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A visão dual do Brasil se ancora, de maneira mais sistemática, na produção de Euclides da Cunha, na passagem do século XIX para o XX. Esse é um momento de impasse, no qual a República, mantendo estruturas econômicas arcaicas, rurais, de bases políticas localistas, insuficientes, portanto, para render uma unidade mais forte das regiões brasileiras em torno do Estado nacional e de uma identidade sociocultural comum, possibilita uma reflexão que retoma tópicos já esboçados anteriormente: a dissociação entre Estado e sociedade – ou a correlata ―ausência de povo‖; a cisão entre litoral e interior; a cultura importada e as possibilidades de autonomia; imigração e racismo; modernização e manutenção de uma economia de cunho neocolonial; entre outras questões que serão mais bem trabalhadas com o amadurecimento do ensaio, da literatura e da reflexão, como um todo, durante o século XX. Euclides, nesse sentido, embora não seja o primeiro a realizar este tipo de representação, a solidifica, enfeixando muitos dos debates precedentes. Entre eles, o da formação do povo brasileiro, da investigação do caráter nacional, e o da desigualdade que se confunde, claramente, com a divisão econômica, social, étnica e cultural brasileira. Essa tradição que encontra um ponto nodal em Euclides pôde, mesmo com as modificações a ela conferidas ao longo do tempo, configurar a leitura de uma sociedade que se encontraria sem forma definida, sem algo que a sustente, espécie de ―geleia geral‖ que se torna, por fim, até mesmo parte da identidade nacional. Nesse sentido, afirma Wanderley Guilherme dos Santos sobre Euclides:

Foi talvez Euclides da Cunha, no ensaio Da Independência a

República, publicado pela primeira vez em 1900, quem chamou a atenção

para a existência de dois Brasis: um, urbanizado, litorâneo, desenvolvendo- se com os benefícios da atenção governamental; outro, constituído pelas populações rurais, estagnado, sobrevivendo por si mesmo, fora do âmbito da ação ou interesse governamentais. (...) Embora este esquema seja apenas incidental no contexto geral do ensaio, é altamente importante na medida em que estava por vir, a saber, descobrir uma dicotomia à qual possa ser racionalmente atribuída a origem das crises; traçar a formação da dicotomia no passado histórico nacional; propor a alternativa para a redução da dicotomia. Tal é a estrutura básica do paradigma (1978, p. 44-45).2

2 A questão da precedência de Euclides nos parece ser a mais correta, embora não faltem outras interpretações,

ou mesmo possibilidades de enriquecer essa tradição, já enveredando pelo século XIX ou XX. Jacob Gorender diz que ―(...) terá sido [João Frederico] Normano possivelmente o primeiro a falar em dualismo com relação ao Brasil‖ (1978, p. 303). Este economista, na sua obra Evolução econômica do Brasil, de 1938, afirma que o ―(...) Brasil consiste atualmente em duas partes: uma que constitui a causa, o fator e a razão de ser da economia nacional; e a outra, ainda dependente e na carência de tudo, para conseguir o seu desenvolvimento econômico. A primeira está na idade moderna, a segunda figura ainda pelas suas condições no período colonial. Séculos de

No ensaio referido por Wanderley Guilherme dos Santos, Euclides esboça, pois, esse tipo de análise, caracterizando uma dicotomia geográfica e étnica, bem ao gosto dos tempos de passagem entre os séculos XIX e XX. Euclides fala do

(...) crescente desequilíbrio entre os homens do sertão e os do litoral. O raio civilizador refrangia na costa. Deixava na penumbra os planaltos. Os maciços de um continente compacto e vasto talhavam uma fisionomia dupla à nacionalidade nascente. Ainda quando se fundissem os grupos abeirados do mar, restariam, ameaçadores, afeitos às mais diversas tradições, distanciando-se do nosso meio e do nosso tempo, aqueles rudes patrícios perdidos no insulamento das chapadas. Ao ‗cabano‘, se ajuntariam no correr do tempo o ‗balaio‘, no Maranhão, o ‗chimango‘, no Ceará, o ‗cangaceiro‘, em Pernambuco, nomes diversos de uma diátese social única, que chegaria até hoje, projetando nos deslumbramentos da República a silhueta trágica do ‗jagunço‘... (CUNHA, 1967, p. 205-206).

