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A ESTETIZAÇÃO CRISTÃ – O CONTROLE DAS REPRESENTAÇÕES DO CORPO

O sentido de “estetização cristã”, utilizado neste tópico, aponta para a subjetivação da interferência religiosa no modelo das representações do corpo e do corpo nu da arte de seu tempo histórico.Nas considerações de Daniel Arasse sobre A Carne, A graça e O Sublime,163 a pesquisa sobre a história do corpo, do século XVI ao século XVIII, que investiga as práticas do corpo (sociais ou políticas, públicas, privadas ou íntimas), e suas imagens da história da arte, “pode fundar-se e já se funda em grande parte em outros documentos, principalmente textuais, além das imagens artísticas.”164 As imagens que representam a história do corpo foram “produzidas e utilizadas pelos mesmos atores que produziram os outros tipos de documentos que permitem construir a história do corpo.” Portanto, as imagens artísticas podem ser consideradas “como vetores de implicações específicas, sejam elas políticas, sociais ou culturais, coletivas ou individuais.”165

A problemática da construção da imagem do corpo como objeto da história do corpo, implica o espaço e o tempo não linear das representações visuais do corpo no sistema das belas artes. As representações do corpo humano na arte renascentista, segundo Arasse, é um acontecimento da valorização do corpo. A valorização do corpo na Renascença era indissociável da exaltação de sua beleza física, e tomava formas múltiplas na teoria e na prática da representação do corpo humano. A estética da imagem do corpo ganhou outra dimensão e produziu “impacto extraordinário”166 na arte do Renascimento. A representação do corpo humano, em seus detalhes anatômicos e em suas capacidades expressivas, recebe, desde o século XVI, atenção renovada na pintura e na escultura: o corpo expressa a verdade,

163 ARASSE. In CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges (Orgs), 2009, V. I, p. 535- 620.

164 Ibid., 2009, p. 535. 165 Ibid., 2009, p. 536. 166 Ibid., 2009, p. 542-43.

os afetos da alma, as paixões humanas e, sobretudo, “é o alicerce, a medida e o modelo da representação em seu conjunto.”167

A valorização do corpo humano nos tratados da arte acontece numa normatização de formas diversificadas, que se desenvolve em fundamentos de dupla tradição: a tradição antiga e a cristã:168 “Essa extraordinária valorização fundamenta o que se costuma chamar de modernidade na arte, e ela se inscreve num movimento geral que se apóia na confluência de duas tradições, a antiga e a cristã, aliás antagonistas em muitos aspectos.”169

A tradição antiga que, no fim do século XV, com a difusão impressa dos Dez livros de arquitetura de Vitrúvio,170 causa impacto sobre a cultura européia em seu conjunto, “a tradição antiga adquire uma atualidade e um relevo particulares.”171 O tratado de Vitrúvio, que faz das medidas do corpo humano a fonte das proporções da arquitetura e “demonstra como, em sua perfeição, este corpo se inscreve dentro de duas formas geométricas perfeitas, o círculo e o quadrado,”172 é referência para os artistas do Renascimento, que desenvolvem “múltiplas proposições nas quais o corpo humano se torna também modelo da racionalidade na construção arquitetural.”173

Da Renascença ao advento do Neoclassicismo, a arte é marcada pela representação e sua prática é legitimada, apoiada e fundamentada por um aparelho teórico cujas variações não poderiam dissimular a continuidade fundamental.174 O trabalho de Arasse busca a história do corpo na pintura que, para ele, das três artes do desenho, arquitetura, escultura, pintura, a última foi a que a teve o maior número de textos escritos de teoria e crítica. Desde 1435, o tratado De Pictura de Alberti175 será o modelo da imagem do corpo na arte da representação

167 ARASSE. In CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges (Orgs), 2009, V. I, p. 542. 168 Ibid., 2009, p. 544.

169 Ibid., 2009, p. 542.

170 Ibid., 2009, p. 542-43: “[...]Vitrúvio faz das medidas do corpo humano a fonte das proporções, que tornam uma arquitetura harmoniosa e, numa passagem destinada a ter um extraordinário impacto sobre a cultura européia em seu conjunto, ele “demonstra “como, em sua perfeição, este corpo se inscreve dentro de duas figuras geométricas perfeitas, o círculo e o quadrado. Os artistas dão diversas figuras a esse corpo ideal170, e colocada a

parte a questão das proporções que serão consideradas mais adiante, o prestígio do texto vitruviano suscita múltiplas proposições nas quais o corpo humano170 se torna também o modelo da racionalidade170 na

construção arquitetural, desde as proporções da coluna assimiladas às do corpo, até o desenho das escadas internas, comparado à rede da circulação sanguínea, e a concepção do organismo urbano em seu conjunto- quer se trate dos desenhos em que o plano de uma cidade ideal segue a configuração do corpo humano ou dos celebres desenhos da cidade projetada por Leonardo, cujos canais subterrâneos devem permitir a evacuação invisível dos dejetos.”

