• Nenhum resultado encontrado

Do pluralismo como facto ao pluralismo como norma

PARTE I DA CONSTITUIÇÃO COMO LIMITE À CONSTITUIÇÃO COMO

3. Pluralismo constitucional e constitucionalismo plural

3.1. Do pluralismo como facto ao pluralismo como norma

Alguns autores têm sustentado que a valorização das “políticas multiculturalistas” lato sensu transforma a diversidade, de plural, em multicultural102, querendo com isso afirmar - de acordo com uma conceção de pluralismo como valor que defende, mas também limita, a diversidade103 - a emergência de um “multiculturalismo anti pluralista”, que “fabrica diversidades” e faz prevalecer a separação sobre a integração104. É, por conseguinte, a possibilidade de construção da unidade política pela via da Constituição, almejada, ao que se afirma, pelo Estado- nação, que o multiculturalismo vem pôr em causa. Ora por estar ao serviço de uma ética libertária105, ora por forjar identidades e assumir propósitos separatistas, o multiculturalismo é ainda acusado de conduzir à adoção de uma postura perniciosamente relativista, que impõe a conclusão pela inevitabilidade de considerar as normas como sempre dependentes, para aferição, das sociedades nas quais emergem. Mas pode igualmente, do lado oposto do espectro, conduzir à procura de uma solução através de um princípio universal, depois acusado de ignorar a natureza contextual e histórica dos princípios da justiça106.

Mais promissora parece-nos ser, todavia, a interrogação que o multiculturalismo coloca dirigida aos aspectos fundamentais sem os quais não é possível pensar uma convivência social ordenada com base em normas reconhecidas

                                                                                                               

102

Entre outros, LORENZA VIOLINI, “Multiculturalismo e questioni eticamente controverse: quale regolamentazioni?”, in JAVIER PRADES (dir.), All’origine della diversità. Le sfide del multiculturalismo, Milão, 2008, p. 49 ss., p. 49 ss.

103

Nas palavras de GIOVANNI SARTORI, La sociedad multiétnica. Pluralismo, multiculturalismo y extranjeros, Madrid, Taurus, 2001, p. 63, “a sociedade pluralista deve compensar e equilibrar multiplicidade e coesão, impulsos fragmentadores com a manutenção do conjunto”.

104

Idem, cit., p. 63. Para o autor, o pluralismo valora positivamente a diversidade mas não fabrica diversidades, ao contrário do multiculturalismo, que fabrica diversidades, pois se dedica a tornar visíveis diferenças e a intensificá-las, desse modo chegando mesmo a multiplicá-las.

105

Assim, LORENZA VIOLINI , “Multiculturalismo...”, cit., p. 51. 106

ANNE PHILLIPS, Multiculturalism without culture, Princeton/Oxford, Oxford University Press, 2007, p. 33.

por todos107 e, por conseguinte, sobre o pluralismo. É desta questão que nos ocuparemos, remetendo para a Parte II a avaliação crítica do multiculturalismo e a articulação entre pluralismo, relativismo e multiculturalismo108 - tendo presente, advirta-se previamente, a distinção entre o sentido descritivo e o sentido normativo109, bem como versões fortes e versões fracas110, de relativismo e de pluralismo, ético e cultural.

O multiculturalismo não implica necessariamente incompatibilidade entre o universal e o particular, impondo antes a necessidade de repensar a sua articulação. Equivalerá a uma rejeição do “universal” se pensarmos num multiculturalismo relativista em sentido forte, oposto a um monismo que sustente a existência de normas morais universais decorrentes da natureza humana, mas podem equacionar-se vias médias que procurem conciliar valores universais e a tomada em consideração dos particularismos, das diferenças étnicas, religiosas e culturais111.