Trata-se, portanto, de um ―(...) antagonismo formidável do deserto e das distâncias, que ainda hoje tanto empece o pleno desenvolvimento da vida nacional‖ (CUNHA, 1967, p. 206). Seria, pois, o reconhecimento de uma heterogeneidade social, que impediria a plena constituição nacional, seja na questão étnica, geográfica ou, por fim, na econômica. Em ―Nativismo provisório‖, Euclides da Cunha toca outro ponto sensível de nossa heterogeneidade. Considerando a ausência de ―integridade étnica‖ do povo brasileiro, Euclides lamenta a ausência de resistência ―diante dos caracteres de outros povos‖ (CUNHA, 1975, p. 136), pregando que

[para] este conflito é que devemos preparar-nos, formulando todas as medidas, de caráter provisório embora, que nos permitam enfrentar sem temores as energias dominadoras da vida civilizada, aproveitando-as cautelosamente, sem abdicarmos a originalidade das nossas tendências, garantidoras exclusivas da nossa autonomia entre as nações (1975, p. 137). O conflito, isto é, um conflito entre as tendências internacionais para as quais nossos olhos sempre estariam voltados e a originalidade necessária, nacional, se resolveria pela ação legal e política, preparando as instituições para elaborar, na base de uma ―revisão constitucional‖, ―(...) medidas que contrapesem ou equilibrem a nossa evidente fragilidade de raça ainda

evolução separam Mato Grosso de São Paulo‖ (1975, p. 35). É possível, evidentemente, que este tipo de abordagem econômica seja, aqui, realmente precedente a outras de mesma chave analítica, desenvolvidas posteriormente. Porém, nos parece que o enfoque destas dicotomias não se reduz apenas à esfera econômica: conforme o aparato teórico adotado – e foram vários, do final do século XIX até, pelo menos, a produção da CEPAL e do ISEB –, a dualidade entre modos de produção ou estágios econômicos pode tornar-se um panfleto feito em nome da civilização contra a barbárie, contra a deterioração racial brasileira, baseada nas teorias raciológicas europeias (quando do período da questão da mão de obra frente à Abolição), da dualidade entre um povo-massa inerme e sem consciência, em contraposição a uma elite aristocrática dirigente, etc. O que muda é a chave de análise, mas não a estrutura básica: o estudo das dicotomias, com uma explícita ou implícita solução que daria cabo de saná-las.

incompleta, com a integridade absorvente das raças já constituídas‖ (CUNHA, 1975, p. 137- 138).

Já se nota, aqui, a chave de análise que Euclides da Cunha mobilizará para interpretar a Guerra de Canudos, tal como levada a público em Os sertões (1902). Antes, porém, de abordar a obra capital de Euclides, cabem alguns comentários sobre o Diário de uma

expedição, que colige cartas e anotações de Euclides realizadas no momento da quarta

expedição militar enviada para debelar a ―cidade de taipa‖ dos jagunços. Nesse livro já está presente quase tudo o que será apresentado, no tocante à intepretação dicotômica da sociedade brasileira, em Os sertões. Desse modo, percebe-se no olhar do repórter Euclides uma visão extremamente cindida sobre a realidade nacional, a qual deve se vincular ao choque entre o republicanismo militante do autor com a visão das mazelas e da ubiquidade do atraso brasileiro, colocando em suspensão o progresso que advoga, até que se constitua uma unidade nacional que dê margem para a construção civilizatória. Desse modo, afirma Euclides, em escrito datado de 7 de setembro de 1897, em Monte Santo:

Olhando em torno o que se observa é o mais perfeito contraste com a feição elevada desta data ruidosamente saudada.

As impressões aqui formam-se através de um jogo persistente de antíteses. Situada num dos lugares mais belos e interessantes do nosso país, Monte Santo é simplesmente repugnante. A grande praça central ilude à primeira vista. Quem ousa atravessar, porém, as vielas estreitíssimas e tortuosas que nela afluem é assoberbado por um espanto extraordinário. Não são ruas, não são becos, são como que imensos encanamentos de esgoto, sem abóbadas, destruídos (2000, p. 164).

