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Os sentidos da história nacional em O guarani: a forma dual e a conciliação

Em texto sobre a eterna promessa de formação do chamado ―país do futuro‖, José Murilo de Carvalho, a partir de algumas pesquisas empíricas, atesta a falta de heróis nacionais na consciência popular, e mesmo nas elites políticas (2002, p. 57). Assim, na ―imaginação popular‖, não haveria ―pais fundadores incontestáveis da nação brasileira‖ (2002, p. 58), com exceção de alguns ―mártires‖, sobretudo a partir da propaganda republicana em torno da figura de Tiradentes, ou de políticos fortemente identificados ao ideário popular, como Getúlio Vargas. Comparando as representações sobre os mitos fundadores do Brasil e dos Estados Unidos, e os posteriores desenvolvimentos socioeconômicos dos dois países, José Murilo nota as discrepâncias existentes entre a ideologia da formação nacional brasileira e a norte-americana, bem como estas ecoam, a partir dos dados concretos, na autoimagem do brasileiro: ―O paraíso brasileiro era para ser desfrutado, o americano, para ser construído; o poderoso império brasileiro é uma aspiração, o império americano foi transformado em realidade; o herói brasileiro é um mártir, os pais da pátria americana são construtores da nação‖ (2002, p. 62-63). Assim, afirma que o ―(...) drama do país jaz neste contraste entre sonho e realidade, aspiração e realização. O paraíso é destruído e o império pacífico não se materializa‖ (2002, p. 68). O Brasil, neste sentido, sofreria da falta crônica de uma história grandiosa que, à ausência de repercussão quando de suas tentativas de criação por parte do Estado nacional, desde os tempos de Império, não cederia à consciência popular muitos símbolos e mitos com os quais se identificar. Alguns deles, no entanto, como a natureza, a mistura benigna de raças, o cadinho cultural, teriam, e ainda têm, vida longa. A literatura romântica, ungida primordialmente pelo interesse do Estado imperial, bem como em confluência com a política de incentivar os estudos históricos via IHGB, contribuiu em grande

parte para isso. Em O guarani, a ausência de uma história pátria para que os brasileiros se mirassem parece ser o intuito primordial do livro, no qual mesmo o ―sacrifício‖ indígena, um dos elementos mais fracos politicamente dos contrastes étnicos brasileiros ao lado do negro, dada a sua repressão secular, parece compor uma narrativa de unidade étnica, que planeja forjar uma imagem de união e composição de raças, como matriz fundamental da formação do povo brasileiro.

A função dessa narrativa alencariana, nesse sentido, parece se coadunar com a necessidade de uma história pátria, que represente os elementos nacionais a serem estabelecidos simbolicamente como aspectos representativos da identidade brasileira. Éder Silveira chama a essa dimensão da obra de Alencar de ―intenção historiadora‖ (SILVEIRA, 2009, p. 101), isto é, por um lado, fabricar uma narrativa nacional adequada à representação dos elementos pátrios – nomeadamente, a natureza e o indígena – e, por outro, ancorar os resultados da construção narrativa em documentos que confiram a validade do que afirma, baseando-se sobretudo em cronistas e em estudos sobre a cultura e a linguagem indígenas.

A importância depositada sobre Alencar nesses elementos anteriormente expostos [natureza e indígena] ajuda a compreender seu zelo na escolha das tintas que darão forma tanto à natureza brasileira quanto à de seus habitantes. Sejam os habitantes anteriores ao contato, seja a população do Brasil colonial, seja a sociedade fluminense de sua época. Esse zelo reflete-se no texto de Alencar como uma preocupação historiadora que se manifesta como vontade de verdade, o que explica tanto o nada desprezível volume de citações de narrativas dos viajantes que podem ser perseguidas na ficção alencariana, quanto uma preocupação interpretativa que o aproxima das filosofias da história do século XVIII e do início do século XIX (SILVEIRA, 2009, p. 100).

