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A consolidação da representação dicotômica da sociedade brasileira

Nas décadas de 1930 e 1940, depois, portanto, da explosão modernista que recoloca os problemas nacionais em uma nova chave entre universalismo e localismo, outros três teóricos repõem a questão dos contrastes brasileiros como critério de representação e análise da sociedade local: Gilberto Freyre e seu Casa grande & senzala, de 1933; Sérgio Buarque de Holanda, com Raízes do Brasil, de 1936; e Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior, publicado em 1942. Antonio Candido, em apresentação ao livro de Sérgio Buarque, nota justamente que

9 Sobre a questão do ―realismo‖ destes intelectuais, ao considerar prioritariamente como foco de interesse o

estado de coisas da sociedade brasileira, em detrimento da aplicação de moldes externos, ver Pécaut (1990, p. 46-47).

[no] pensamento latino-americano, a reflexão sobre a realidade social foi marcada, desde Sarmiento, pelo senso dos contrastes e mesmo dos contrários – apresentados como condições antagônicas em função das quais se ordena a história dos homens e das instituições (2006c, p. 12).

Assim, Sérgio Buarque constrói sua argumentação – num tipo de hipótese já lançado anteriormente por Tavares Bastos, a da importação de instituições e cultura política portuguesas – sobre as discrepâncias entre a colonização portuguesa e a espanhola na América Latina, constituindo dois tipos distintos de formação nacional, com prejuízo para a primeira. Entre trabalho e aventura, ladrilhador e semeador, ―método e capricho‖ (CANDIDO, 2006c, p. 13), Sérgio Buarque pôde afirmar que, à parte a adaptação de certos costumes às ―condições adversas‖ de nosso meio (2006, p. 59), ―trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossa ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra‖ (2006, p. 31). Essa afirmação, que vale por um diagnóstico completo do chamado ―bovarismo‖ (HOLANDA, 2006, p. 166) de nossas elites, dá a medida do quanto a consciência ou, ao menos, a sensação de dissonância entre a norma burguesa e a prática local, enformam certa ―consciência possível‖, por assim dizer, das classes dirigentes e das propostas político-institucionais oferecidas. Isso, claramente, repercute em nosso plano estético, sobretudo no modernismo.

Gilberto Freyre, por outro lado, atribui aos contrastes outra significação. Negando uma oposição radical entre o elemento português e o meio geográfico e social, bem como uma contraposição entre o negro escravo, o índio e o português, Freyre afirma que a civilização brasileira, fundada nos valores ―cosmopolitas‖ e ―plásticos‖ (FREYRE, 1990, p. 4) do português e na adaptabilidade contínua das culturas, constitui-se em um ―equilíbrio de antagonismos‖ (FREYRE, 1990, p. 53), dando o tom de uma fórmula que se constituirá, sem dúvida, em fator de distinção e elemento de identidade cultural e nacional brasileira. Não nega, contudo, o diagnóstico corrente da ―ausência‖ de um povo brasileiro, isto é, da sociedade civil organizada ou da vida cidadã, centradas numa classe média. Rememorando a ―função simplificadora do domínio rural‖, tal qual a havia concebido Oliveira Vianna (1978, p. 120-136), Gilberto Freyre considera a propriedade rural como a matriz fundadora de nossa nacionalidade, engendrando três classes, das quais apenas duas teriam real significação social: senhores e escravos. Aos extremos, portanto, senhores e escravos, seriam as únicas realidades sociais no Brasil. A ―classe média‖ assim, não se constitui de proprietários nem escravos, mas homens livres sem maior figuração social; lembrando Nabuco, diz dos que representam essa ―condição intermédia‖ que não são escravos, tampouco cidadãos (FREYRE, 1990, p. 35).

Caio Prado Júnior, por sua vez, é o responsável por tentar aplicar o método materialista histórico à análise da situação brasileira. No primeiro capítulo de Formação do

Brasil contemporâneo, intitulado ―Sentido da colonização‖, tenta localizar a formação

colonial como a origem das disparidades sociais e econômicas do Brasil de seu tempo, quiçá herança que perdura. Assim, afirma Caio Prado que

[todo] povo tem na sua evolução, vista à distância, um certo ‗sentido‘. Este se percebe não nos pormenores de sua história, mas no conjunto dos fatos e acontecimentos essenciais que a constituem num largo período de tempo. Uma ‗determinada orientação‘, que define tanto no tempo como no espaço, a individualidade da parcela de humanidade que interessa ao pesquisador (2000, p. 7).

