• Nenhum resultado encontrado

Pluralismo, constitucionalismo e constituição

PARTE I DA CONSTITUIÇÃO COMO LIMITE À CONSTITUIÇÃO COMO

4. A constituição inclusiva

4.1. Pluralismo, constitucionalismo e constituição

Não obstante o que se vem dizendo, a resposta ao pluralismo a partir da constituição não deixa, porém, de suscitar apreensões, sobretudo tendo em conta a genealogia do conceito. Alude-se aqui ao facto de ao constitucionalismo poder atribuir-se uma vocação homogeneizadora desencorajadora do pluralismo social, tendente à edificação de categorias uniformizadoras216. Certos traços do constitucionalismo moderno – v.g., a pretensão de homogeneidade da comunidade política e a consequente desconsideração da cultura, bem como o conceito de constituição como pacto fundacional anterior e condição prévia da democracia – podem tornar difícil a sua compatibilização com a diversidade cultural, como

                                                                                                               

213

Referindo-se ao Direito Canónico no contexto do pluralismo jurídico, JORGE MIRANDA, Manual..., Tomo III, cit., p. 245.

214

PAUL SCHIFF BERMAN, “Global...”, cit., p. 1167 ss. e 1191 ss. 215

Como propõe ROSENFELD, e desenvolveremos infra. 216

amplamente demonstrou TULLY217. Segundo o autor, tal resultou da linguagem e das tradições de interpretação hegemónicas no seio do pensamento político e jurídico moderno (o liberalismo, o comunitarismo e o nacionalismo), não se devendo a uma incompatibilidade de princípio entre constitucionalismo e diversidade cultural218. Trata-se, por conseguinte, não de rejeitar, mas de superar o constitucionalismo nesta versão “histórica”, reformulando-o em sentido pós-imperialista e, por conseguinte, capaz de reconhecer a “estranha multiplicidade” da diversidade cultural 219. As constituições, para serem justas, devem ser elaboradas através de processos nos quais se escute a voz de todas as culturas que constituem a comunidade política numa espécie de diálogo constitucional220, pelo que não são aculturais nem condição prévia da política democrática, mas parte da política democrática, pacto social em movimento enquanto “série infinita de contratos e acordos, alcançada através do periódico diálogo intercultural”221.

Para escapar à acusação de ser anti pluralista, a Constituição terá de ser inclusiva, ainda que isso implique rever222, mas não abdicar, da sua função integradora223 ou da                                                                                                                

217

JAMES TULLY, Strange Multiplicity. Constitutionalism in an age of diversity, 7.ª ed., Cambridge, Cambridge University Press, 2006, p. 58 ss. O autor aponta (ob. cit., p. 62 ss.) sete características do constitucionalismo moderno que contribuíram para eliminar a diversidade cultural e a obter a homogeneidade, entre as quais o conceito de soberania popular, assente num povo culturalmente homogéneo, pelo que a cultura é algo irrelevante que pode ser superado, que chegam a acordo sobre a associação constitucional através de um processo deliberativo hipotético ou histórico, a afirmação do constitucionalismo como um nível superior no desenvolvimento histórico, a uniformidade jurídica e política da constituição, a identificação entre Estado e nação e o conceito fundacional de constituição como condição prévia da política democrática, e não como parte dela, capaz de se impor de forma universal e intemporal. Para uma síntese crítica do pensamento do autor, vd. FRANCESCO BELVISI, “Società multiculturale e costituzione”, in GIORGIO BOMGIOVANNI

(ed.), La filosofia del Diritto Costituzionale e i problemi del liberalismo contemporaneo, Bolonha, CLUEB, 1998, p. 79 ss., p. 86 ss. Em especial sobre a relação entre constitucionalismo e cultura, CARLOS RUIZ MIGUEL, “El constitucionalismo cultural”, in CConst, n.º 9, 2003, p. 201 ss.

218

JAMES TULLY, Strange…, cit., p. 34 ss. e FRANCESCO BELVISI, “Società…”, cit., p. 86-87. 219

Assim, FRANCESCO BELVISI, “Società…”, cit., p. 97. 220

DANIEL BONILLA MALDONADO, La Constitución…, cit., p. 81. 221

FRANCESCO BELVISI, “Società…”, cit., 92 e o que escrevemos infra, na Parte II. 222

J.J.GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional …, cit., p. 1450. 223

Assim, escreve HABERMAS, “uma sociedade pluralista baseada numa constituição democrática garante a diferenciação cultural apenas sob a condição da integração política. Os cidadãos de tal sociedade têm o poder de formar ou manter a sua idiossincrasia cultural sob o pressuposto de que, tal como os demais (…), se autocompreendem como cidadãos de uma mesma comunidade política. Esse empoderamento cultural é limitado pela mesma

sua condição de instrumento (não estorvo) de governabilidade da sociedade224. Resta, por conseguinte, explorar se e em que medida a constituição - cada constituição - traz uma resposta à questão do pluralismo – ou, nas palavras de GOMES CANOTILHO, se e como cumpre a função de estruturar e garantir um “sistema constitucional pluralístico”225, erigida a nova função da lei fundamental226, uma “comunidade constitucional inclusiva”227 que se quede aquém da hiperinclusividade em benefício da manutenção da própria inclusividade228.

