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PARTE I DA CONSTITUIÇÃO COMO LIMITE À CONSTITUIÇÃO COMO

4. A constituição inclusiva

4.2. A constituição aberta

A resposta à questão, com que nos vimos debatendo, de determinar se e em que medida a constituição – e, em especial, a nossa constituição - pode trazer uma resposta à questão do pluralismo, pressupõe destrinçar e mediar diferentes níveis de análise sobre a constituição, contrapondo um conceito abstrato e universalizável de constituição a um conceito concreto, particular, ou a “constituição ideal” à “constituição real”, referida a uma determinada comunidade política e aí buscando o seu contexto de compreensão243. Adotaremos, como método, o do “diálogo fecundo entre perspetivas” sobre o conceito e as funções da constituição244, tendo por pano de fundo um cenário já apelidado de “dissolução da teoria da constituição”245.

Podemos contrapor, na linha de SCHMIDT, um conceito absoluto a um conceito relativo, bem como um conceito positivo a um conceito ideal de constituição246, este                                                                                                                

241

J.J.GOMES CANOTILHO, “Jurisdicción...”, cit., p. 439 e 242

Idem, cit., p. 434 ss. 243

Esta distinção pode igualmente espelhar-se na distinção entre constitucionalismo e constituição, vd. MICHEL ROSENFELD, “The identity of the constitutional subject”, in CaLR, vol. 16, 1995, p. 1049 ss., p. 1063 ss.

244

Assim, PAULO FERREIRA DA CUNHA, “Do conceito de constituição na doutrina portuguesa contemporânea”, Separata de Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Coimbra, Universidade de Coimbra/Coimbra Editora, 2001, p. 551 ss., p. 580, tendo presente que as divergências em torno do conceito poderão ser interpretadas como convidando a um diálogo fecundo entre perspetivas mais que a uma definição dogmática.

245

J.J.GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional…, cit., p. 1355 ss. 246

último remetendo para o conteúdo da constituição do constitucionalismo moderno, no qual convergem as exigências de proteção dos direitos fundamentais e de limitação e controlo do poder, tal como superiormente consagrado no sempre invocado art. 16.º da DDHC (1789)247. Este corresponde ainda ao conteúdo da constituição em relação ao qual se verifica um acordo a um nível abstrato ou universalizável: o constitucionalismo (ou seja, a regra e ordem constitucional como ideal) exige a imposição de limites aos poderes de governo, adesão ao rule of law (princípio da legalidade e da constitucionalidade, ou Estado de direito) e garantia de proteção dos direitos fundamentais248.

Impõe-se aludir ao binómio constituição como limite e a constituição como fundamento249 (sem prejuízo de a análise da história constitucional poder ilustrar de formas diferentes a importância destas duas dimensões em diferentes sistemas constitucionais e, nestes, em diferentes momentos). Trata-se, por conseguinte, de retomar as questões essenciais da constituição como ‘ordem fundamental’ de uma comunidade política - quem, na comunidade, detém o poder, quem pertence à comunidade e quem dela está excluído, e por que valores coletivos se rege tal comunidade - questões cuja resolução, com um certo grau de estabilidade, permitem afirmar que uma comunidade está “constituída de uma certa forma” 250 (ou que tem uma determinada identidade251). A constituição é, porém, “forma que aspira a um fim”, qual seja o de “regular a vida da comunidade política de modo a que o poder que nela se exerça seja um poder efetivamente limitado pelas suas próprias normas”, limitação essa que, por sua vez, ocorre fundamentalmente através da fixação de um elenco de direitos (“parte subjetiva”) e da organização do poder de acordo com um                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              

Conceito Ocidental de Constituição”, in RLJ, n.ºs 3743 e 3744, 1986. 247

Alude-se, pois, ao conceito moderno de constituição, ou, na expressão de PAULO

FERREIRA DA CUNHA, Direito Constitucional Geral, cit., p. 97 ss., à tríade mítica do constitucionalismo moderno: documento escrito, direitos fundamentais e divisão de poderes, diferente do conceito institucional ou histórico-universal de constituição. Sobre estes conceitos, supra, Cap. I, 1.