O relativismo é compatível com o universalismo, ou com um certo grau de universalismo112, ao menos naquelas formulações “relativistas” que visam mostrar a                                                                                                                

107

LORENZA VIOLINI ,“Multiculturalismo...”, cit., p. 51. 108

ZACCARIA entende que o multiculturalismo se diferencia do pluralismo, já que questiona a manutenção da separação entre esfera privada e esfera pública, a perspetiva individualista da relação entre indivíduo e comunidade política (individualismo ético) e o princípio da neutralidade estadual face a conceções éticas e a fatores não políticos da identidade dos cidadãos e, por conseguinte, desloca a questão para o pluralismo de grupos, culturas e identidades coletivas (não assimilável ao pluralismo moral de indivíduos) e da liberdade e autonomia individuais para o reconhecimento e inclusão coletivos, propondo a passagem da “tolerância” ao “reconhecimento”, vd. GIUSEPPE ZACCARIA, “Tolerancia y politica de reconocimiento”, in PyD, n. º 49, 2003, p. 107 ss., p. 113-114.

109

CHANDRAN KUKATHAS, “Pluralismo dentro dos limites da razão”, in JOÃO CARLOS

ESPADA/MARC F. PLATTNER/ADAM WOLFSON (org.), Pluralismo sem relativismo, Lisboa, ICS, 2003, p. 71 ss. Entre nós, também, J.C.VIIERA DE ANDRADE, “Pluralismo”, in POLIS, 4, Verbo, col.1280 ss., 1280.

110

WILLIAM GALSTON, “O pluralismo de valores e a filosofia política contemporânea”, in Pluralismo..., cit., p. 25 ss., p. 33.

111

DENYS CUCHE, La notion de culture dans les sciences sociales, 4.a ed., Paris, La Découverte, 2010, p. 142 e, também, JOÃO LOUREIRO, “Constitutionalism, diversity and subsidiarity in a postsecular age”, in BFDC, 83, 2007, p. 501 ss., p. 506 ss.

112

Aludindo a versões mais “fortes” de relativismo cultural, nos termos do qual este nega a possibilidade ou conveniência de estabelecer comparações e hierarquias entre as pautas valorativas das diferentes culturas, todas elas essencialmente iguais em valor e dignidade (questão da incomensurabilidade) e a consequente impossibilidade lógica de uma procura de valores universalmente válidos, vd. IGNACIO SÁNCHEZ CÁMARA, “Integración o multiculturalismo”, in PyD, n.º 49, 2003, p. 163 ss. e BHIKHU PAREKH, Repensando el multiculturalismo, Madrid, Ediciones Istmo, 2005, p. 195.

relevância das circunstâncias para a conformação da moral, descrevem como diferentes culturas aceitam diferentes princípios morais e identificam as especificidades culturais subjacentes a certos códigos morais, ou mesmo mostram como o juízo moral implica uma referência ao contexto cultural de enquadramento do agente113. Nestas aceções - em geral, diga-se, mais descritivas que normativas114 -, o relativismo cultural dá um contributo fundamental para a nossa compreensão da moralidade e para a rejeição dos dogmatismos, do etnocentrismo115 e da tentação imperialista por vezes associada aos direitos humanos116, sem com isso implicar necessariamente um “determinismo cultural” ou um “relativismo total” (nos termos do qual toda a verdade é uma verdade local referida a uma cultura) e, por conseguinte, sem constituir verdadeira “ameaça” ao universalismo117.

O relativismo não é, por conseguinte, necessariamente incompatível com a procura de universais nem com a admissibilidade de uma “estrutura universal” da moral, ainda que suscetível de algum tipo de acomodação cultural. Uma perspetiva possível será a da busca de “universais transculturais” enquanto valores partilhados por todas as culturas do mundo, na conhecida defesa de ALISON DUNDES RENTELN118, mas que se revela criticável, todavia, caso se considere que o consenso transcultural é incapaz de fundar a força adicional da regra ética, sendo necessário acautelar a possibilidade de universais transculturais desumanos e salvaguardar um direito ao dissentimento face ao entendimento da maioria. Nesta perspetiva será, por conseguinte, na identificação de absolutos, e não de universais transculturais, que se deverá centrar o diálogo cultural119.

                                                                                                               

113

Testando vários “candidatos” possíveis à qualificação como relativismo cultural normativo, JOHN J.TILLEY, “The Problem for Normative Cultural Relativism”, in RJ, vol. 11, n.º 3, 1998, p. 272 ss.

114

CHRIS SWOYER, "Relativism", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2010 Edition), EDWARD ZALTA (ed.), http://plato.stanford.edu/archives/win2010/entries/relativism/ [20/01/2013].