Este “paradoxo da inclusividade” não difere, afinal, do paradoxo do pluralismo (que evoca o paradoxo da tolerância) a que se refere ROSENFELD229. O pluralismo compreensivo que propõe assenta num “finca-pé normativista”, ou seja, na convicção de que a melhor forma de lidar com o pluralismo de facto e com diferentes conceções de bem é celebrar o pluralismo e moldar as instituições para que se adaptem a este pluralismo da melhor forma possível. O pluralismo compreensivo precisa da pluralidade de conceções de bem, sem a qual quedaria sem sentido. A plena realização do ethos pluralista é, em todo o caso, um ideal (caráter contrafático), uma aspiração que implica grande tolerância à dissonância e às inconsistências230.

Num mundo plural em termos normativos, ideológicos e filosóficos, escreve, “uma ética pluralista prescreve a maior acomodação possível da diferença e da divergência consistente com a manutenção das condições necessárias para que o pluralismo permaneça funcional e viável 231. O pluralismo que propõe encerra,                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              

constituição que fornece a justificação para os direitos culturais”, vd. JÜRGEN HABERMAS, “Intolerance and discrimination”, in ICON, vol. 1, 2003, p. 2 ss., p. 10-11.

224

Na expressão de GUSTAVO ZAGREBELSKY, “La Corte in-politica”, in JC, n.º 5, 2005, p. 3 ss., p. 5.

225

J.J.GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional …, cit., p. 1451. 226

Idem, cit., p. 1451. 227

JÓNATAS MACHADO, Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 173-174.

228

J. J. GOMES CANOTILHO, “Jurisdicción constitucional y nuevas inquietudes discursivas. Del mejor método a la mejor teoría”, in Fundamentos, n.º 4, 2006, p. 425 ss., p. 439.

229

J.J.GOMES CANOTILHO, “Jurisdicción...”, cit., p. 439. Sobre a constituição como “espaço de jogo do paradoxo da tolerância”, J.J.GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional …, cit., p. 1451-1452.

230

MICHEL ROSENFELD, “Rethinking constitutional ordering in an era of legal and ideological pluralism”, in ICON, vol. 6, 2008, p. 415 ss., p. 427 ss.

231

todavia, o paradoxo de ter impôr limites à pluralidade (“paradoxo do pluralismo”): “o ethos pluralista depende de uma dialética entre, por um lado, um conjunto fixo de normas não negociáveis destinadas a salvaguardar as bases de sustentação do modo de vida pluralista, e, por outro lado, abertura e aceitação de um amplo conjunto de ideologias diferentes”, aí incluídas as não pluralistas e anti pluralistas. Como este se situa no âmbito do constitucionalismo, este “núcleo duro” vem dado por referência à liberdade e à igualdade, cuja interpretação se abre a um leque limitado de diversidade e a divergências aceitáveis; a questão da compatibilidade está aberta ao debate e à participação, neste, de todos os interessados e, designadamente, ao esclarecimento de todos os termos envolvidos232. A sua proposta de pluralismo compreensivo permite enquadrar, não apenas o pluralismo normativo, mas também o pluralismo mundividencial e cultural, nas suas dimensões individuais e coletivas – e, por isso, o constitucionalismo plural que busca é não apenas estadual mas também supraestadual.

Assim, pode afirmar-se que não só não há incompatibilidade entre pluralismo e constitucionalismo como, no Estado Social e Democrático de Direito, entendido em sentido material, o constitucionalismo e o pluralismo, enquanto princípio jurídico e político, se exigem mutuamente233. A constituição faz sentido em contextos plurais, resultando a convergência constitucionalmente adequada de um pluralismo que prescreve a “maior acomodação possível da diferença e da divergência consistente com a manutenção das condições necessárias para que o pluralismo permaneça funcional e viável”234. Trata-se, por conseguinte, de compreender o pluralismo não como um problema mas como uma solução, o que marca a passagem de uma conceção descritiva a uma conceção normativa de pluralismo, reconciliando o pluralismo jurídico e ideológico através de novos modelos de ordenação constitucional (lato sensu), assim alcançando um “pluralismo ordenado”235. O seu pluralismo compreensivo – uma conceção de bem entre as demais – exige a acomodação de uma pluralidade de conceções de bem, id est, “abertura e aceitação de                                                                                                                

232

MICHEL ROSENFELD, The Identity…, cit., p. 276-277. O “limite dos limites” do aceitável é, para o autor, a colocação em situação de quase servidão.