Esse sentido da colonização, os seus efeitos, dariam conta de explicar as desigualdades brasileiras, fruto de uma formação nacional que herda do passado colonial a estrutura econômica e social. Matriz clássica dos estudos brasileiros de corte marxista, Caio Prado não perde de vista a sensibilidade frente às peculiaridades do que se poderia chamar de ―periferia‖ do capitalismo, o ―algo de novo‖ que nota nas palavras iniciais do livro (2000, p. 2). Nesse sentido, o Brasil se definiria como ―o passado colonial que se balanceia e encerra com o século XVIII, mais as transformações que se sucederam no decorrer do centênio anterior a este e no atual‖ (2000, p. 2). Desse modo, configurando uma verdadeira convivência entre estágios distintos de evolução do capitalismo, o Brasil poderia figurar, ao lado da civilização das cidades – também estas, evidentemente, cindidas internamente – um interior no seio do qual a história passada se encenaria. Em nota de rodapé, ao final da introdução da obra, Caio Prado nota que uma ―(...) viagem pelo Brasil é muitas vezes (...) uma incursão pela história de um século e mais atrás‖ (2000, p. 5).

Livros de transição entre o ensaísmo e a produção acadêmica que ainda demorará algum tempo a se consolidar, estes ensaios definiram formas de encarar a sociedade brasileira que remetem a uma tradição – é verdade que sem uma continuidade vivamente aparente – de leituras do Brasil, constituindo obras de interpretação e enraizamento de uma identidade palpável da nação brasileira, ainda que esta mesma identidade não possa muito mais ser que a conhecida ―imundície de contrastes‖. A relação com a virada modernista de 1922 é evidente, significando, agora, um processo de consolidação de uma identidade nacional, escorada nos anos agitados de passagem entre as décadas de 1920 e 1960, momento em que a modernização, em todos os âmbitos da sociedade brasileira – da economia à cultura – se fazia como ordem do dia. Além disso, momento em que, remetendo à ligação entre Estado e elites durante o Império, relativamente ao projeto nacional, os intelectuais tomam para si a

responsabilidade de partícipes do projeto de modernização, a partir de uma legitimidade conferida não pelo público, mas pela sua própria posição social, aparentemente à parte de um povo ainda não constituído. Assim se refere Pécaut:

No momento, não poderia existir uma legitimidade que exigisse uma

representatividade: isso implicaria que o povo já se encontrasse politicamente constituído. Só há legitimidade em relação à nação, e nada

tinha a ver com uma vontade geral: era a vontade de uma elite que fomentava as condições para o surgimento de uma vontade geral. Os

intelectuais detinham um poder legítimo devido à sua vocação nacional

(1990, p. 40, grifo nosso).

Como se vê, o abismo existente entre povo e elite intelectual, como objetivamente existente no tecido social, induz a construções teóricas de unidade nacional, que deveriam dar esteio ao projeto de mudança social via uma modernização pelo alto. Evidentemente, isso não quer dizer simplesmente que os intelectuais da época fossem cooptados pelo Estado, mas que participariam, dentro de seu próprio âmbito – um campo intelectual de uma impossível autonomia, digamos assim, dadas as condições do momento –, de uma relação estrita com o processo de mudança social em curso, que também significava uma atenção aos problemas de identidade. Voltando aos três autores significativos desta virada dos anos 1930-1940, pode-se afirmar, então, que, consolidando e aprofundando uma consciência de nossos contrastes, perfizeram leituras que marcaram intelectualmente e ideologicamente uma representação do Brasil que será fecunda, dado o alcance do diagnóstico que realizam. São livros que constituem um marco para o pensamento sobre a identidade nacional brasileira, nossas condicionantes históricas e as possibilidades de futuro para o Brasil; nas palavras de Fernando Henrique Cardoso, são livros ―que inventaram o Brasil‖ (1993b).