248

MICHEL ROSENFELD, “Constitutional identity”, in The Oxford..., cit., p. 756 ss., p. 757 e The Identity…, cit., p. 3.

249

Sobre esta dupla dimensão, RAINER WHAL, “In defence of constitution”, in The twilight..., cit., p. 220 ss., p. 221 ss.

250

Na linha de ROGÉRIO E. SOARES, “O conceito...”, cit., p. 36 ss., retomado por MARIA

LÚCIA AMARAL, A Forma..., cit., p. 19. 251

princípio de separação (“parte orgânica”)252. Na verdade, duas dimensões não separáveis, se entendermos que a limitação do poder serve o propósito da realização dos direitos fundamentais e, por conseguinte, que a discussão sobre a legitimidade da constituição impõe a referência aos direitos fundamentais253.

A “constituição do constitucionalismo” ou do neoconstitucionalismo é uma constituição normativa254, normatividade, hoje em dia, reformulada como “internormatividade”. O reforço da normatividade da constituição transnacional tem, porém, como contrapartida, a debilitação da dimensão normativa da constituição nacional, rectius, da superioridade normativa da constituição nacional255. Como vimos, de acordo com a perspetiva pluralista, não se trata de abaixamento de grau na hierarquia normativa, mas antes de heterarquia e diferenciação funcional concretizada em diálogos constitucionais complexos. A passagem à internormatividade faz, outrossim, avultar a função de reserva identitária das constituições nacionais, ou de proteção do núcleo essencial da identidade constitucional (vd. infra).

A “força normativa” da constituição, por seu turno, não resulta apenas de uma decisão constituinte nesse sentido, como escreve MARIA LÚCIA AMARAL – tal pode ser condição necessária, mas não é condição suficiente256. A normatividade de uma constituição, a sua capacidade de se impor à realidade (sem que isso implique asfixiar a realidade), ensina, resulta ainda de pressupostos internos e externos257, quais sejam a sua capacidade de canalizar democraticamente a afirmação de interesses divergentes das forças sociais e políticas, através do princípio democrático e do reconhecimento de uma margem de liberdade ao legislador que preserve a sua liberdade política, bem como garantindo que as normas constitucionais possam corresponder a um projeto comum que corresponde às aspirações de uma comunidade258.

                                                                                                               

252

MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma..., cit., p. 37, traduzindo-se no chamado conceito racional-normativo de constituição.

253

LUZIA PINTO, Os limites…, cit., p. 139 ss. 254

MARIA LÚCIA AMARAL,A Forma..., cit., p. 93 ss. 255

LUIGI FERRAJOLI, “Pasado…”, cit., p.19. 256

MARIA LÚCIA AMARAL,A Forma..., cit., p. 99. 257

Idem, cit., p. 96 ss. 258

Como escreve PEREIRA COUTINHO, admitida uma parametrização normativa, ela tem, em todo o caso, de ser comunitariamente assumida, “já que sem comunidade que nela se reveja (...) nada pode salvar o Direito que a reflete”259, e constantemente renovada260, aludindo-se a propósito ao conceito de dinamismo constitucional261. Trata-se, por conseguinte, de salientar que a vigência de uma constituição no tempo exige uma “vontade de constituição” que lhe esteja subjacente, declinada como “vontade geral” permanentemente atualizada, como propõe PEREIRA COUTINHO na senda da “vontade de constituição” a que alude HESSE e da “cultura constitucional” a que alude HÄBERLE e, também entre nós, JORGE MIRANDA e PAULO FERREIRA DA CUNHA – ou seja, que na ausência de uma adesão à normatividade constitucional por parte daqueles que se lhe subordinam, a mesma se encontra condenada 262.