Nesta passagem, notando a coincidência do estado precário da vila de Monte Santo com a ocorrência da data festiva, Euclides põe a nu o corrente mal-estar entre o destino civilizatório que se tentava erigir e a realidade que não corresponde à imagem de nação moderna. Esse tipo de representação, que põe em xeque o descompasso entre a aspiração das elites e o estado real da sociedade brasileira, será a tônica de muito do que se fará no tocante à representação dicotômica da realidade nacional, à qual tanto a análise realizada pelo pensamento social, quanto a imagem estética consolidada pela literatura e outras artes, se referirão.3

3 Nos mesmos moldes, cabe citar um conto de Raul Pompéia, publicado em 1883, ―14 de julho na roça‖, que

narra uma festa republicana em uma fazenda escravista, comemorando o dia da queda da Bastilha, marco da Revolução Francesa. No conto, no mesmo momento em que o dono da fazenda e convivas comemoravam a data, um negro escravo, que havia fugido, era castigado pelo feitor: ―De um lado, 14 de julho; de outro, a punição de Emílio, o negro fugido... (...) Sentia-se realmente nas trevas do ar o grande anjo da igualdade roçando com a ponta das asas brancas os dois extremos do horizonte‖ (1981, p. 109). É de se notar a dissonância aqui figurada, entre o discurso liberal, à moda brasileira, das elites, e a manutenção de relações escravistas no âmbito econômico. Devo essa referência ao colega Franco Baptista Sandanello.

Ainda no Diário, Euclides nota o que significaria, para o Estado republicano, a derrota do reduto pretensamente monarquista de Canudos:

(...) consideremos o fato sob o seu aspecto real – o que se está destruindo nesse momento não é o arraial sinistro de Canudos: – é a nossa apatia enervante, a nossa indiferença mórbida pelo futuro, a nossa religiosidade indefinível difundida em superstições estranhas, a nossa compreensão estreita da pátria, mal esboçada na inconsistência de uma população espalhada em país vasto e mal conhecido; são os restos de uma sociedade velha de retardatários tendo como capital a cidade de taipa dos jagunços... (2000, p. 91)

Tratar-se-ia, em poucas palavras, da vitória da civilização sobre a barbárie, chave de leitura que dá a tônica dos escritos sociais e políticos que partem do pressuposto da necessidade de construção de uma nação moderna, o que constitui a grande esperança posta ao longo de nossa história, nos sabidos surtos de desenvolvimento ou na pregação entusiástica de redução das discrepâncias nacionais. Assim, afirma Euclides, ―(...) [depois] da nossa vitória, inevitável e próxima, resta-nos o dever de incorporar à civilização estes rudes patrícios que – digamos com segurança – constituem o cerne da nossa nacionalidade‖ (2000, p. 140). Essa notação, porém, de que os sertanejos constituiriam o ―cerne da nacionalidade‖ brasileira, já lança algo do que será a análise empreendida em Os sertões, na qual o tom de depreciação da formação racial do habitante do sertão convive com o libelo aposto à campanha contra Canudos. Essa dualidade entre análise e denúncia, ensaio ―sociológico‖ e condenação da barbárie presente na ação do Estado, já aparece em uma pequena passagem:

Quando eu voltei, percorrendo, sob os ardores da canícula, o vale tortuoso e longo que leva ao acampamento, sentia um desapontamento

doloroso e acreditei haver deixado muitos ideais, perdidos, naquela sanga maldita, compartindo o mesmo destino dos que agonizavam manchados de

poeira e sangue... (2000, p. 218, grifo nosso).

Os ―ideais perdidos‖ – republicanismo, progresso, integração nacional – dão lugar à visão de uma nação cindida, na qual os elementos deixados à margem, longe de simples óbices ao desenvolvimento, como para Euclides não deixam de ser, configuram a convivência, no mesmo território, entre o litoral cosmopolita e o sertão abandonado, engendrando uma imagem nacional dual que terá largo fôlego em nossa tradição.

Os sertões, obra máxima de Euclides da Cunha, presta-se perfeitamente ao objetivo

que traçamos, a comparação da representação do Brasil pela literatura e pelo pensamento social. A obra, considerada ao longo do tempo, de um lado, como ―(...) o primeiro ensaio de descrição sociográfica e de interpretação histórico-geográfica do meio físico, dos tipos humanos e das condições de existência no Brasil‖ (FERNANDES, 1977, p. 35), mas também tida como uma obra de literatura, engendra, da maneira mais clara possível, a interpretação do

Brasil em termos dicotômicos. A convivência neste livro entre ciência e literatura é parte do que Walnice Nogueira Galvão chama de ―caráter polifônico do livro‖ (2011, p. 169). Roberto Ventura, sobre este caráter dúplice do texto de Euclides, afirma que

[é] uma obra híbrida, que transita entre a narrativa e o ensaio, entre a literatura e a história. Obra que oscila entre o tratamento científico e o enfoque literário, com excesso de termos técnicos e profusão de imagens. Daí resulta um estilo barroquizante e exuberante, repleto de dissonâncias e antíteses, cuja singularidade advém da aliança incomum entre narrativa, história e ciência (2003, p. 201-202).

