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PARTE II – DA DIVERSIDADE CULTURAL AO MODELO

2. Abordagem tópico-problemática

2.3. Do grupo ao indivíduo

Como notámos já, a discussão multiculturalista, centrada inicialmente na questão da justiça entre grupos e na relação entre maiorias e minorias, foi progressivamente voltando a sua atenção para o interior dos grupos e para os membros do grupo minoritário. Podemos identificar uma ‘crítica interna’ às propostas multiculturalistas945, orientada para os efeitos desencadeados pelas políticas multiculturalistas no seio dos grupos culturais que elas visam e, em especial, para os                                                                                                                

942

BHIKHU PAREKH, Repensando…, cit., p. 323 ss. 943

GIOVANNI MARIA FLICK, “Minoranze...”, cit., p. 8. 944

MIGUEL CARBONELL, “Constitucionalismo...”, cit., p. 33. 945

efeitos negativos das políticas de acomodação sobre os membros vulneráveis (como as mulheres ou as minorias sexuais) dos grupos culturais “protegidos”. Trata-se, por conseguinte, de atentar nas relações de poder que se exercem no interior dos grupos “reconhecidos”. Destaque-se, neste domínio, a crítica feminista ao multiculturalismo, para a qual do que se trata não é de rejeitar qua tale as propostas de uma cidadania diferenciada, mas de atender à esfera privada e à diversidade no interior do grupo946 e à necessidade de os membros vulneráveis, designadamente as mulheres, terem uma voz na discussão e negociação das relações entre minorias e sociedade maioritária, chamando a atenção para a essencialidade das dimensões de “política de representação” intragrupo947. A crítica feminista demonstra a relação entre “género” e “cultura” e a proximidade entre “cultura” e “tradição” e as práticas de “controlo das mulheres”948, mostrando como muitas das questões ditas “culturais” se relacionam com o género949, dimensão esta que não foi devidamente tida em conta pelos defensores dos direitos multiculturais de grupo950. Não obstante agrupar posições muito diferenciadas951, a crítica feminista do multiculturalismo chama “a atenção para as relações de poder no interior do grupos para as lutas constantes sobre as interpretações ‘autênticas’ da tradição do grupo perfilhada por elementos conservadores ou fundamentais, que podem pôr as mulheres desproporcionadamente em risco” (o chamado culturalismo reativo)952. A análise do contributo feminista pode                                                                                                                

946

Susan Möller OKIN, “Is multiculturalism bad for women?”, Boston Review, outubro/novembro 1997, disponível em http://new.bostonreview.net/BR22.5/okin.html [30/06/2013].

947

Ayelet AYELET SHACHAR, “Religion...”, cit., p. 65. 948

Susan Möller OKIN, “Is multiculturalism...”, cit., afirmando que a esfera da vida pessoal, sexual e reprodutiva detém uma importância decisiva na generalidade das culturas.

949

Susan Möller OKIN, “Is multiculturalism...”, cit.. 950

Assim, Susan Möller OKIN, “Is multiculturalism...”, cit., p. 9 ss. e também AYELET

SHACHAR, “Religion...”, cit., p. 69 ss. 951

Distinguindo três variantes – liberal, pós-colonial e multiculturalista - da crítica feminista ao multiculturalismo, AYELET SHACHAR, “Feminism...”, cit., p. 117 ss. A variante multiculturalista, mais recente, combina elementos da crítica feminista liberal e da defesa da identidade dos grupos, vendo as mulheres simultaneamente como detentoras de cultura e detentoras de direitos (ob. cit., p. 126), pontificando nesta corrente SEYLA BENHABIB, MONIQUE DEVEAUX e a própria AYELET SHACHAR.

952

“Tais instâncias de culturalismo reativo podem igualmente motivar respostas agressivas da comunidade maioritária, que pode sentir-se ameaçada pelo ressurgimento e pela radicalização (como tal percebida) da identidade religiosa minoritária”, escreve AYELET SHACHAR, “Religion...”, cit., p. 59, ilustrando, nas páginas seguintes, com o debate sobre o uso do hijab na escola pública em França e no Canadá e com o debate sobre a criação de um tribunal

ainda permitir separar questões de género e proteção das minorias, com isto querendo aludir-se ao facto de o recurso ao princípio da igualdade de género servir a causa da “demonização” dos grupos culturais minoritários, associando-se a estereótipos culturais, quando, na realidade, multiculturalismo e igualdade de género podem ser simultaneamente sustentados a partir do princípio da igualdade 953.