115

PABLO FIGUEROA, “Universales “versus” Absolutos. Una crítica filosófica al relativismo cultural”, in PyD, n.º 48, 2003, p. 159 ss.

116

GIANCARLO ROLLA, “Diritti universali e relativismo culturale”, in QC, ano XXV, n.º 4, 2005, p. 855 ss., p. 328.

117

Assim conclui JOHN J.TILLEY, “The Problem...”, cit. 118

ALISON DUNDES RENTELN apud HENRI PALLARD, “L’universalisation des droits fondamentaux et l’occidentalisation de l’universalité”, in J.FERRAND/H.PETIT (eds.), Enjeux et perspectives des Droits de l’homme, Paris, L’Harmattan, 2003, p. 164 ss.

119

Uma via média entre absolutismo cultural e relativismo cultural pode ser, como propõe PANIKKAR, a da relatividade cultural, caminho seguido pela interculturalidade assente no diálogo como abertura ao outro120. Nesta perspetiva, a verdade, sendo ela mesma relação, é pluralista, não plural. O pluralismo surge da consciência simultânea tanto da incompatibilidade das visões distintas de mundo como da impossibilidade de julgá-las imparcialmente, porque nada está acima da própria cultura, que nos proporciona os meios de compreensão. A relatividade ou relacionalidade radical não se confunde com o relativismo, que se destrói a si mesmo na sua formulação: a relacionalidade radical é uma relacionalidade relativa aos diversos contextos culturais nos quais toda a afirmação adquire sentido, sendo radical porque não apenas mostra que “tudo” está relacionado, como que o “tudo” é relacional, salvando-nos do “solipsismo cultural” e impedindo que caiamos numa homogeneização monista que destrói a diversidade.

Do pluralismo de valores, referido aos indivíduos ou às culturas, ou seja, da defesa de que os valores são plurais e contraditórios e não poderá estabelecer-se uma hierarquia entre estilos de vida que classificam os valores de forma diferente, resultará um argumento a favor do respeito pelos sistemas de valores de culturas específicas (incluindo as que não valorizam a escolha), de uma atitude de não interferência e, na hipótese de uma defesa de valores comuns, valores mínimos121. Um pluralismo de valores em sentido forte inviabilizaria a nossa possibilidade de pensarmos instituições políticas comuns e critérios mínimos de conduta aplicáveis de forma transversal a diversas “culturas”122, designadamente de recorte liberal, por, em última análise, também o liberalismo não passar de um “ideal local” ou um “estilo de vida” entre outros123 – apesar de, sustentam os liberais, ser o “estilo de vida” preferido por grande                                                                                                                

120

RAIMON PANIKKAR, “La interpelación intercultural”, in GRACIANO GONZÁLEZ R.ARNAIZ

(coord.), El discurso intercultural. Prolegómenos a una filosofia intercultural, Madrid, Biblioteca Nueva, 2002, p. 33 e 43 ss. Entre nós, contrapondo ao relativismo a relatividade, MANUEL CARNEIRO DA FRADA, “Relativismo, valores, Direito”, in ROA (separata), ano 68, 2008, p. 651 ss., p. 660 ss.

121

STEPHEN MACEDO, “Pluralismo de valores contra relativismo?”, in Pluralismo..., cit., p. 49 ss., p. 54 ss.

122

Colocamos entre aspas uma vez que, assim formulada, a hipótese de diálogo de culturas subjacente pode ser acusada de essencialismo e reificação do conceito de cultura. Sobre a questão, CLIFFORD ORWIN, “Pluralismo sem relativismo?”, in Pluralismo..., cit., p. 121 ss., p. 133.