A duplicidade formal encontrada, entre ensaio e obra de arte, inaugurada pela resenha de José Veríssimo realizada logo após o lançamento da obra (VENTURA, 2002, p. 15),4 não é sem

precedentes na tradição literária latino-americana. Aliás, tampouco é sem precedentes a representação dicotômica da realidade que Euclides da Cunha sistematiza para o Brasil, abrindo as portas a uma larga tradição de análise. O misto de libelo político, análise sociológica e romance de formação nacional argentino representado pelo Facundo, de Domingo Faustino Sarmiento, publicado em 1845, já demonstrara relação com questões semelhantes que parecem, inclusive, abrir caminho para a análise de uma representação dual das nações recém-independentes pela produção cultural destes países.

De fato, na crítica que Bolívar Lamounier faz a Wanderley Guilherme dos Santos, na análise da tradição do chamado ―pensamento político autoritário‖ da Primeira República, entre vários reparos, diz que ―a disjunção entre o ‗país real‘ e o ‗país legal‘ é uma forma narrativa extremamente comum em todos os países onde se verificou uma reação forte contra o iluminismo e o constitucionalismo abstrato do liberalismo francês do século XVIII‖ (1978, p. 354). Concordamos com Bolívar Lamounier neste reparo, embora o acerto de identificar esta ―forma narrativa‖ na tradição do pensamento político e social brasileiro, tal como realizado por Wanderley Guilherme dos Santos, nos pareça sair ileso. Isso porque, evidentemente, o projeto nacional civilizatório era comum às jovens nações latino-americanas e também aos países europeus de modernização tardia, tais como a Itália. Pode ser comum a

4 E corroborada pelo próprio autor, em carta ao crítico mencionado, na qual Euclides fala sobre o ―(...) consórcio

da ciência e da arte‖, como ―(...) tendência mais elevada do pensamento humano‖ (GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 143).

esses casos,5 mas não deixa de ser uma constante também brasileira, sobretudo quando da sua

continuidade, no decorrer século XX, nos projetos de superação do subdesenvolvimento.6

O escritor e crítico argentino Ricardo Piglia, em prefácio ao livro de Sarmiento, nota com acuidade o caráter híbrido, o ―duplo vínculo‖ entre palavra política e forma literária na representação da história nacional argentina (2010, p. 17), tal qual percebemos em Os sertões. O aspecto principal reside no fato de que Sarmiento coloca em termos claros e mutuamente excludentes a oposição estrutural entre os fatores constitutivos da formação da nação argentina, no âmbito de um embate entre civilização e barbárie, isto é, entre atraso e filiação a formas arcaicas e bárbaras de vida, e a adesão ao movimento e à ideia de progresso linear de tipo europeu-capitalista – a civilização. Essa oposição é o núcleo central da interpretação dualista das sociedades latino-americanas, a qual aparece amiudadamente, em variadas formas e matizes. Sobre o Facundo, Jorge Luis Borges diz:

O Facundo nos propõe uma alternativa – civilização e barbárie – que é aplicável, segundo penso, ao processo global de nossa história. Para Sarmiento, a barbárie era a planície das tribos aborígenes e do gaúcho; a civilização, as cidades. O gaúcho foi substituído por colonos e operários; a barbárie não está apenas no campo, mas na plebe das grandes cidades, e o demagogo ocupa a função do antigo caudilho, que era também um demagogo. A alternativa não mudou (1985, p. 157).

Percebe-se, pelo texto de Borges, a permanência do dilema nacional, a cisão entre um setor que se filia à modernização ocidentalizante e a persistência de marcas contraditórias à norma civilizacional ambicionada. Não é difícil perceber, nesse sentido, que a questão assim posta se refere ao processo histórico de formação nacional, marcado por episódios violentos que, vistos sob essa perspectiva dual, nos indicam uma relação de adequação-inadequação frente ao modelo europeu, uma dicotomia entre localismo e cosmopolitismo que guarda vínculos evidentes de classe em seu projeto nacional.

