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A PERSPECTIVA “ANTROPOFÁGICA” – ANALOGIA E DIFERENÇA

3.1.1 O Mesmo: uma visão de mundo que destitui a alteridade indígena

Na escrita de Léry surge um re-alocamento da imagem do espelho fiel. Ele constrói outra dimensão da rede de controle da escrita: um processo de alegorização do Novo Mundo que contribiu na criação do outro, não só a do espelho fiel, mas a do ideal perdido do antigo.222

O primeiro olhar do relato do observador para o Novo Mundo é o da comestibilidade. O que se pode comer desta terra pródiga? O que aqui se come? Como se come? Uma perspectiva da sobrevivência, ou da cupidez, do que pode ser retirado e comercializado destas terras? Desde a travessia, a chegada e a estadia em terra firme, a comida se relaciona com a mesma dinâmica: a da utilidade ou de um trabalho que produz capital.223

Numa primeira percepção, podemos nos enganar que propomos que o olhar antropofágico na linguagem de Léry seja a do sentido lato. Contudo, aqui, trata-se de uma metáfora irônica, o europeu come a cultura indígena, mas não a engole e a digere e, sim, a regurgita e devolve ao saber do conhecimento europeu transformando-a no “Mesmo”. E é esta operação de assimilação que trataremos a seguir. Ou seja: a estratégia da assimilação da cultura indígena é uma operação antropofágica, na medida em que sua alteridade é apagada.

No encontro dessas duas culturas, a assimilação de uma (a indígena) pela outra (europeia) desperta a investigação de que esta assimilação conteria, num sentido mais oculto,

222 LESTRIGANT, Frank. D’encre de Brésil. Orleans: Paradigme, 1999, p. 81: “[...] En 1552, avec l édition définitive du Quart Livre, Rabelais, introduit dans la langue française le terme ‘exotique’.”

223 CERTEAU, 2010, p. 240: “[...] do espetáculo barroco das plantas e dos animais à sua comestibilidade, das festas dos selvagens à sua utópica e moral, enfim, da língua exótica à sua inteligibilidade, desenvolve-se uma mesma dinâmica: a da utilidade - ou antes a da “produção”, na medida em que esta viagem que acresce de investimento inicial é, analogicamente, um “trabalho produtivo”, quer dizer, um “trabalho que produz capital.”

uma ação antropofágica, ou seu espelhamento, conforme ela interpreta e significa o outro a partir de suas crenças de verdade, sua razão, sua escrita, suas leis do direito, sua política e seu sistema econômico, sua religião e conduta moral, enfim, do ambiente de sua cultura

.

Para um estudo da arqueologia da construção histórica do corpo brasileiro (o indígena do século XVI), fica posta a pergunta: a assimilação de uma cultura pela outra, na relação europeu e índio brasileiro, poderia ser entendida, metaforicamente, como uma operação de controle antropofágico? O que pretendemos com estas duas palavras juntas: controle antropofágico?

A noção de antropofagia, para a história do Brasil, vem da prática de os índios tupis em devorar seus inimigos num ritual guerreiro, segundo a qual acreditavam poder assimilar as virtudes e o espírito do rival devorado. Essa é uma voz européia “voz muito antiga na tradição deste país, que em algum momento recebeu o nome de antropofagia.”224

A voz tupi, que não foi escutada, diz outra coisa: comer o outro, não para se alimentar, mas para ritualizar a relação de alteridade. Na antropofagia tupi, comer o outro era, nas palavras de Suely Rolnik, “selecionar seus outros em função da potencia vital que sua proximidade intensificaria; deixar-se afetar por estes outros desejados a ponto de absorve-los no corpo, para que as partículas de sua virtude se integrassem à química da alma e promovessem seu refinamento.”225 O corpo do rito antropofágico indígena é o corpo em sua experiência coletiva: todos participam na ingestão da carne do inimigo, com exceção do guerreiro que aprisionou o inimigo.