A questão de saber, usando a conhecida formulação de SUSAN MOLLER OKIN, se o multiculturalismo é mau para as mulheres954, ou como lidar com as pretensões das minorias culturais ou religiosas quando estas são contrárias ao princípio da igualdade de género das democracias liberais, não tem uma resposta simples. Assim, se podemos por um lado reconhecer que feminismo e multiculturalismo podem opor- se, que o reconhecimento de direitos a grupos e minorias culturais pode contribuir para agravar a discriminação das mulheres e que os direitos destas não são automaticamente beneficiados pela preservação da sua cultura pela maioria (antes podendo beneficiar da sua extinção ou reformulação), como parece sustentar a abordagem feminista liberal de OKIN955, podemos igualmente considerar que, não obstante a tensão potencial entre diversidade cultural e igualdade de género956, não existe uma oposição necessária entre feminismo e multiculturalismo957 e que este tipo de discurso binário obscurece as complexas questões que a relação entre direitos das mulheres e cultura realmente suscita, podendo tal relação ser estabelecida a partir de um “diálogo construtivo”, contextualizado, como parece ser a posição de LETI VOLLP958.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             

arbitral islâmico (Dar-ul-Qada) no Canadá, em Ontário. Sobre este debate, criticamente, AYELET SHACHAR, “Feminism...”, cit., p. 137 e Marion BOYD, “Dispute resolution in Family Law: Protecting choice, Promoting inclusion”, 2004, disponível em http://www.attorneygeneral.jus.gov.on.ca/english/about/pubs/boyd/.

953

ANNE PHILLIPS, Multiculturalism..., cit., p. 2 ss. 954

Susan Moller OKIN, “Is multiculturalism...”, cit. 955

Idem, cit. Sobre o feminismo liberal, vd. AYELET SHACHAR, “Feminism…”, cit., p. 118 ss. 956

AYELET SHACHAR, “Religion...”, cit., p. 69. 957

Assim, ANNE PHILLIPS, Multiculturalism..., cit., p. 3 e passim. 958

Assim, Leti VOLPP, “Feminism vs. Multiculturalism”, CLR, vol. 101, n.º 5, junho 2001, p. 1181-1218. Volpp considera que a defesa de uma oposição entre multiculturalismo e feminismo assenta no pressuposto da mulher imigrante vítima da sua cultura (ob. cit., p. 1183) e presume que as culturas minoritárias são mais patriarcais que as culturas liberais ocidentais (ob. cit., p. 1185). Isto resulta do facto de no ocidente a violência sobre as mulheres ser vista como algo desviante, e não como parte da cultura, ao passo que episódios de violência sobre as mulheres em países de Terceiro Mundo ou em comunidades imigrantes

A oposição multiculturalismo versus feminismo959 reflete outras ‘lógicas binárias’, como as oposições entre relativismo e universalismo e entre direitos e cultura, ou “ação motivada pela razão” (característica da cultura ocidental) versus “ação orientada pelos ditames culturais” (não-ocidental) 960, sugerindo que os valores da cultura ocidental são definidos por oposição a cultura (minoritária, do Terceiro Mundo), que género e raça são inconciliáveis (quando os vetores da identidade não podem ser analisados isoladamente), e que cultura e direitos humanos são mutuamente excludentes, para além de ter por base uma certa assunção da superioridade da cultura ocidental (“West is best”) 961. Obscurece igualmente o enquadramento cultural de muitas práticas ocidentais de tipo sexista e discriminatório e o caráter patriarcal de todas as culturas (não mais ou menos, mas diferentemente)962, as relações de opressão entre mulheres, a complexidade de fatores que subjazem à subordinação das mulheres (e que são de ordem estrutural, não resultando apenas da subordinação com base no género culturalmente motivada), bem como apresenta a mulher como “vítima” ao invés de “sujeito de emancipação”963, negando-lhe a capacidade de “ressignificar” as práticas culturais964.