171 Ibid., 2009, p. 542. 172 Ibid., 2009, p. 543. 173 Id.

174 Ibid., 2009, p. 536.

175 ALBERTI, L. B.; Dela peinture – De Pictura, p. 179. Apud ARASSE, Daniel. A Carne a Graça e o Sublime Petrópolis. In CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges (Orgs). História do corpo. Petrópolis, R.J: Vozes, 2009, V. 1, p. 542: “[...] No programa de Alberti sobre a pintura, ele propõe aos artistas e

do corpo no renascimento: “fundada numa teoria da imitação que distingue a cópia que visa à verdade da representação e da imitação propriamente dita que transcende esta verdade em beleza, onde o corpo não é só a figura central da representação, mas é seu próprio alicerce.”176

O programa teórico e prático de Alberti, permanecerá atual, no século XVI, no ensino acadêmico e terá impacto fundamental sobre a imagem do corpo. A imagem do corpo na pintura, que transcende a verdade em beleza, apresenta uma composição de figuras humanas engajadas em ação e expressões do corpo inteiro e do rosto, que revelam paixões, sentimentos e perturbações da alma, de modo que os diferentes movimentos dos afetos humanos aparecem na pintura.177 O texto de Alberti é um ponto de articulação decisivo na valorização do corpo

“no programa que ele propõe aos artistas e a seus comanditários, o corpo humano não é mais apenas o suporte privilegiado da verdade ou da expressão das paixões: é o alicerce, a medida e o modelo da unidade em seu conjunto.”178

A tradição cristã intervém na estética de harmonia e beleza e de valorização do corpo humano, num outro registro em relação aos modelos de Alberti e de Vitrúvio179 e do conjunto da arte da cultura européia do Renascimento.180 Na arte e em seus tratados, a valorização diversificada do corpo humano é indissociável da afirmação da “dignidade do ser humano”, já esboçada em Alberti,181 e da exaltação de sua beleza física, que é a ruptura entre a alma – ou espírito – e o corpo que funda a modernidade do corpo ocidental.”182 Para a tradição cristã, a beleza do corpo está atrelada a uma conotação metafísica: a beleza perfeita do corpo de Cristo

seus comandatários, o corpo humano não é mais apenas o suporte privilegiado da verdade ou a expressão das paixões: é o alicerce, a medida e o modelo da unidade da representação em seu conjunto. Essa extraordinária valorização fundamenta o que se costuma chamar de modernidade na arte, e ela se inscreve num movimento geral que se apóia na confluência de duas tradições, a antiga e a cristã, aliás antagonistas sob muitos aspectos.” 176 ARASSE. In CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges (Orgs), 2009, V. 1, p. 536.

177 Ibid., 2009, p. 543. 178 Ibid., 2009, p. 542

179 Ibid., 2009, p. 542-43: “[...] no início de seu livro III, Vitrúvio faz, de fato, das medidas do corpo humano a fonte das proporções que tornam uma arquitetura harmoniosa e, numa passagem destinada a ter um impacto sobre a cultura européia em seu conjunto, ele demonstra como, em sua perfeição, este corpo se inscreve dentro de duas formas geométricas perfeitas, o círculo e o quadrado.”

180 Ibid., 2009, p. 543, grifos nossos: “[...] A tradição cristã torna dialética a concepção da harmonia e da

beleza do corpo humano180. Criado à imagem e semelhança de Deus, o ser humano é a mais bela das criaturas e, em particular, o corpo de Cristo, homem-Deus, encarna a idéia da beleza perfeita180; ao contrário, a deformidade do corpo diabólico180 configura, por sua monstruosidade, a negação da ordem que a Criação

introduziu no caos para fazer dele um cosmos (segundo Dionísio o Cartuxo, em pleno século XV, a primeira pena dos condenados é sua feiúra, sua desfiguração post mortem, sua deformidade, cuja visão recíproca aumenta a dor deles).