233

Sobre a relação entre pluralismo e constitucionalismo, MICHEL ROSENFELD, The Identity…, cit., p. 21 e NEIL WALKER, “Rosenfeld's...”, cit., p. 678, bem como MIGUEL

PRATA ROQUE, “Sociedade...”, cit., passim. 234

MICHEL ROSENFELD, The Identity…, cit., p. 275. 235

um amplo conjunto de ideologias diferentes”, aí incluídas as não pluralistas e anti pluralistas (normas de primeiro grau), no limite dado pela incompatibilidade com o conjunto fixo de normas inegociáveis do pluralismo normativo236. A determinação de prioridades entre normas de primeiro grau compatíveis com as normas de segundo grau faz-se segundo critérios que pretendem preservar a integridade das conceções de bem em causa, sendo que o que se revelar mais essencial da perspetiva de um conjunto de normas de primeiro grau deve ter prioridade sobre o que se revelar menos essencial da perspetiva de outro conjunto de normas (“teste da essencialidade”)237, e a identificação de disputas relativas a interesses e valores de igual nível em relação aos seus respetivos conjuntos de normas de primeiro grau, ou seja, de igual importância face à conceção de bem em relação à qual estão ligados, nível que, ao contrário dos anteriores, deve ser deixado à politica democrática238.

Finalmente, a inclusividade e os seus limites são, por sua vez, resultado de uma convergência entre constituição e democracia e, por conseguinte, simultaneamente obra do legislador democrático e do juiz constitucional, o que implica a distinção entre o que cabe à constituição e o que cabe à política – ou, de outra perspetiva, à “política constitucional” e à “política normal”239 - e entre o que deve ser discutido pelos parlamentos e o que deve ser decidido nos tribunais 240. Sendo o liberalismo, o comunitarismo, o republicanismo ou o nacionalismo conceções de bem como outras, também elas terão de passar pelo “crivo” das normas de segundo grau e, por conseguinte, ser rejeitadas naqueles aspectos em que se revelem incompatíveis com                                                                                                                

236

MICHEL ROSENFELD, The Identity…, cit., p. 275. Quer isto dizer que os sistemas conseguem viver com níveis de dissonância e de divergência, desde que se mantenham nos limites da compatibilidade – assim, deverão ser admitidas todas as conceções de bem que sejam inconsistentes, ainda que não incompatíveis, com as normas de segundo grau, permitindo-se assim um certo grau de “dissonância normativa”. Sobre a questão, também MIGUEL PRATA ROQUE, “Sociedade...”, cit., em especial p. 379 ss. e, sobre os limites do pluralismo, p. 403 ss.

237

Sobre a questão, MICHEL ROSENFELD, “Rethinking…”, cit., p. 435. 238

As matérias relativas a este terceiro nível, essas, estão melhor se deixadas a um nível infraconstitucional, de preferência de acordo com um ideal republicano, sendo determinadas por um acordo relativo ao bem comum ou, na sua ausência, por deliberação comunitária. O melhor será deixar à política democrática, através de consenso ou de maioria, a decisão – que é, afinal, a opção entre conceções de bem diferentes.

239

Sobre a questão, e à face da “democracia dualista” consagrada pela Constituição portuguesa, JÓNATAS MACHADO, Liberdade religiosa..., cit., p. 165 ss.

240

Sobre a questão, ANTÓNIO CARLOS PEREIRA-MENAUT, Doce..., cit., p. 43 ss. e, desenvolvidamente, JORGE REIS NOVAIS, Direitos..., cit.

estas (ROSENFELD) - vale dizer, com o âmbito de garantia máxima do pluralismo. É neste sentido que pode dizer-se, por um lado, que não existe a “melhor” teoria” para a interpretação da constituição no contexto multicultural241, e, por outro, que cada uma dessas teorias pode, ela mesma, revelar-se não inclusiva. Ora, se ter uma constituição significa que a comunidade está constituída de determinada forma, cabe à constituição – a cada constituição concreta – estabelecer os contornos da inclusividade (aí incluídos os limites da hiper-inclusividade). Estes são suscetíveis de evolução e de densificação, como veremos, o que pressupõe uma “disposição” para uma interpretação compreensiva e inclusiva242. A isto se voltará infra, na Parte III, aquando da caracterização do princípio do pluralismo na Constituição portuguesa.