Os sertões apresenta a mesma questão básica presente no livro de Sarmiento. À parte a

estrutura semelhante, uma representação da dualidade campo-cidade, civilização-barbárie, através da disposição terra-homem-luta, as duas obras apresentam os processos históricos violentos em regiões distantes da civilização citadina de modelo europeu, da ―imposição do modelo civilizatório capitalista e da constituição do Estado nacional moderno‖ (HARDMAN,

5 Encontra-se, também, na análise que Mariátegui faz do Peru (MARIÁTEGUI, 1975, p. 9-11). Ainda, Ángel

Rama, crítico uruguaio, diz que nossas sociedades estão divididas entre dois tipos de cultura, uma tradicional, popular, que engloba a maior parte da população, e outra cosmopolita, bem mais restrita (RAMA, 1982, p. 63- 70).

6 Como realizado, por exemplo, nas análises cepalinas. Ver, sobre este assunto, texto de Adolfo Gurrieri (2011,

2010, p. 465, 474). Isto é, representam o ―caráter da revolução burguesa na América Latina‖, geralmente ocorrida de forma autoritária e oligárquica (IANNI, 1983, p. 25). Em Os sertões, porém, a adesão à lei do progresso, que deve triunfar, ―(...) no final, sobre as tradições envelhecidas, os hábitos ignorantes e as preocupações estacionárias‖ (SARMIENTO, 2010, p. 59), tal como a define o escritor argentino, é menos unívoca, e o tom de libelo, de denúncia, não permite ver no massacre da população de Canudos senão um ―crime‖, o qual lhe cabe denunciar (CUNHA, 2003, p. 14). Entretanto, ambos os autores mostram interesse especial pelo tipo social que figura no setor apartado da civilização, o gaúcho, em Sarmiento, e o sertanejo, em Euclides. Sarmiento afirma, ao tratar dos costumes gaúchos, que estes ―um dia embelezarão e darão timbre original ao drama e ao romance nacionais‖ (2010, p. 107-108), ao passo que Euclides, em passagem muito conhecida, afirma que ―[o] sertanejo, é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral‖ (2003, p. 105); além disso, o caracteriza como ―a rocha viva da nossa raça‖, na qual ―(...) entalhava- se o cerne de uma nacionalidade‖ (2003, p. 485).

Como se vê, parece haver uma relação intrínseca entre o elemento racial ou social específico – o sertanejo – e um projeto nacional civilizatório que se intentava colocar em prática. A questão, ainda, não se restringe ao plano racial, mas também ao cultural: os ―mestiços neurastênicos‖ seriam ligados a uma cultura de importação, imprópria para o meio social brasileiro e para nossas raças despreparadas para a civilização,7 enquanto os sertanejos, apartados da civilização do litoral – além de se constituírem dos ―melhores elementos raciais‖ de brancos bandeirantes e indígenas (GALVÃO, 2011, p. 162) – permaneceriam como elementos forjados sob um plano climático e geográfico, como pregavam as interpretações da época, que facilitariam sua constituição enquanto elemento social particular, brasileiro, original. Ainda que note que o brasileiro não tenha uma ―unidade de raça‖, o que atrapalharia os destinos nacionais caso a ―evolução biológica‖ não se esteie na ―garantia da evolução nacional‖ (CUNHA, 2003, p. 71), não deixa de notar que o sertanejo pode vir, se conduzido à civilização, a ser o tipo forjador da nacionalidade brasileira.

É de se notar, aqui, a conjunção entre identidade nacional – garantida, pelas leituras da época, em uma unidade racial a ser conquistada – e projeto nacional civilizatório, que daria

7 ―Ao invés da inversão extravagante que se observa nas cidades do litoral, onde funções altamente complexas se

impõem a órgãos mal constituídos, comprimindo-os e atrofiando-os antes do pleno desenvolvimento – nos sertões a integridade orgânica do mestiço desponta inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas, capaz de evolver, diferenciando-se, acomodando-se a novos e mais altos destinos, porque é a sólida base física do desenvolvimento moral ulterior‖ (CUNHA, 2003, p. 103).

guarida a uma formação nacional integradora. A imagem que Euclides oferece do sertanejo, um ―forte‖, mas com a ―fealdade típica dos fracos‖, um ―Hércules-Quasímodo‖ (CUNHA, 2003, 105) vale por uma autoimagem do brasileiro e da nação, uma alegoria literária por excelência, que traz em seu âmbito a marca da integração entre uma fraqueza e uma força potencial, a ser ou não despertada, mas guardando essa possibilidade como uma esperança nacional de completar-se em sua formação. A histórica não resolução dos dilemas sociais