A constituição não desempenha apenas uma função conformadora, de “construção da unidade jurídica da comunidade”, mas também uma função integradora263, entendida como processo contínuo264 de “construção da unidade

                                                                                                               

259

LUÍS PEREIRA COUTINHO, A autoridade…, cit., p. 545. 260

Idem, cit., p. 377. 261

Na dupla aceção de “necessária renovação em cada geração do compromisso ético que subjaz à Constituição, sob pena de esta não subsistir no tempo”, e “necessária atualização da normatividade constitucional escrita e não escrita” para que esta “permaneça refletora daquele compromisso no âmbito de renovados circunstancialismos históricos”, vd. LUÍS PEREIRA

COUTINHO, A autoridade…, cit., p. 377. 262

LUÍS PEREIRA COUTINHO, A autoridade..., cit., p. 377-380. Sobre estes conceitos, PETER

HÄBERLE, Teoria…, cit., p. 36 ss., KONRAD HESSE, Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, Heidelberg, Müller Verlag, 1999, p. 16 ss., JORGE MIRANDA, Manual…, Tomo II, cit., p. 54 ss. e p. 68 ss. e PAULO FERREIRA DA CUNHA, Constituição & Política. Poder Constituinte, Constituição material e cultura constitucional, Lisboa, Quid Juris, 2012, p. 29 ss., sustentando que uma cultura constitucional do nosso tempo terá de assentar em três princípios mínimos: estabilidade da constituição, primado ou prevalência da constituição sobre o demais Direito, e constitucionalidade das leis.

263

Retomando CASTANHEIRA NEVES, o Direito é fator de uma determinada integração a manter mas também, e antes de mais, expressão de uma integração pressuposta, nada podendo contra a sua desagregação, apud LUÍS PEREIRA COUTINHO, A autoridade…, cit., p. 361. Coube a Smend aprofundar o conceito de integração, com importantes consequências para a interpretação dos direitos fundamentais e para a sua afirmação como valores estruturantes da ordem jurídica. Sobre a questão, JOAQUÍN BRAGE CAMAZANO, “La doctrina de Smend como punto de infléxion de la hermenêutica y concepción de los derechos fundamentales por los tribunales constitucionales a partir de la segunda posguerra”, in RIDPC, n.º 11, 2009, p. 95 ss. 264

Na linha de SMEND, vd. JOAQUÍN BRAGE CAMAZANO, “La doctrina…”, cit. e, entre nós, também MANUEL AFONSO VAZ, Teoria da Constituição, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 45.

política265, ainda que esta última, e a sua articulação com a dimensão normativa, possam ser objeto de entendimentos diferentes266. A integração de tipo material ou objetivo, na linha proposta por SMEND, implica um conjunto de valores vividos como comuns pela comunidade, uma “socialidade de vivências substantivas”, manifestando-se de diversas formas entre as quais avultam os direitos fundamentais267. A integração convoca assim dimensões reais de poder e processos de escolha orientados por critérios produtores de equilíbrios, inscritos num quadro de valores jurídicos plasmado na constituição do Estado268 e, por conseguinte, impõe a articulação entre constituição em sentido material e constituição em sentido formal269.

Assim, a dimensão normativa da constituição convoca a sua dimensão integradora, não porventura apenas enquanto efeito extrajurídico eventual e positivo de um objeto jurídico que é a constituição270, mas também com um sentido legitimador271. À legitimidade da constituição como “conformidade substancial com a ideia de direito, os valores, os interesses de um povo num determinado momento histórico”, maxime como legitimidade assente nos direitos fundamentais272, corresponde uma função de legitimidade, contribuindo “para a sua aceitação real                                                                                                                

265

Aludimos aqui à síntese das funções da constituição do Estado contemporâneo de MANUEL AFONSO VAZ, Teoria…, cit., p. 45 ss. Contrapondo a dimensão normativa da constituição aos seus efeitos integradores, produto eventual e secundário daquela, DIETER

GRIMM, “Integration by Constitution”, in ICON, n.º 3, 2005, p. 193 ss. 266

Assim, DIETER GRIMM, “Integration...”, cit., p. 193-194 e, sobre os tipos de integração - pessoal, funcional ou processual, material ou objetiva - em que, na construção de Smend, se baseia a vida do Estado, JOAQUÍN BRAGE CAMAZANO, “La doctrina...”, cit., p. 98 ss.