123

Sobre a questão, STEPHEN MACEDO, “Pluralismo...”, cit., p. 49 ss. Pronunciando-se a favor da incompatibilidade entre pluralismo e liberalismo, JOHN KEKES, “Pluralismo por oposição a

número de culturas no mundo moderno124. O pluralismo pode ser sustentado a partir de premissas liberais, como é o caso de pluralismo de típico cívico proposto por MACEDO125, mas também a partir de perspetivas não liberais, como a de KEKES. Este último sustenta, a nosso ver bem, a necessidade de manter um sistema em que é possível considerar e ponderar os fundamentos de todos os valores importantes, que incluem o pluralismo, a liberdade, os direitos, a igualdade, a justiça, a autonomia, mas também valores que não são tipicamente liberais como o ambiente saudável, a civilidade, o respeito pela lei, a paz, a prosperidade, a ordem, a segurança, e que terão precedência consoante os contextos e não de acordo com uma regra pré-determinada e fixa de precedência126.

A ideia de que um pluralismo que não seja relativista é, de alguma forma, um pluralismo pobre – de que, se não somos relativistas, não somos pluralistas ou, pelo menos, suficientemente pluralistas127 - não tem de ser sustentada. Há espaço para sustentar compreensões diferentes do pluralismo, distinguindo entre uma versão “forte”, “radical” ou “total” do pluralismo de valores128, que coloca as diferentes culturas e sistemas de valores acima de qualquer crítica ou exame, e, por conseguinte, de qualquer justificação129, e versões moderadas, limitadas ou compreensivas.

Se partirmos, por conseguinte, da afirmação de que, na sociedade aberta em constante dissenso, temos de reconhecer como facto um pluralismo de valores e a inexistência de uma ordem objetiva de valores acessível, a priori, a todas as “consciências éticas retas”130, e devemos reconhecer, de um ponto de vista normativo, um (certo) pluralismo de valores, teremos de concluir pela necessidade de nos centrarmos precisamente nas escolhas e nos processos pelos quais elas têm lugar,                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              

liberalismo”, in JOÃO CARLOS ESPADA/MARC F. PLATTNER/ADAM WOLFSON (org.), Pluralismo sem relativismo, Lisboa, ICS, 2003, p. 205 ss.

124

STEPHEN MACEDO, “Pluralismo...”, cit., p. 57. 125

Idem. 126

JOHN KEKES, “Pluralismo...”, cit., p. 222-223. 127

CLIFFORD ORWIN, “Pluralismo...”, cit., p. 122. 128

WILLIAM GALSTON, “O pluralismo…”, cit., p. 33. 129

STEPHEN MACEDO, “Pluralismo...”, cit., p. 57-58. 130

MIGUEL PRATA ROQUE, “Sociedade aberta e dissenso. Contributo para a compreensão contemporânea do princípio do pluralismo democrático”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor André Gonçalves Pereira, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 355 ss., p. 356 e JOSÉ

descansados pelo argumento de GALSTON de que é importante não “dramatizar excessivamente” as escolhas que decorrem da heterogeneidade de valores131 ou pela constatação de PHILLIPS de que os conflitos profundos de valores são raros, antes acontecendo que os valores são invocados para justificar tensões cujas causas lhes são estranhas132.

Abordando especificamente a relação entre indivíduos e culturas, GALSTON sustenta que o pluralismo não tem de significar relativismo, funcionando verdadeiramente em relação a valores que se situam além da “linha de água” representada por um “padrão básico de correção moral fundamental” para a vida dos indivíduos e para as sociedades e acima da qual existem bens qualitativamente heterogéneos que não podem ser reconduzidos a uma medida única comum de valor133. Os estilos de vida que não valorizam a escolha134 não poderão ser explicados a partir de uma “característica universal da vida humana”135, assim como “exigir que todos os estilos de vida aceitáveis reflitam uma consciência do pluralismo de valores seria afirmar aquilo que o pluralismo de valores nega - a existência de um valor universalmente dominante”136. Não existe fundamento para uma imposição estadual de “políticas restritivas cuja justificação inclua a afirmação de que existe uma ordenação de valores racional única”, mas por vezes a intervenção do Estado resulta, não de uma “ordenação hierárquica das conceções de bem” mas do facto de nem                                                                                                                

131

WILLIAM GALSTON, “O pluralismo…”, cit., p. 31, aí afirmando especialmente que os valores admitem gradações; o pluralismo de valores não exclui a possibilidade de discussões validas para se obterem respostas certas em questões específicas; os valores fundamentais podem ser comparáveis apesar de não serem comensuráveis, e uma argumentação deliberativa pode fornecer razões para escolhas entre pretensões qualitativamente diferentes mesmo quando não existe medida comum de valor.