A representação do Brasil por meio dos contrastes ainda terá grande força no pensamento social subsequente, sobretudo na produção ligada às instituições universitárias. Jacques Lambert, em Os dois Brasis (1969) e Roger Bastide, em Brasil, terra de contrastes (1969) darão o tom do que significou essa virada dos anos 1930 para o pensamento sobre o país. Escritos por dois franceses que vieram ao Brasil como professores das então recém- fundadas Faculdade Nacional de Filosofia (RJ) e Universidade de São Paulo, constituem, de um lado, uma análise detida sobre a sociedade e economia brasileiras e, de outro, senão uma reflexão, ao menos uma fonte de consolidação e divulgação teórica do que se havia produzido quanto às interpretações sobre a identidade nacional brasileira – ponto em que o texto de Roger Bastide se distingue. O livro de Jacques Lambert é o protótipo das representações dicotômicas da sociedade brasileira: integrando a geografia, a sociologia e a economia, Lambert dá o tom de muito do que se falou e se falaria sobre o Brasil em termos de sua

separação interna, entre um setor pré-capitalista e outro integrado à modernidade do capitalismo. Não obstante a separação mais ou menos estanque que esboça, afirmando a existência de uma ―(...) diferença, grandemente acentuada, entre país novo, próspero e em constante transformação e sociedade velha, miserável e imóvel‖ (1969, p. 101), não deixa de notar que ―[os] dois Brasis estão presentes em toda parte, mas no Nordeste predomina o Brasil arcaico, no Sul, o Brasil moderno‖ (1969, p. 49). Compõe, assim, uma visão que lembra a divisão realizada por Euclides da Cunha entre os sertões e o litoral, mas sem a clivagem quase absoluta que este propõe, e muito mais próxima – do que as críticas a este modelo afirmariam – das modernas abordagens que, tratando dos desníveis gerados pelo modelo de acumulação brasileira, representam as desigualdades brasileiras como fruto de uma relação interna entre o capitalismo dito avançado e a base social precária da qual este se alimenta – estamos a falar com Francisco de Oliveira (2008).10 Assim, Lambert nota que ―[nas] condições atuais de

desenvolvimento econômico e demográfico do Brasil, não se pode negar que há exploração, inconsciente mas cruel, do Nordeste pelo Sul e do campo pelas cidades‖ (1969, p. 82).11

Roger Bastide, por sua vez, trata o Brasil nos termos dicotômicos acima mencionados, já tratados por Jacques Lambert, mas com uma ênfase maior nas questões de caráter nacional, bem como nas diferenças culturais internas à sociedade brasileira. Lembrando por vezes Gilberto Freyre, e sem dúvida também não deixando de levar em conta as leituras modernistas, Bastide compõe um quadro histórico do desenvolvimento brasileiro – obviamente com o intuito de divulgação do país no exterior, dado o próprio caráter do livro – que tem por método um ―senso dos contrastes‖, uma unidade ainda não atingida, mas que se esboça em termos de uma cultura nacional mestiça, embora baseada numa sociedade desigual, o que não ignora. O caráter distintivo desta obra está menos em sua análise propriamente sociológica do que, digamos assim, na representação estética da sociedade brasileira, a qual Roger Bastide não dispensa, quiçá por conta de suas relações conhecidas com a área artística (PEIXOTO, 2003, p. 153-155); esta passagem da introdução da obra dá a justa medida do tipo de forma dual que viemos caracterizando:

O capitalista moderno manda rezar missas em sua fábrica do mesmo modo que o senhor dos tempos coloniais mandava celebrá-las na capela de seu engenho. O padre eleva a hóstia no meio das engrenagens, das bielas,

10 Isso não significa que Francisco de Oliveira deixe de lado, por exemplo, as relações duais entre campo e

cidade, por exemplo, como método de análise. Sobre este assunto, ver Bertero (1999, p. 197-198).

11 Esta relação também se poderia notar nos escritos de André Gunder Frank, que utiliza o conceito de

―satelitização‖ para a mesma relação de exploração entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, núcleos econômicos mais ou menos dinâmicos, cidade e campo, etc. (1969, p. 25-39).

das grandes rodas que pararam por um momento, renovando entre operários brasileiros, italianos e alemães, o gesto antigo do capelão oficiando entre senhores brancos e escravos negros, perpetuando, em pleno século XX, o catolicismo familial do século XVII, enquanto, num contraste gritante, os aparelhos de rádio dos povoados coloniais apregoam aos silenciosos mestiços de índios as vantagens da Coca-Cola ou da geladeira elétrica... (1969, p. 10).