267

JOAQUÍN BRAGE CAMAZANO, “La doctrina...”, cit., p. 101 e passim. 268

MANUEL AFONSO VAZ, Teoria…, cit., p. 45 e 46. 269

Sobres estes conceitos, JORGE MIRANDA, Manual…, Tomo II, cit., p. 10 ss., J.J.GOMES

CANOTILHO, Direito Constitucional…, cit., p. 1139, PAULO FERREIRA DA CUNHA, Direito constitucional geral, cit., p. 127 ss. e MANUEL AFONSO VAZ, Teoria…, cit., p. 54 ss., aludindo à perda de utilidade da distinção ao nível da ciência do direito constitucional, mas não da Teoria da Constituição.

270

Assim, DIETER GRIMM, “Integration...”, cit., p.194 ss. 271

MARIA LÚCIA AMARAL, A Forma..., cit., p. 101 e, também, J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional …, cit., p. 1439-1440. Às funções constitucionais de revelação de consensos fundamentais e de legitimação da ordem política (de legitimidade e de legitimação do poder), somam-se as funções de garantia e de proteção (garantia e proteção dos direitos fundamentais e garantia da limitação do poder), de organização do poder político e de ordem e ordenação, ob. cit., p. 1438 ss.

272

Sobre a compreensão normativo-material da legitimidade da constituição, fundada nos direitos humanos constitucionalizados como expressão de um processo de emancipação, LUZIA PINTO, Os limites…, cit., em especial p. 30 ss. e 139 ss.

(consenso fáctico ou aceitação fáctica ou sociológica) e para uma boa ordenação da sociedade assente em princípios de justiça normativo-constitucionalmente consagrados” 273.

A constituição – ou a constituição viva de HÄBERLE, que não é mero acervo de normas, mas “expressão de certo grau de desenvolvimento cultural, meio de autorrepresentação de um povo, espelho do seu legado cultural e fundamento das suas esperanças e desejos”274 - não se reduz, assim, a uma dimensão textual “asséptica”. Ela abre-se275 ao tempo, à realidade social, às forças de poder, à cultura e aos valores e, por conseguinte, à necessidade de dialogar com a realidade sem perder a sua vocação normativa e estabilizadora276. Tal remete-nos para o conceito de “tridimensionalidade constitucional”277 ou constituição como ‘texto’, ‘valores’ e ‘realidade’ - política, económica, social, cultural, jurídica, mas também realidade de factos e de opiniões, ideologias, posturas políticas, cultura constitucional 278 . Assim o impõe a tríplice função “institucionalizadora”, “estabilizadora” e “prospetiva” do sistema de normas constitucionais279.

                                                                                                               

273

J.J.GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional …, cit., p. 1439-1440. 274

PETER HÄBERLE, Teoria..., cit., p. 34. A compreensão da constituição a partir das ciências da cultura, ressalva o autor, ob. cit., p. 78-79, não debilita a sua força normativa nem retira à ciência jurídica a sua razão de ser, antes exige dos juristas um diálogo com outras ciências na concretização da constituição pluralista.

275

Sobre a constituição como ordem aberta, J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional..., cit., p. 1435 ss. Ainda sobre a “abertura constitucional”, JOSÉ DE MELO

ALEXANDRINO, A estruturação..., vol. II, cit., p. 374 ss. 276

Assim escreve MANUEL AFONSO VAZ, Teoria..., cit., p. 72. Também J. J. GOMES

CANOTILHO, Direito Constitucional..., cit., p. 1435-36 se refere, na senda de HESSE, à polaridade entre elementos de estabilidade e de flexibilidade.

277

MANUEL AFONSO VAZ, Teoria …, cit., p. 67-68, construção que evoca a tridimensionalidade jurídica proposta por MIGUEL REALE. Sobre esta, reformulada como tetradimensionalidade, por PAULO LÔPO DE SARAIVA, vd. PAULO BONAVIDES, Teoria constitucional da democracia participativa, São Paulo, Malheiros, 2003, p. 374 ss.