De fato, a profusa utilização de notas de rodapé é uma constante na obra de Alencar, seja para discutir os aspectos históricos presentes, sobretudo, nas narrativas indianistas, quanto para justificar a escolha de itens lexicais, característica presente nos romances urbanos49 e na

averiguação das fontes para a exposição da linguagem indígena. O guarani possui mais de 50 notas de rodapé, nas quais Alencar expõe o significado de costumes e palavras de fonte aborígene, a denominação dos personagens e elementos históricos e o ambiente local; estes últimos, sempre escorados nas crônicas da colônia, como nos Anais do Rio de Janeiro, de Baltasar da Silva Lisboa. Esta prática será comum a toda narrativa indígena alencariana:

Iracema conta com 128 notas de rodapé, enquanto Ubirajara apresenta 67; neste, porém, em

49 Ver, nesse sentido, o ―Pós-escrito‖ e as ―Notas‖ ao romance Diva, nos quais perfaz uma discussão,

respondendo a críticos, sobre a presença de galicismos em sua escrita, bem como um glossário sobre as palavras utilizadas, justificando sua pertinência à linguagem literária brasileira (ALENCAR, 1965a, p. 399-406).

sua maioria, de extensão muito maior que as presentes nos outros romances – por vezes ocupando mais de uma página, e revelando uma densidade muito maior em relação às fontes de pesquisa.50 Essa preocupação crescente de Alencar, nos parece, se liga a essa ―intenção

historiadora‖ que visa, progressivamente, escorar os mitos e lendas indígenas, bem como os elementos da natureza nacional, aos documentos históricos existentes. Precisão histórica e liberdade de criação simbólica, em Alencar, parecem andar, pois, de mãos dadas.

As notas de rodapé, portanto, parecem configurar uma outra narrativa, paralela ao enredo dos romances. Nas palavras de Mirhiane Mendes de Abreu, seriam ―(...) dois universos narrativos – o enredo e as notas –, os quais, lidos em conjunto, configuram os aspectos formadores do romance romântico brasileiro‖ (ABREU, 2011, p. 13). Assim, há um jogo dúplice, na constituição destas obras, entre a ‗veracidade‘ e a ‗verossimilhança‘, em que um narrador – o narrador ―histórico‖ – comportaria o suporte historiográfico, enquanto o segundo se ligaria à narrativa propriamente dita – o narrador ―contemplativo‖ (2011, p. 18). Ambos os narradores e, por conseguinte, a junção entre a narrativa e as notas, se ligariam a um mesmo planejamento, o de incutir e representar, aos olhos do público leitor, imagens e elementos que deveriam constituir os símbolos nacionais:

[A] literatura de Alencar e, por conseqüência, a nacional, se formava seguindo um plano e, ainda, uma vez que tal plano estivesse subordinado a um projeto maior, isto é, do estabelecimento de uma imagem, uma identidade pátria, o trabalho de Alencar visava a levar a ficção para a esfera do concreto, oferecendo ao público o que melhor expressasse e legitimasse as imagens instituídas pela imaginação criadora (ABREU, 2011, p. 51). A atividade criadora, portanto, não se desvincula do propósito político de criação de uma imagem nacional. Sendo assim, a utilização das notas de rodapé visa a um controle sobre o elemento narrativo, de modo a atestar seu caráter não frívolo, ligado que estaria ao propósito maior de servir à pátria: ―[na] prática, suas notas funcionarão como prova de idoneidade dos registros e argumentos para defesa da atividade criadora, além de oferecerem informações e remissões precisas aos textos considerados oficiais sobre a história do país‖ (ABREU, 2011, p. 84). Alencar visa estabelecer, assim, através da função da dupla narrativa, um diálogo tanto com o público afeito à narrativa propriamente dita, quanto com os elementos produtores da cultura e da literatura oitocentista, em seu interesse pelo debate das coisas nacionais. Para falar com Antonio Candido, ao ―terceiro Alencar‖ (2007, p. 540) – o dos ―adultos‖, além do

50 Algumas notas a Ubirajara, assim, revelariam-se quase monografias sobre os costumes indígenas. É digna de

referência a nota redigida acerca da antropofagia, relativizando a ―barbárie‖ geralmente atribuída a este costume por parte dos cronistas. Alencar nota a pertinência ritual do costume internamente à sociedade indígena, fugindo dos preconceitos etnocêntricos de repúdio a tal prática (ALENCAR, 1965b, p. 329-332).

―heróico‖, dos ―rapazes‖, e do ―gracioso‖, das ―mocinhas‖ (2007, p. 537) – poder-se-ia somar, o interesse político que resguarda o trabalho do escritor da concepção de uma narrativa gratuita: nos romances indianistas, o respeito às fontes e a construção narrativa reforçam-se mutuamente.