A confusão de tempos históricos, por assim dizer, a hibridez entre o moderno e o arcaico, compõe uma imagem que, do modernismo ao Cinema Novo, nos será de grande valia para a imaginação nacional. O livro, como se pode depreender deste tom estético perceptível, ainda apresenta um importante capítulo sobre as letras e as artes no Brasil, ao qual retornaremos.

Acrescentamos, ainda, antes de um certo tom de débâcle do pensamento que pensa a modernização brasileira em termos de um projeto nacional de interesse popular, corte marcado pela modernização conservadora do período ditatorial inaugurado em 1964, um importante texto de Ignácio Rangel, ―Dualidade básica da economia brasileira‖, publicado originalmente em 1957. O texto do economista vinculado ao ISEB é uma espécie de síntese do que se produziu na tradição brasileira do pensamento desenvolvimentista; desde o estabelecimento de nossas ―peculiaridades‖ econômicas, no caso, o dualismo (2005, p. 286), à relação que Ignácio Rangel estabelece entre uma tipologia mais ou menos estanque dos modos de produção em perspectiva histórica, redundando num maior ou menor esquematismo conceitual – o que implica em analisar o Brasil cindido entre o pré-capitalismo ―feudal‖ e o capitalismo. O que se pode notar, de início, é a aludida necessidade analítica de estabelecer uma relação tensa entre o influxo da norma estrangeira e a prática local, relação esta ligada aos problemas da integração do país como uma nação. Assim, embora afirme que ―[as leis] da economia brasileira são, em certo sentido, próprias, peculiares (...)‖, no sentido de uma economia cindida que se encontra em uma ―unidade de contrários‖ (2005, p. 294), não deixa de ser necessário estabelecer a semelhança estrutural que os fatores da economia brasileira estabeleciam com a dada pelo modelo central:

O latifúndio não é um instituto puramente feudal – como a nossa escravidão não era um instituto puramente escravista. Assim como a fazenda de escravos foi a versão brasileira da manufatura flamenga do século XVII, o latifúndio seria a versão brasileira da fábrica inglesa do século XIX. Ambos os institutos são também capitalistas, de modo que a eles se aplicam todas as normas que regem uma economia capitalista (RANGEL, 2005, p. 316). Em outro texto, Ignácio Rangel trata desta questão em termos, digamos, estéticos: da porteira para fora, vigem relações capitalistas; ―(...) da soleira da oficina artesanal ou da porteira da gleba para dentro, vigem ainda relações feudais‖ (RANGEL, 1978, p. 85). Trata-se, no plano econômico, da disjunção notada no plano cultural entre uma elite cosmopolita em face de uma

população excluída, da inorganicidade aparente entre um liberalismo progressista e da prática secular de controle autoritário.

À parte as refutações a estas teses que apresentam a sociedade brasileira por meio de suas dicotomias – o que não parece assunto encerrado, no entanto, na área das ciências sociais – esperamos ter colocado em questão o quão fecunda pôde ser, se ainda não é, este tipo de análise para a interpretação do Brasil. Em Sentimento da dialética, Paulo Arantes (1992) aborda diretamente a questão à qual nos propomos. Em seu estudo, a partir da crítica de Antonio Candido e Roberto Schwarz, Arantes analisa a experiência intelectual brasileira, marcada pelo ―senso dos contrastes‖, como Antonio Candido a chamaria (1992, p. 12). Paulo Arantes afirma, assim, que ―o dualismo (...), antes de se tornar modelo econômico, tipologia sociológica ou chave de interpretação histórica, foi sobretudo uma experiência coletiva‖ (1992, p. 22). Essa experiência encontra-se, portanto, como expomos, não apenas no pensamento social, mas na própria ―(...) experiência social de todos os dias‖, e completa Arantes, ―sobretudo quando filtrada pela forma estética (...)‖ (1992, p. 37).12 Nesse sentido, pensamos ser plenamente possível a passagem da representação social dual da sociedade brasileira para a representação propriamente estética que encontramos na literatura, sobretudo quando esta se vinculava a um projeto nacional. Não raramente, veremos que a literatura antecipa, e mesmo atina, com problemas e soluções de ordem sociológica que seriam trabalhados pelas ciências sociais muito posteriormente; Octavio Ianni afirmaria que ―(...) a narrativa realiza uma espécie de desvendamento. Seja sociológica ou literária, ela ‗elucida‘ o narrado, seja este real ou imaginado‖ (1999, p. 40). A forma dual de representação da sociedade brasileira, antes de uma categoria da análise, portanto, possui um valor estético de grande fecundidade para a reflexão sobre a realidade brasileira.