278

Idem e JORGE MIRANDA, aludindo à “circulação norma/realidade constitucional/ valor”, in Manual…, Tomo II, cit., p. 68 e 261. Como escreve JORGE MIRANDA, ob. cit., p. 68, a constituição “tem de ser constantemente confrontada com os princípios e é por eles envolvida em grau variável; tem de ser sempre pensada em face da realidade política, económica, social e cultural que lhe está subjacente e que é uma realidade não apenas de factos mas ainda de opiniões, de ideologias, de posturas políticas, de cultura cívica e constitucional; e esta cultura carrega-se, por seu turno, de remissões para princípios valorativos superiores (o que significa que se dá uma circulação entre valor, Constituição e realidade constitucional) ”.

279

Pelo que vem sendo dito se percebe a dupla natureza da constituição como instância do sistema jurídico e do sistema político, na linguagem sistémica de MARCELO NEVES280, traduzida na definição de constituição como “estatuto jurídico do político”, na formulação introduzida entre nós por CASTANHEIRA NEVES e acolhida por GOMES CANOTILHO281. No Estado de Direito, tomado aqui na sua aceção material ou substancial282, que é Estado constitucional de Direito, “a subordinação da lei aos princípios constitucionais equivale a introduzir uma dimensão substancial não apenas nas condições de validade das normas, mas também na natureza da democracia” 283, a qual, assim, simultaneamente limita e completa284.

Uma constituição, em todo o caso, “humanizada” pela referência à sociedade285, e não apenas ao poder286 - estatuto do poder político e da sociedade287,                                                                                                                

280

MARCELO NEVES, Transconstitucionalismo, cit., p. 58, que admite, nas construções globais a que fizemos alusão, a sua ligação a uma comunidade política não estadual.

281

J.J.GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional..., cit., p. 1407 e 1635 e PAULO FERREIRA DA CUNHA, “Do conceito...”, cit., p. 564. Já LUÍS PEREIRA COUTINHO recusa a noção de Constituição como “estatuto jurídico do político, assumindo um conceito de Constituição que releva do axiológico (possibilitador do diálogo, impossível sem um termo comum), e não do ideológico (na contraposição de CASTANHEIRA NEVES). A Constituição será “normatividade axiologicamente expressiva”, escreve, pelo que “ou há um lugar parametrizador relevante de uma “intenção axiológica” ou, pelo contrário, há um lugar parametrizador relevante de uma “intenção ideológica”, sendo os dois incompatíveis, vd. LUÍS PEREIRA COUTINHO, A autoridade…, cit., p. 437 ss. Criticamente, JORGE MIRANDA, “Apreciação da dissertação de doutoramento do mestre Luís Pereira Coutinho”, in RFDUL, vol. 49, 2009, insistindo na dimensão de limitação do poder, a par da dimensão axiológica.

282

Sobre o Estado de Direito e sua evolução, JORGE REIS NOVAIS, Os princípios constitucionais estruturantes da república portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 15 ss. e LUIGI FERRAJOLI, “Pasado…”, cit., p. 13 ss., este último contrapondo um sentido lato, débil ou formal a um sentido forte ou substancial de Estado de Direito, correspondente a dois modelos normativos diferentes: Estado legislativo de Direito (Estado legal) e Estado constitucional de Direito (Estado constitucional), os quais, historicamente, sucederam ao Direito pré-moderno.

283

LUIGI FERRAJOLI,, “Pasado…”, cit., p.19. 284

Sobre a questão, JORGE REIS NOVAIS, Direitos …, cit., p. 17 ss. 285

O Estado, como “comunidade e poder juridicamente organizados, pois só o Direito permite passar, na comunidade, da simples coexistência à coesão convivencial e, no poder, do facto à instituição”, para recorrermos às palavras de JORGE MIRANDA, é simultaneamente poder e comunidade, e este último conceito, por seu turno, guarda autonomia em relação ao de sociedade tout court, vd. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo III, 5.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 26 e 29 ss.

286

Se a sociedade não se reduz ao político, exige-o todavia, fazendo por conseguinte sentido a interrogação de AZZARITI sobre se, perante a heterogeneidade e pluralidade crescente das nossas sociedades, o apelo à tolerância não redunda, afinal, numa “renúncia ao juízo político” e à “intenção emancipatória” do constitucionalismo, vd. GAETANO AZZARITI “Cittadinanza e multiculturalismo: immagini riflesse e giudizio politico”, in DP, 1, 2008, p. 85 ss.

portanto - que se faz expressão dos “valores jurídicos básicos” da comunidade política e da ideia de Direito aí vigente288 ou, de outra forma, exprime ou visa exprimir “uma posição quanto à estrutura e sentido do corpo social”289.