132

ANNE PHILLIPS, Multiculturalism…, cit., p. 65, exemplificando. 133

WILLIAM GALSTON, “O pluralismo …”, cit., p. 27-28. Estes “valores qualitativamente distintos não podem ser inteiramente hierarquizados”, não existe um supremo bem que possa dizer-se racionalmente prioritário para todos os indivíduos. Os adeptos do pluralismo de valores, escreve, estão dispostos a reconhecer que as relações entre valores podem ser estruturadas de maneiras específicas de acordo com o conteúdo desses valores, e que são possíveis organizações parciais de bens, mas rejeitam a ideia da prioridade definitiva de alguns valores em relação a outros, independentemente das circunstâncias e da consideração dos valores cujo sacrifício é exigido por essas regras de prioridade rigorosas e predeterminadas.

134

Usufruindo, escreve WILLIAM GALSTON, “O pluralismo …”, cit., p. 31, da chamada “liberdade expressiva”.

135

Idem, cit., p. 35, em diálogo com GRAY eBERLIN. 136

todos os valores poderem coexistir, e quando tal acontece, a escolha não significa uma restrição arbitrária da liberdade, mas sim que “a estrutura de valores do universo (…) está a limitar na prática a possibilidade de alguns indivíduos praticarem estilos de vida que, em teoria, são perfeitamente defensáveis”137. Assim, uma política praticada com plena consciência do pluralismo de valores, escreve GALSTON, será recetiva a uma gama alargada, mas não ilimitada, de afirmações baseadas em valores, consciente da impossibilidade de escolher ou promover um estilo de vida único e “melhor”, e limitará o acordo exigido aos cidadãos sobre os princípios e as práticas aos aspectos constitucionais essenciais, entendidos com parcimónia, procurará criar as condições necessárias para que os grupos e os indivíduos vivam, na maior medida possível, de acordo com o que entendem dar sentido à sua vida, e defenderá a possibilidade de os indivíduos abandonarem estilos de vida com que deixem de se identificar138. O limite vem dado pela opressão, que é necessário combater onde quer que se encontre139.

Nesta via média de superação da dicotomia relativismo/universalismo poderemos incluir ainda, entre outros, o “universalismo pluralista” de PAREKH ou o “universalismo contextual” de WALZER. O primeiro assenta no reconhecimento de valores morais universais mínimos, que serão “aqueles que temos boas razões para crer dignos do compromisso e apoio de todos os seres humanos” e, nesse sentido, “universalmente válidos e vinculantes”, e cuja via mais satisfatória de identificação é, não a de analisar (ou de analisar apenas) a natureza humana, mas o diálogo universal ou transcultural140. Esta perspetiva submete a tendência para a universalização dos valores próprios de uma cultura a um “teste transcultural” e, através do diálogo, promove o respeito entre culturas, o compromisso dos participantes em aceitar o resultado do diálogo e confere aos argumentos uma “validação democrática”, em que a preferência por um determinado valor ou valores resulta não da sua qualidade de irrefutáveis, mas do facto de os argumentos que podemos mobilizar em sua defesa serem mais fortes e convincentes do que os que podemos esgrimir em favor de outras                                                                                                                 137 Idem, cit., p. 41 e 42. 138 Idem, cit., p. 44-45. 139

Idem, cit., p. 46. Assim, será legítima, e necessária, a intervenção do Estado para salvaguardar os oprimidos/dissidentes “aprisionados” nas suas culturas e instituições, pelo que “as comunidades culturais não podem usar as suas práticas como instrumentos de aprisionamento daquelas pessoas que deixaram de acreditar nelas”, ob. cit., p. 39 ss.