Abordando a narrativa romântica sob o viés de seu conceito de ―controle do imaginário‖,51 Luiz Costa Lima lembra que, ligado já aos influxos europeus que demandavam

à literatura ―o primado da ciência‖ e da objetividade, sobretudo quando ligada ao discurso histórico nacional, na ficcionalização de dados do passado da nação, o documento histórico ganha importância como uma forma de conferir foros de veracidade factual:

Daí o privilégio do fato, do documento, que se estendia como capaz de restituir a integralidade da vida tal como foi. Nesta sociedade secularizada, o documento era reverenciado pelo historiador.

Este domínio da história factual interferia na produção literária do século, tanto de dentro quanto de fora. De dentro da produção literária, fazendo com que o gênero dominante, o romance, antes assumisse uma linha coerente com Fielding do que com Sterne, e, assim, se mostrasse como uma sucursal da história. (Ranke conta que seu entusiasmo por Walter Scott só cessou quando descobriu que a história era ainda mais cativante). (...) A literatura, para que fosse levada a sério, precisava ser dissecada como um fato (LIMA, 2007, p. 447-448).

Evidentemente, não há como negar, a nosso ver, o primado do discurso ficcional sobre o histórico em obras como O guarani. O que, nos parece, figurado na obra de José de Alencar, é uma interação entre ambas, na qual as razões da política se encontram com as imposições literárias, mais livres, do discurso ficcional. Há, portanto, uma convivência tensa, na qual à ficção presente na narrativa é conferida uma legitimidade que pareceria à primeira vista ir além do meramente ―possível‖ aristotélico, um discurso de base historiográfica, portanto, que daria guarida aos voos imaginativos da narrativa indianista. Assim, o que Costa Lima chamaria de ―veto à ficção‖ nessas narrativas românticas, nas quais não haveria nenhum hiato entre a política e o discurso ficcional autônomo (LIMA, 2007, p. 427, 430), nos afigura como uma tensão existente entre a história forjada na narrativa literária e os usos ficcionais da

51 ―Controle do imaginário‖, nas palavras do próprio autor, seria um ―mecanismo com que a sociedade

(ocidental) opera para ajustar as obras dos que privilegiam o imaginário – seus poetas e artistas plásticos – aos valores em vigência em certo período histórico dessa sociedade‖ (LIMA, 2007, p. 17-18). Assim, no caso da narrativa romântica nacionalista, os valores de observação e de atenção aos documentos históricos, úteis à construção de uma história simbólica nacional, impingiriam sobre o discurso ficcional o controle sobre sua produção, no sentido de adequar ao lugar da ficção o interesse a ser necessariamente dispendido com uma exatidão factual. Nesse sentido, se encaixariam os argumentos mais ou menos ―etnográficos‖ de Alencar em relação aos indígenas, bem como a descrição da natureza, submetidos aos documentos e à observação.

história como discurso, no qual o segundo garantiria ao primeiro foros de verdade e de interesse para a constituição da tradição pátria em um país em formação.

Em contraste, Augusto Meyer vê de uma forma diametralmente oposta o romance alencariano. Para ele, dificilmente, dados os lances folhetinescos – de resto, tão comuns em Alencar – de O guarani, a narrativa sequer poderia, sem mais, ser classificada como romance histórico, entendido este como uma ―imitação servil da crônica histórica‖ (MEYER, 1964, p. 14) – o que, de fato, o romance de Alencar não era. Afirma Meyer:

A intenção de criar o romance histórico brasileiro, ao modo de Walter Scott, agiu no seu caso como simples incitamento; a intuição criadora, arrastando-o a francas liberdades, em virtude dos arroubos incontidos da sua fantasia, revelou-se mais forte que todos os seus propósitos. A documentação histórica é um estimulante como qualquer outro, em suas leituras preparatórias, e não chega a valer como estrutura dos romances. Em

O guarani, por exemplo, só com muita complacência e repetindo sem maior

exame as próprias declarações de Alencar poderíamos ver uma ficção histórica em que se refletem as relações do conquistador com o indígena, no período inicial de povoamento. (...)