Nesse sentido, são notáveis as análises de Roberto Schwarz sobre Machado de Assis (2000a, 2000b), que, embora não se utilize do conceito de uma sociedade dual, pensa as contradições brasileiras na convivência íntima e necessária entre o setor ―atrasado‖ e o ―ilustrado‖ – mote de seu ensaio seminal ―As idéias fora do lugar‖ (2000a, p. 11-31). O próprio título do ensaio, que sugere a dissonância ideológica da qual viemos tratando, entre uma adesão à modernização intelectual e econômica e a base social desigual existente no Brasil, não raro proporciona mais equívocos do que a análise propriamente dita (SCHWARZ,

12 Em Interpretações dualistas do Brasil, de Custódia Selma Sena, afirma, com outras palavras, este aspecto:

―Desmontada pela economia e pela sociologia, a compartimentação dualista persistia na experiência estética pela própria impressão de dualidade que o país não cessava de produzir, pois continuava a coexistir, sem síntese, mas sistematicamente, o descompasso entre nossa herança colonial e nosso presente capitalista‖ (2003, p. 28-29).

2012, p. 163), dado que sua impressão é ser uma crítica meramente de afirmação nacional que uma recolocação do problema do tipo de desenvolvimento brasileiro em suas implicações sobre a vida ideológica e, sobretudo, na formulação literária. O ensaio centra-se no descompasso existente entre a ideologia liberal, esposada pela nação recém-independente, e a manutenção de estruturas da época colonial, isto é, uma dualidade entre uma ideologia que sói acompanhar as relações engendradas pelo capitalismo e a base econômica escravocrata, que contradiz as características propostas pelo liberalismo. Assim, forma-se um quadro interessante, no qual as elites nacionais, detentoras do poder econômico de base agrária, reproduzem uma ideologia que não encontra respaldo na situação concreta do país, o que leva aos dilemas que acompanhamos no século XIX: de um lado, a aspiração à modernização do país e sua integração à civilização, referendada pela acumulação que forja a base do princípio de livre-iniciativa; de outro, a recusa do país tendo em vista a situação de atraso, cuja mais evidente insígnia é a escravidão. Deve ficar claro, aqui, o caráter de ideologia de segundo grau (SCHWARZ, 2000a, p. 18-19) do liberalismo no Brasil, pois, enquanto as constantes agitações sociais europeias mostram às claras o disfarce universal da ideologia de classe, ainda que esta guarde na prática sua função com uma base econômica que garanta, de certo modo, o engodo, no Brasil – como, pensamos, em todo país que se encontra fora do centro dinâmico irradiador do capitalismo –13 a ideologia gira no vazio, restrita à exigência de lucratividade do latifúndio baseada em força de trabalho escrava, sem conferir liberdades formais propugnadas, legadas ao homem livre pobre apenas pela cooptação e pelo favor.14 O

13 Alfonso Berardinelli, em texto sobre a poesia moderna, aponta o cosmopolitismo (e seu caráter anti-histórico,

antigeográfico) a que esta aspira, sem que este revele, de maneira automática, a base social em que é fundada a nova lírica; em outras palavras, a aspiração universalizante da poesia moderna, fundada em tempos de um esgotamento da temática nacional e da localização individual da experiência lírica, refaz os passos do capital que, concentrado em número restrito de centros dinâmicos irradiadores, não deixa de mostrar sua discrepância e sua funcionalidade de certo modo canhestras na prática dos locais que não compartilham daquela dinâmica. A relação identificada por Berardinelli, sobretudo na poesia italiana, país periférico no capitalismo europeu, com esta aspiração universalizante e uma negação do provincianismo que lhe contradiria, guarda estreita homologia com a situação que tentamos caracterizar: ―Desde que se tornou nação e deixou de ser um mosaico de Estados regionais, a Itália também se transformou cada vez mais numa província, numa periferia da Europa. Seu desenvolvimento, a história de sua burguesia, o caráter de seus maiores centros urbanos e culturais entravam com muito esforço no modelo de modernidade representado pelo desenvolvimento da sociedade burguesa na