140

alternativas141. Para PAREKH, é possível “encontrar um corpo de valores morais que mereçam o respeito de todos os seres humanos”, entre os quais “o reconhecimento do valor e dignidade humanas, a promoção do bem-estar ou dos interesses humanos mais fundamentais e a igualdade”, não bastando apelar à natureza humana mas sendo necessário ter em conta a “condição humana, as experiências históricas e os nossos juízos sobre as consequências prováveis de diferentes formas de relação e vida social”

142

. Em suma, os valores universais mínimos dos quais podemos legitimamente partir “são, por natureza, muito gerais, e devem ser interpretados, hierarquizados, adotados e, em caso de conflito, reconciliados, à luz da cultura e circunstâncias de cada sociedade” 143, devendo atribuir-se aos fatores que levam à negação da nossa interpretação “uma importância proporcional ou ao menos o mesmo peso moral”144. Conscientes do risco que representa a possibilidade de as diferentes sociedades poderem “legitimamente definir, hierarquizar e materializar os valores universais de forma diferente (e mesmo ocasionalmente ultrapassar alguns deles) ”, PAREKH conclui que não há forma perfeita de lidar com a questão, apenas “pedir aos seus porta-vozes que justifiquem as suas decisões quando nos pareçam inaceitáveis”, e respeitar as suas

                                                                                                               

141

Idem, cit., p. 197-198. Nesta perspetiva, os valores morais não podem invocar uma “base indiscutível e objetiva”, mas apoiam-se em motivos, que assumem a forma de razões, “que não são simplesmente arbitrárias porque são intersubjetivamente discutíveis”, e têm por si argumentos de maior peso que os que suportam os valores contrários (ob. cit., p. 198). Podemos, em consequência, legitimamente exigir aos outros que mostrem o seu acordo face a estes valores ou então que aduzam razões em defesa dos seus pontos de vista, e caso se neguem a fazê-lo, depois de enviados esforços que concretizem a possibilidade de que o façam, poderemos considera-los irrazoáveis e excluí-los do diálogo (ob. cit., p. 198-199). Esta perspetiva assenta no acordo quanto ao valor moral dos indivíduos, que resulta de terem capacidades únicas e dignas de valor como “a capacidade de pensar, a razão, a capacidade de usar a linguagem, imaginar uma vida boa, estabelecer mútuas relações morais, ser autocríticos e almejar a excelência” (ob. cit., p. 199).

142

BHIKHU PAREKH, Repensando..., cit., p. 204. Uma forma de identificar estes valores que reúnem consenso e, partindo destes, tentar alcançar níveis superiores de consenso (ob. cit., p. 205) poderá ser partir de “repositórios” como a DUDH, produto de um diálogo transcultural. Mas esta, como se sabe, está longe de ser imune a críticas, como a do seu viés liberal e ocidental, a de reconhecer direitos para os quais não pode exigir-se validade universal, adotar um conceito de estático direitos humanos, confundir instituições (como a democracia) com direitos e negligenciar a dimensão das obrigações (ob. cit., p. 205 ss.). A este propósito, assume relevo a discussão sobre os “valores asiáticos”, vd. BHIKHU PAREKH, Repensando..., cit., p. 209 ss.

143

BHIKHU PAREKH, Repensando..., cit., p. 207. 144

decisões quando defendidas de forma convincente, ou pressionar uma mudança em caso contrário145.

Também WALZER procura articular uma defesa do pluralismo, “nota distintiva” da sua teoria, com uma defesa, porventura mal conseguida, face ao relativismo cultural146. Em escritos posteriores a Spheres of Justice, WALZER considera que o seu ponto de vista é compatível a defesa de um “universalismo contextual” que, sendo diferente do universalismo moral abstrato pois é um “universalismo prático e de reiteração”, permite investigar o que é comum às várias comunidades e encontrar “estruturas morais convergentes, uma moral mínima” 147. Esta moralidade mínima consiste, segundo propõe BONILLA MALDONADO partindo de WALZER, “em princípios e regras reiterados em distintas sociedades e épocas apesar de se terem articulado em linguagens culturais diversas e são consequência de formas distintas de aproximação a problemas individuais e coletivos similares”148. Ela está, nota, intimamente ligada às diversas morais maximalistas, “teorias que oferecem critérios normativos para a organização da vida privada e pública de indivíduos e sociedades (v.g. justiça distributiva, utilitarismo, teorias da justiça muçulmanas)”, pois os valores minimalistas inscrevem-se no âmago de cada moralidade de tipo