181 Ibid., 2009, p. 545-46. 182 Ibid., 2009, p. 546.

antes da morte. O corpo humano deve ser representado com harmonia e beleza, pois ele é a criação de Deus, criado à imagem sua imagem, portanto, é a mais bela das criaturas.183

A feiura, o grotesco e a monstruosidade ou deformidade, que nega e contradiz a ordem da criação e instaura o Caos, estão na dimensão do diabólico, o corpo diabólico.184 Na Contra Reforma, as representações do corpo carnavalesco, o corpo do popular, são rejeitadas pelas autoridades, justificadas pela retomada ideológica do controle da pintura a serviço da Igreja romana.

A diversificação da valorização do corpo indissociável da exaltação da beleza, apresentada na produção de Arasse,185 compõe um conjunto teórico e de práticas de representação do corpo tecido ao antropocentrismo, à perspectiva e à concepção do espaço de Alberti, no qual a unidade orgânica do corpo é o modelo da unidade artística da obra da pintura,186 às proporções do corpo de Vitrúvio e aos estudos de anatomia, aplicados à pintura.

Somado a esse conjunto, a tradição antiga do corpo microcosmo vem compor a rede do pensamento e das práticas das representações do prestígio do corpo no pensamento analógico da Renascença:187 “o corpo como microcosmo no centro do mundo, ele é o reflexo e o resumo do macrocosmo, do mundo. Para ele, a criatura humana, corpo e alma não separados, participa do conjunto do mundo e se encontra ligada aos reinos animal e vegetal, à Terra e ao cosmos.”188

Todo esse conjunto, ainda, se configura numa dimensão metafísica: “pois para os teóricos da Renascença e na linha de alguns pensadores medievais, as proporções do corpo refletem a harmonia da criação divina e o vínculo entre microcosmo e o macrocosmo.”189 A representação do corpo no Renascimento, em seu conjunto, se configura com a normatização, como vimos, nos tratados de arte apoiados nos fundamentos da tradição da Antiguidade e da tradição cristã.

Entretanto, na análise das imagens e da concepção metafísica dos textos teóricos para o estudo das proporções, que dá a dimensão da valorização do corpo na arte do século XVI, emerge outro movimento que se distancia da concepção metafísica da teoria das

183 ARASSE. In CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges (Orgs), 2009, V. 1, p. 543. 184 Ibid., 2009, p. 543. 185 Ibid., 2009, p. 535-46. 186 Ibid., 2009, p. 541. 187 Ibid., 2009, p. 544. 188 Ibid., 2009, p. 544. 189 Ibid., 2009, p. 547.

proporções. Este distanciamento se dá na pesquisa dos artistas, sendo mais forte em Leonardo Da Vinci e em Dürer, nos quais “não encontramos vestígio dessa dimensão metafísica.”190

Na reflexão de Da Vinci sobre as proporções, a racionalidade que ele busca “não é a racionalidade que a criação teria realizado secretamente no corpo humano,”191 o que ele está buscando é uma geometria biológica do ser vivo. Mas o interesse de Da Vinci na figura do

corpo é o interesse pelo movimento desse corpo, e pelo movimento do mundo, que faz com

que “toda a forma seja uma imagem errante.”192

A reflexão das proporções de Dürer não busca uma figura ideal, reflexo microcósmico da perfeição da criação divina, longe disto, suas reflexões “visam explicar racionalmente – isto é, geometricamente – a diversidade das configurações naturais do corpo humano.”193

A Renascença “inaugura, no que diz respeito à representação do corpo, um fenômeno de uma amplidão considerável, mais durável do que a reflexão sobre as proporções: a presença do corpo nu, seja masculino ou feminino, nas pinturas, gravuras, esculturas e até arquiteturas.”194

A glória do corpo, ao mesmo tempo que é a figura central da representação clássica é, também, seu próprio alicerce. Diante desse tropos que a epistemê da arte renascentista constrói a Igreja se posiciona e permite a representação do corpo nu quando associada à beleza e à harmonia. A intervenção cristã associa a criação do corpo humano à imagem de seu criador: Deus. Portanto, o ser humano é a mais bela das criaturas.195

No século XVI, a representação da nudez física presente na alegoria das pinturas conquista espaço que não tinha antes e, paradoxalmente, é no espaço do domínio das artes religiosas, que a invasão da nudez ganha amplitude “mais impressionante”.196 O exemplo mais evidente deste acontecimento é o juízo final de Michelangelo. Os bispos e os cardeais da Contra-Reforma condenam esses excessos de conotação subjetiva, que a sensualidade das imagens religiosas de caráter lascivo podem suscitar nos pensamentos.197

190 ARASSE. In CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges (Orgs), 2009, V. 1, p. 547. 191 Ibid., 2009, p. 547. 192 Ibid., 2009, p. 548. 193 Ibid., 2009, p. 550. 194 Ibid., 2009, p. 554. 195 Ibid., 2009, p. 542-43. 196 Ibid., 2009, p. 555. 197 Ibid., 2009, p. 556.

