire d’un Voyage faict en la terre du Brésil, 1578. Deusieme edition, 1580. Texte établi, présente et annoté par Frank Lestringant. Paris: Librairie Générale Française, 1994.

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Para Certeau, essa prática, no século XVI, também se dava nas nominações utilizadas na organização “etnográfica” da escrita em sua relação com a oralidade “selvagem”, “primitiva”, “tradicional”, ou “popular” que ela constituiu como “seu outro”.86 Em suas considerações sobre a aliança entre a escrita e a história é tarefa da historiografia articular “o “real” com o “discurso”, ou seja investigar a “relação que o real mantém com o “discurso”. Esta relação já vem da concepção judaico-cristã das Escrituras, portanto, a operação da história “desemboca num problema político e, por outro lado, na questão do sujeito (do corpo e da palavra anunciadora), questão reprimida ao nível da ficção ou do silêncio pela lei de uma escrita científica.87

Problematizamos a narrativa “etnográfica” de Jean de Léry, viajante do século XVI, que esteve no Brasil entre 1554 e 1555, detendo-nos nas entrelinhas do silêncio, do que é calado pela lei de uma escrita científica, ou de “lendas científicas” quando se trata de conhecer outra sociedade. Através do discurso escrito sobre o indígena, qual a contribuição deste viajante para a construção da imagem do outro? Qual a sua contribuição na construção e na divulgação do imaginário sobre as sociedades indígenas?

A questão que fundamentará essa dissertação é a investigação de que a escrita etnográfica do século XVI produz “sujeitos” como resultado da relação “corpo a corpo entre viventes” europeus e índios. Essa escrita opera na relação corpo a corpo, desenhando uma rede de ações do poder do conhecimento dos descobridores e conquistadores europeus com suas diferenças de origem topográficas (franceses, portugueses, espanhóis), para assimilar o desconhecido.

A escrita das narrativas dos viajantes ao Novo Mundo no século XVI difere das narrativas de viagem medievais: apresentam novo uso, lidam com histórias de viagem e quadros etnográficos. Diferença que se caracteriza pelo “duplo trabalho”88 que a escrita etnográfica terá que lidar para produzir o conhecimento de nova cultura que implica na relação homem “selvagem” e na relação com a tradição religiosa imbricada na cultura renascentista ocidental. O novo uso da escrita serviu à elite intelectual, que detém o poder do saber e todo poder traz consigo suas normas que o perpetuam.

Na concepção de Certeau, estes escritos constroem “lendas científicas” que indicam a um grupo de letrados o “que devem ler” inscritas nas normas do controle das representações

86 CERTEAU, 2010, p. 10; 11. 87 Ibid., 2010, p. 10.

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criadas por essa mesma intelligentsia renascentista.89 O relato dos viajantes constrói “lendas científicas” que “simbolizam” as alterações provocadas numa cultura pelo encontro com outra.90

Em suas reflexões, Certeau afirma que os textos etnológicos sobre o homem das novas terras formam discursos sobre o outro, exilam a oralidade, a palavra, a voz do índio, para fora do campo do trabalho do conhecimento ocidental, transformando a palavra em objeto exótico91 e construindo a imagem exótica do selvagem. Imagem que se definirá desde os primeiros textos do discurso sobre a América. A “cena inaugural” do descobridor que “vem do mar. De pé, vestido, encouraçado, cruzado, trazendo as armas européias do sentido e trazendo atrás dele os navios que trarão para o Ocidente os tesouros de um paraíso.”92

O primeiro relato sobre a baía do Rio de Janeiro, o de Américo Vespúcio,93 que em Janeiro de 1502, esteve a serviço de D. Manoel I de Portugal, na armada encarregada de explorar a costa brasileira. Em sua escrita, a América é representada pela índia nua, estendida num espaço de vegetações e animais exóticos, a América Índia (figura 1). Imagem quase mítica, erótica e guerreira que representa o corpo desconhecido, que traz o nome de seu inventor. Nesta primeira imagem da escrita conquistadora sobre a representação da América, ainda inexistente nos mapas “é a de um corpo selvagem – corpo desconhecido destinado a trazer o nome do seu inventor (Amerigo),”94 mas o que assim se disfarça é uma colonização do corpo pelo discurso do poder. É a escrita conquistadora que utilizará o Novo Mundo como se fosse uma página em branco (selvagem) para nela escrever o querer ocidental. A nova terra encontrada é batizada de América, e o batismo é a marca do poder da posse da terra.95

89 LIMA, 2007, p. 48.

90 CERTEAU, 2010, p. 213: “[...] Este novo uso é o que eu observo nos textos- histórias de viagens e quadros

etnográficos. Isto significa, evidentemente permanecer no campo da narração. Prender-se também ao que o escrito diz da palavra. Mesmo que sejam o produto de pesquisas, de observações e de práticas estes textos permanecem relatos que um meio se conta. Não se pode identificar essas “lendas “científicas com a organização das práticas. Mas indicando a um grupo de letrados o que “devem ler”, recompondo as representações que eles se dão, estas ‘lendas’ simbolizam as alterações provocadas numa cultura pelo seu encontro com outra. As experiências novas de uma sociedade não desvelam sua ‘verdade’ através de uma transparência destes textos: são aí transformados segundo as leis de uma representação científica própria da época. Desta maneira os textos revelam uma “ciência dos sonhos”, formam “discursos sobre o outro, “a propósito dos quais se pode perguntar o que se conta aí, nesta região literária sempre decalada com relação ao que se produz de diferente.”