Em contextos de pluralismo cultural, pode – rectius, deve - legitimamente colocar-se a questão de saber como pode ao constituição e, em especial, o sistema de direitos fundamentais reconstruir-se enquanto “unidade de sentido”. Assim, afirmar que os direitos fundamentais não se compreendem sem a referência a uma determinada constituição concreta implica ainda que não constituem uma ordem ou sistema neutros, mas uma “unidade normativa-valorativa” com um sentido cultural e, nessa medida, eles assumem uma dupla dimensão, objetiva e subjetiva290. Eles traduzem, por isso, “valores ou bens que a constituição, nuns casos, recebe como dados irrecusáveis da cultura universal ou nacional, noutros casos de algum modo cria, procurando interpretar o sentido coletivo da época na determinação de um projeto de vida em comum”291. O reconhecimento desta dupla dimensão reconcilia o indivíduo com a comunidade, no sentido em que “o indivíduo só é livre e digno numa comunidade livre; a comunidade só é livre se for composta por homens livres e dignos”292, conduzindo à necessidade de pensar as normas de direitos fundamentais não apenas de um ponto de vista individual-subjetivo, mas também como valores ou fins que a comunidade se propõe prosseguir, maxime através da ação estadual, como

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             

287

JORGE MIRANDA, Manual..., Tomo II, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 21 e, no mesmo sentido, a definição de constituição como “estatuto jurídico fundamental da comunidade política”, proposta por MANUEL AFONSO VAZ, Teoria…, cit., p. 47.

288

JORGE MIRANDA, Manual..., Tomo II, cit., p. 69. 289

ROGÉRIO E. SOARES, “O conceito...”, cit., p. 36 e, aludindo à função de “ordenação sistemática e racional” atribuída à constituição de acordo com o conceito moderno abstracto, J.J.GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional..., cit., p. 107.

290

Pese embora a dificuldade de recorte da distinção, dada a variação de contextos e alcances que lhe são reconhecidos. Sobre a questão, J. C. VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, Coimbra, Almedina, 2012, p. 107 ss. e CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais. Teoria Geral, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 114 ss. A dimensão objetiva em sentido estrito assume um caráter residual no sentido em que designa apenas os efeitos que complementem ou transcendam o âmbito específico da dimensão subjetiva, cujos efeitos devem ser plenamente autonomizados, como propõe J. C. VIEIRA DE ANDRADE, ob. cit., p. 110 e, também, CRISTINA QUEIROZ, ob. cit., p. 117.

291

J.C.VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos..., cit., p. 100. 292

“decisão constitucional fundamental” ou “bases objetivas de ordenação da vida social” 293.

Se o constitucionalismo moderno (o novo constitucionalismo) se abre aos valores e aos princípios materiais informadores da vida em sociedade (legitimidade material)294, essa abertura material não pode, na linha do que vem sendo dito, ser entendida de forma rígida, hierárquica e estática, mas antes como “ordem de valores” pluralista295. O apelo a valores há-de fazer-se sob apertada “vigilância discursivo- comunicativa”, na expressão de GOMES CANOTILHO - não pode nem deve significar a incorporação ou positivação de qualquer teoria material de valores ou de qualquer escola filosófica sobre os valores, sob pena de conduzir a uma “conceção integracionista” da ordem constitucional em prejuízo de uma “ordem integrativamente pluralista”296. A procura dos valores não se confunde, por outro lado, com subjetivismo, antes a ideia de direito que subjaz à constituição material há-de ser ideia comunitária, “representação que certa comunidade faz da sua ordenação e do seu destino à luz dos princípios jurídicos” 297. Assim, parafraseando LUZIA PINTO, os valores que se vão “inscrevendo no conteúdo” dos direitos fundamentais têm um