Alexander Rauch198, argumenta que a Renascença do século XVI na Europa, não foi uma renascença, mas foram renascenças. Na Itália, o Rinascimento se refere ao renascimento do passado mediterrâneo, um retorno às formas filosóficas e artísticas da antiguidade clássica:

[...] esse processo de ‘olhar para traz’ não se pode dizer que ocorreu nos países fora da Itália, pois não partilhavam o mesmo legado da antiga Grécia e Roma. Ao contrário, as coisas ‘Latinas’ eram vistas como inferiores, e os países do norte da Europa permaneceram orgulhosos do seu estilo Gótico.199

Entretanto, no século XVI, a influência italiana vai adentrando na arte européia do norte. Para Rauch, a arte do renascimento do norte da Europa seria a “Renaissance of the individual”. Na pintura do norte europeu, do século XV, o nu estaria mais num contexto de “pecado, corpos magros, não musculosos, frágeis, sem força vital, sempre em sofrimento”, é o que podemos observar em Rogier van der Weyden (1430-35), Hans Menling (1473), Hieroymus Boch, (1490).200

Svettlana Alpers,em sua reflexão sobre arte, além da manifestação social, adentrando ao acesso das imagens, considera o lugar, o papel e a presença das imagens no campo da cultura. Alpers propõe estudar a “cultura visual”201 holandesa na arte, considerando que a arte não constitui uma tradição progressiva, com exceção da história da arte italiana: “Na Holanda a cultura visual era central na vida e na sociedade. Se pode dizer que o olho era o significado central da auto-representação e a experiência visual o modo central de autoconsciência.”202

O pintor da Renascença, das terras de língua germânica, Lucas Cranach the Elder, ajudou a disseminar as idéias da religião reformada em suas pinturas e na produção de xilogravuras para a ilustração da bíblia de Lutero. Em suas pinturas, desenvolveu o nu feminino socialmente aceitável, associando-o a uma aura quase inocente e a uma forma de sedução aparentemente inofensiva. O nu da pintura de Cranach difere dos de Dürer, Menling e dos Van Eycks, que pintaram figuras nuas sem nenhuma intenção de despertar os sentidos.

Na pintura The Golden Ages, (fig. 5), Cranach performa um sentido que exibe o corpo nu feminino elevando-o a um grau de sensualidade impensável na Alemanha. Ele projeta um

198 RAUCH, Alexander. Renaissance Painting outside Italy. In TOMAN, Rolf (Ed.). Renaissance-art-

sculpture-culture, Bath, Uk: Parragon Publishing Book, 2011, p. 316-347.

199 Ibid., 2011, p. 317. 200 Ibid., 2011, p. 326-339.

201 ALPERS, Svettana. The Art of Describing. Dutch Art in the Seventeenth Century. Introduction, p. XXIV. Dispomnível em: <prelectur.stanford.edu/lecturers/alpers/describing.html>. Acesso em 20 ago. 2013. A autora utiliza o conceito de “cultura visual” de Michael Baxudall.

brilho mágico sobre os corpos das jovens mulheres com curvas atrativas, apresentando-as, ainda, sob uma paisagem exuberantemente florida ou contra um fundo escuro que permite a elas brilhar mais sedutoramente.

Figura 4: The Fall (Adam and Eve), Lucas Cranach, the Elder. Fonte: BORNGASSER; RAUCH; GEESE, 2011, p. 369.

Há, nas representações do corpo no sistema de regras das belas artes, do Renascimento, uma construção culta do corpo, são imagens que pertencem a um espaço hierarquisado: o espaço da visão e da razão. As práticas dessa construção são legitimadas por um aparelho teórico, que é conduzido através da escrita dos que são considerados tratadistas da teoria e da crítica sobre a excelência nas belas artes, principalmente sobre a pintura. Este aparelho teórico apropria-se das imagens do corpo nu. Esse controle erudito, culto do corpo, onde a sua imagem deve seguir as regras do estilo que a configura, está indissociável dessa rede de normas que controlam o ato criativo na arte. Como pode demonstrar Norbert Elias:

É exatamente porque ele é ‘ponto fronteira’ que o corpo está no centro da dinâmica cultural […] Portanto o corpo é ao mesmo tempo receptáculo e ator face as normas prontamente enterradas, interiorizadas, privatizadas. […] lugar de um lento trabalho de repressão, isto é, de distanciamento pulsional e do espontâneo.203

203 (VIGARELLO, 2008, p. 11, V. 1.).