[A] contradição entre os propósitos manifestados em seu programa – criar o romance brasileiro baseado em nossa história – e os meios de que se valeu na prática, tão liberais e desenvoltos às vezes, tão caprichosos, quase sempre avessos à imitação da crônica histórica (MEYER, 1964, p. 19-20). Meyer dá seguimento ao seu raciocínio ao relacionar a história brasileira, a falta de glórias alicerçadas talvez em uma espécie de narrativa nacional oficial – propagada pelo Estado ou, mais, que faça parte de uma imaginação coletiva comunitária –, e a postura bovarista de nossas elites com relação ao conteúdo nacional e a sua anuência à influência estrangeira. A essa ausência de densidade no trato com a história local, tal qual manifestada no romance pelo emprego de símbolos nacionais em meio a uma novela de cunho quase folhetinesco,52 Meyer

chama de ―tenuidade‖ da consciência brasileira. Assim, o indianismo brasileiro teria seguido antes a influência externa – notadamente Chateaubriand –, sem que seja possível afirmar que a solução formal dada, via narrativa indianista, seja satisfatória para a composição de uma tradição pátria. Citando trecho de Sérgio Buarque de Holanda, em prefácio a livro de Gonçalves de Magalhães, no qual aquele afirma sobre nosso indianismo ser uma solução tão

52 Não vemos uma incompatibilidade entre estes lances folhetinescos e a narrativa histórica. Mesmo em uma das

principais matrizes do romance histórico, Walter Scott, a onipresença de arroubos ficcionais não invalida o interesse em compor uma narrativa histórica nacional. Ver, por exemplo, as proezas do ―cavaleiro deserdado‖ Ivanhoé na narrativa homônima de Scott, que se assemelham muitíssimo às dos herois alencarianos (SCOTT, 1994, p. 88-144).

falsa e preconcebida quanto o medievalismo europeu (apud MEYER, 1964, p. 22) – porém, nota o crítico, e isso é da maior importância: seguíamos ―com liberdade‖ –53, Meyer afirma:

Tudo isso correspondia ao ‗vazio brasileiro‘, à tenuidade da nossa consciência nacional, sem lastro de tradições sedimentadas, capaz de alimentar a obra literária prescindindo do arrimo de influências peregrinas. Daí o nosso verbalismo engenhoso e farfalhante, mais acentuado no Romantismo, que lhe era propício, aquela inevitável cesura entre conteúdo e forma, em que expressão quase sempre carece de uma necessidade funcional e íntima, e há talvez mais engenho e arte que poesia e verdade, ou genuína poesia (MEYER, 1964, p. 22).

Seríamos, novamente nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda, presentes em Raízes do

Brasil, ―uns desterrados em nossa terra‖ (apud MEYER, 1964, p. 23). Deste modo:

Que é o caso literário de Alencar – no fundo, estamos diante de um verdadeiro drama, que transcende a criação literária – senão a comprovação desse mesmo ‗vazio‘, da tenuidade brasileira manifestada em nosso complexo de inferioridade diante do formidável legado da cultura ocidental, em nossa pobre literatura de remediados e acomodados, de bacharéis em Coimbra e saudosistas de Paris, todos eles exilados em sua terra? Alencar, mais que um Gonçalves Dias, devia enfrentar com uma espécie de criação ex

nihilo. Era o mesmo problema de Porto Alegre em seu grandíloquo poema;

será mais tarde o problema de Mário de Andrade na rapsódia do herói sem nenhum caráter, com a diferença, todavia, de um travo consciente de autocrítica. (...)

[O esforço de Alencar, para dar conta de todos os aspectos da nacionalidade seria ainda] (...) o vazio brasileiro, a tenuidade da consciência nacional provocando entre os filhos de uma ‗terra virgem‘, onde tudo é ainda conjetural, problemático e conjugado no futuro, uma crise de crescimento, uma exacerbação da vontade de afirmar-se. Tão vasto era o vazio, que pedia vontade firme, pertinácia, mas também vocação, qualidades que se interpenetram e condicionam, embora comportando uma discriminação proveitosa para a análise crítica. Instinto de nacionalidade, para empregar a expressão feliz de Machado, ainda é somente uma tendência, vaga aspiração

em busca de forma (MEYER, 1964, p. 22-23, grifo nosso).