O assimilacionismo e a diferença, como vimos,226 são figuras básicas na experiência da alteridade, que continuarão presentes até o século XVII e, praticamente, até os dias de hoje, em todo o colonizador diante do colonizado.227 O que chamamos de controle antropofágico é a negação dos valores e das crenças do outro, para nele projetar os valores, os códigos e as normas de uma outra sociedade dita civilizada. Trata-se de reificar o outro esvaziando sua singularidade. Incorpora-se esse outro ou, em outras palavras, antropofagiza-se o outro num sentido perverso de esvaziamento de seu eu – no caso os indígenas –, assim, o outro será instrumentalizado, a serviço dos interesses de quem o incorpora, em diversas formas que o dimensionam: a condição de selvagem, de exótico, de canibal, de não cristão, de catequese, de inferioridade e de escravidão.

224 ROLNIK, Suely. Subjetividade Antropofágica. Bienal de São Paulo, 1998. Disponível em: <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Subjantropof.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2013. 225 Id.

226 TODOROV, 2011, 3-4. 227 Id.

A cultura constrói o corpo através de normas que regulam o pensamento quanto ao comportamento do corpo e, por outro lado, através da ação deste corpo controlado, que influencia e modifica a cultura e as novas formas de controle. Segundo Stephen Greenblatt:

[…] reconhecer que indivíduos e culturas tendem a apresentar mecanismos assimilativos fantasticamente poderosos, que trabalham como enzimas para modificar a composição ideológica de corpos estranhos. Esses corpos estranhos não chegam a desaparecer totalmente, mas são arrastados para dentro do que Homi Bhabba chama o ‘em-entre’, a zona de intersecção na qual todas as significações culturalmente determinadas são questionadas por uma hibridez não-resolvida e insolúvel.228

O controle do corpo brasileiro, nos primeiros encontros com a Europa, passa por um processo de escrita conquistadora, como temos visto, que passa pela percepção do índio através da lente do exotismo.229 Em Léry, opera-se um deslocamento do centro de gravidade do discurso, vê-se, aí, um processo de alegorização, nas palavras de Lestringant:

[...] é o processo de alegorização que faz do Novo Mundo, não exatamente um espelho fiel, mas o ideal perdido do Antigo. O índio, em particular, revela ao europeu sua verdade. A nudez quase edênica do ‘Tupinambá’ denuncia em contrapartida a superficialidade dos hábitos de ‘par-deçà’.230

Segundo Lestringant, no olhar de Léry observa-se uma espécie de interiorização do exotismo, na qual a representação do outro pode, por uma parte, ser objetivada, negociada e virar fetiche. Na fetichização do outro, o exotismo é interiorizado.231 A partir de Léry, afirma-se a aventura sobre o inventário, a biografia sobre o catálogo. O inventário subsiste, abundante e preciso, mas, contido e classificado, em nome da razão, nas descrições das representações sobre o Brasil “assim Léry conduz o processo a seu termo. A odisséia brasileira terá por resultado esta descoberta surpreendente que retorna o exotismo como uma pele. O exotismo apontado para acabar com a irredutível e escandalosa estranheza do familiar.”232

De agora em diante, o texto vai do domínio dos objetos ao do contemporâneo humano, do universo material às realidades morais. Em Léry, a alegoria é um desvio semântico que não petrifica, ela é movente e não se atém à reificação do mesmo sob o tratamento do outro:

228 GREENBLATT, 1966, p. 20-21. 229 LESTRIGANT, 1999. 230 Ibid., 1999, p. 136-138. 231 Ibid., 1999, p. 88. 232 Id.

[…] para Léry, o exotismo é familiar, mas num sentido muito diferente do que se via em Rabelais […] Mas o processo alegórico está lá por efeito de petrificar os comportamentos humanos em objetos materiais, vícios e escândalos metamorfoseados em écuils, recifes e monstros marinhos.233

Entretanto, a alegoria de Léry traz a dimensão da fusão religiosa com a moral e, neste lugar, se faz uma projeção sobre o Brasil e seus habitants, que a longo prazo poderá ser cansativa e empobrecida quanto ao conteúdo etnográfico:

Cansativa pelo caráter mecânico de um procedimento que consiste em colocar, de capítulo em capítulo, o selvagem sob o julgamento do civilizado. Empobrecido na medida quanto à esta moralização tecida e contínua do outro que termina por lhe tirar toda espessura e toda a substância.234

3.2 A CONSTRUÇÃO ANALÓGICA DO BOM E DO MAU SELVAGEM NA