91 Ibid., 2010, p. 212: “O trabalho ocidental da escrita produz um discurso etnológico que transforma a palavra

em objeto exótico quando exila a oralidade para fora do campo ocupado pelo trabalho ocidental[...]Desta configuração complexa retenho, inicialmente, dois termos. Interrogo-me sobre o alcance desta “palavra ‘instituída no’ lugar do outro ‘e destinada a ser escutada de ‘forma diferente’ da que fala. Este espaço da diferença questiona um funcionamento da palavra nas nossas sociedades da escrita – problema muito amplo, mas que torna perceptível a articulação da história e da etnologia no conjunto das ciências humanas.”

92 GAMBINI, 2000, p 141, grifo nosso. 93 CERTEAU, 2010, p. 9.

94 Ibid., 2010, p. 9-10.

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Figura 2: O explorador Vespúcio diante da índia que se chama América, Theodore de Bry. Fonte: CERTEAU, 2010, p. 10. 96

Na operação de textualização do outro há uma intenção que parece perpetuar a ausência do corpo indígena, exilando a voz do índio, o que está oculto no texto é um corpo emudecido. É um corpo inexistente, não um corpo desconhecido. Talvez seja diferente de uma página em branco, porque a história dos habitantes da nova terra não é considerada. E apagada na representação da realidade, a escrita conquistadora cria um fac-símile da materialidade do humano e do território da América.

A perspectiva de investigar a história do corpo no Brasil no século XVI, partindo do documento Léry para tratar do estudo do relato do encontro da sociedade européia francesa com a sociedade indígena dos Tupinambá, aponta a problemática da escrita como agente das

96 Ilustração de Theodore de Bry. In CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro, Editora

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políticas do corpo e seus mecanismos de controle para assimilar a cultura indígena, ou melhor a relação antropofágica97 do europeu francês diante do novo outro.98

A análise do encontro das corporalidades ocidental e ameríndia emerge da articulação da história e da etnologia, proposta por Michael de Certeau em a Escrita da História, que seria a escrita sobre a oralidade, ou seja o relato do encontro.99 Investigaremos a questão deste encontro na perspectiva de que o corpo espelha e se constitui cultura.

1.2 A CONDIÇÃO SENSÍVEL DO APAGAMENTO: SER SELVAGEM

José Gil100 refere-se ao corpo enquanto uma “infralíngua” em constante comunicação com o mundo. Neste caso, o corpo ultrapassa os limites do biológico e se torna ator social. A noção de corporeidade que Gil desenvolve, a partir da teoria do corpo sem órgãos, proposta por Deleuze e Guattari,101, 102 aponta para algumas noções novas sobre a corporeidade: a do corpo real, e não a sua representação imaginária e simbólica. O corpo é lugar de investimento de desejo e emissão de pulsões desejantes: o corpo agencia o desejo por meio de seus orgãos.

A noção do corpo como uma máquina desejante e não como um organismo ou um teatro (fantasma e não corpo real), a noção de corporeidade, vai além do próprio corpo. Ultrapassa a idéia de corpo e contorno e corpo e vivências, que é o corpo da fenomenologia103 e a da teoria do corpo sem órgãos que implica numa idéia de inconsciente corporal.

Considerando a relação das corporeidades, europeu e sociedade Tupinambá, no caso do nosso objeto, o sujeito que escreve é Léry, portanto, pretendemos abordar o controle do corpo indígena através do que ele diz ou oculta sobre o corpo tupi a partir de seu prório corpo. Ou seja, através do espelhamento dos modos de fazer e de sentir da cultura européia quando representa o corpo Tupinambá.

97 Significado de antropofágica é usado como uma metáfora irônica, que será desenvolvida no decorrer da

dissertação.

98 Os Tupinambá (o novo outro). 99 CERTEAU, 2010, p. 212.

100 GIL, J. Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio D’água Editores, 1997, p. 37. Infralíngua: funcionamento

do pensamento simbólico.

101 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs; tradução Aurélio Guerra Neto et al. São Paulo: Editora

34, 1999, V. 3.

102 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs; tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão.

São Paulo: Editora 34, 1997, V. 2.

Imagem

Figura 1   Dois mundos se encontram: O encontro dos europeus e os índios  brasileiros..................................................................................................
Figura 1: Dois mundos se encontram: o encontro dos europeus e os índios brasileiros, Theodore de Bry, 1592
Figura 2: O explorador Vespúcio diante da índia que se chama América, Theodore de Bry
Figura 3: A Melancolia I, Albrecht Dürer, 1514.
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