Pensamos que a solução não está na negação do ―discurso ficcional‖, tal qual expõe Luiz Costa Lima, nem na ausência de uma possibilidade de reivindicar para a narrativa nacional de Alencar um interesse histórico que praticamente inviabilizaria o projeto alencariano. Embora as razões da política e da literatura, de fato, se compenetrem – sem, no entanto, a nosso ver, comprometer o âmbito ficcional do romance indianista –, e mesmo que o romance histórico

53 Afirma Sérgio Buarque de Holanda: ―Pode dizer-se que foi [o indianismo] a maneira natural de traduzir em

termos nossos a temática da Idade Média, característica do romantismo europeu. Ao medievalismo dos franceses e portugueses opúnhamos o nosso pré-cabralismo, aliás não menos preconcebido e falso do que aquele. Seguíamos ainda nesse ponto, com liberdade, os modelos do Velho Mundo. Tanto mais quanto já existia o trabalho preparatório de Chateaubriand. E é significativo que Fenimore Cooper, tendo pretendido ser o Walter

Scott da América, seguiria os mesmos roteiros praticados mais tarde pelos que, entre nós, quiseram fazer do índio o herói nacional por excelência‖ (HOLANDA, 1996, p. 356, grifo nosso).

alencariano dispenda grande atenção aos lances folhetinescos à maneira capa-e-espada, fugindo de uma seriedade histórica que poderia parecer, à primeira vista, desejável à composição de uma narrativa pátria, pensamos que a solução esteja justamente na união da fabulação alencariana, profusa em seus arranjos de folhetim, e no interesse político posto na composição de uma narrativa nacional – lembrando ainda a proximidade da polêmica com Magalhães, na qual notamos a necessidade de Alencar em procurar uma forma que mais bem exprimisse a cor local. Some-se a isso a influência estrangeira: embora as pegadas estejam marcadas desde Denis, e ainda mais, identificadas na influência ímpar de Chateaubriand, a forma que o romance alencariano assume é muito própria, e responde a anseios claros das elites dirigentes locais em relação à composição dos elementos nacionais. A representação dos elementos nacionais, portanto, em Alencar, se daria em uma forma que figurasse os problemas e dilemas nacionais, inclusive nos pontos em que se considera que teria se omitido, como a escravidão. A forma que utiliza para reduzir as discrepâncias e contrastes brasileiros a uma unidade nacional, pensamos, é significativa de um interesse mais voltado às respostas internas que ao influxo estrangeiro, embora, como em toda nossa vida intelectual, este esteja fortemente presente, compondo parte importante das dicotomias formais do livro.

Em discussão sobre os ―romances de fundação‖ da América Latina, Doris Sommer nota o interesse dos romancistas oitocentistas em inscreverem seus romances como parte da construção histórica do país, isto é, a história como ciência e a literatura como (re)construção de um passado ideal – e projetando para um futuro os sucessos da formação da pátria – parecem se equivaler no mesmo esforço nacionalista de compor uma ―comunidade imaginada‖. Sommer argumenta que ―[para] o escritor/político oitocentista não poderia haver distinção epistemológica clara entre ciência e arte, narrativa e fato e, conseqüentemente, entre história ideal e eventos reais‖ (SOMMER, 1990, p. 76, tradução nossa). Talvez a identificação não fosse tão direta;54 é inegável, porém, que representavam, a história e a literatura, nos

países em formação, esforços em um mesmo sentido. Ambas, portanto, seriam narrativas dispostas a cumprir papel análogo: preencher o imaginário nacional com um passado projetado, que pudesse fornecer respostas ideológicas à formação nacional, ao mesmo tempo que interferiria sobre o presente e prefiguraria o futuro baseado nos termos buscados em tempos transactos. Nesse sentido, Sommer lembra passagem de um ensaio de Andrés Bello, escritor venezuelano, no qual este observava ser ―besteira insistir em escrever história

54 Oswaldo Orico, biógrafo de Alencar, nesse sentido, comenta o pouco caso de seus colegas da Câmara em

‗científica‘ – em oposição à narrativa – nas Américas. Não que o estudo empírico e ‗filosófico‘ seja inválido, mas seria inapropriado ou prematuro em um continente no qual até mesmo os dados históricos mais básicos estariam faltando‖ (SOMMER, 1990, p. 77, tradução nossa). Assim, Bello apoiaria, em seu ensaio, a opção da narrativa:

Quando a história de um país não existe, exceto em documentos incompletos, esparsos, em vagas tradições que devem ser compiladas e julgadas, o método narrativo é obrigatório. Deixe qualquer um que o negue citar uma história geral ou particular que não tenha começado desta maneira (BELLO apud SOMMER, 1990, p. 77, tradução nossa).

Deste modo, poder-se-ia imaginar se a própria narrativa não seria uma história ―mais verdadeira‖ (SOMMER, 1990, p. 77, tradução nossa), dado que a ―consciência de sua própria natureza suplementar daria uma maior liberdade para construir a história, não a despeito, mas