O multiculturalismo pode, sim, beneficiar das observações críticas da teoria feminista e reformular-se. Tal não implica sustentar que a sociedade tenha de ser cega à cultura e à religião e “minimizar o efeito da religião” ou de outras pertenças comunitárias como única forma de proteger as “membros vulneráveis”, in casu as mulheres (como parece supor certo feminismo liberal), mas conceder maior atenção à dimensão interna e às relações de poder no seio dos grupos culturais ou religiosos,                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              

são tidos por característicos das culturas, ou seja, a cultura é invocada para explicar formas de violência contra as mulheres imigrantes ou de Terceiro Mundo mas não é invocada para explicar formas de violência contra as mulheres ocidentais, sugerindo que as primeiras sofrem de morte pela cultura (“death by culture”) e ignorando os aspectos culturais da violência sexual afetando as mulheres brancas da maioria (ob. cit., p. 1187 ss.). Tal reflete o facto de não vermos o comportamento das pessoas da maioria como “cultural”, etiqueta que sempre aplicamos ao comportamento dos grupos minoritários (ob. cit., p. 1189).

959

Hoje largamente ultrapassada, entende AYELET SHACHAR, “Feminism…”, cit., p. 116. 960

Leti VOLPP, “Feminism…”, cit., p. 1191 e ANNE PHILLIPS, Multiculturalism..., cit., p. 1- 2.

961

Leti VOLPP, “Feminism…”, cit., p. 1216 e AYELET SHACHAR, “Feminism...”, cit., p. 119. 962

Leti VOLPP, “Feminism…”, cit., p. 1217. 963

Idem, cit., p. 1217. 964

A este propósito, remetemos para SEYLA BENHABIB, Las reinvindicaciones…, cit., p. 197 ss.

bem como aos efeitos de medidas de acomodação ‘fortes’ sobre os membros vulneráveis, propondo designadamente medidas de acomodação ‘fracas’965 e estratégias destinadas a empoderar os membros em posição de debilidade.

A atenção à situação das ‘minorias dentro das minorias’ justifica a preocupação com a distribuição no seio do grupo dos custos associados ao reconhecimento da identidade cultural, ou da diferença cultural, e que tendem a sobrecarregar os membros vulneráveis dos grupos culturais. Assim, será necessário ter em conta que as proteções externas destinadas a colocar os diferentes grupos em situação de igualdade podem frequentemente contribuir para o reforço das restrições internas, acentuando a situação de exclusão das “minorias internas”, às quais caberá suportar custos acrescidos resultantes de uma política que, paradoxalmente, acaba por reforçar a posição dos membros que já detinham uma posição dominante (‘paradoxo da vulnerabilidade multicultural’966).

Da conclusão pela admissibilidade de direitos coletivos culturalmente diferenciados não resulta necessariamente a conclusão pela sua prevalência sobre os direitos individuais, como escrevemos supra. Mas é precisamente o receio pela perda de referência ao indivíduo que leva ANNE PHILLIPS a sustentar que o multiculturalismo não deve ser uma forma de distribuir poder e autoridade entre grupos culturais diferentes, pelo que não se reconhecem às culturas qua tale quaisquer direitos a respeito, financiamento ou sobrevivência967. Os direitos que estão em causa em situações de multiculturalidade, afirma, são direitos dos indivíduos (e não dos grupos), em última análise o direito de cada um a viver de acordo com as suas convicções, não se tratando de direitos absolutos mas de direitos sujeitos a limites resultantes do contexto e da necessidade de harmonização com outros direitos968. Em todo o caso, o facto de o cerne da questão multicultural não ser a distribuição de poderes e recursos entre grupos não significa, para a autora a que nos vimos referindo, que os governos devam recusar o apoio, designadamente financeiro, a associações de base etnocultural, ou que as sociedades devam recusar medidas destinadas a aumentar

                                                                                                               

965

Sobre a questão, AYELET SHACHAR, “Religion...”, cit., p. 70 ss. e 86 ss. 966

Questão que desenvolveremos infra. 967

ANNE PHILLIPS, Multiculturalism..., cit., p. 162 ss. 968

a representação política de grupos culturais ou nacionais minoritários969. Pelo contrário, aquela asserção condensa-se na objeção a medidas que promovam a autoridade reguladora de um grupo sobre os seus membros970, ou elevem a normas culturais de referência normas que apenas alguns membros dos grupos identificam como tal971. Dada a inevitabilidade da referência aos grupos na problemática multiculturalista e, em conformidade, a inevitabilidade da referência à possibilidade de coação972, a sua proposta não é, em suma, a de um multiculturalismo sem grupos ou sem cultura, mas de um multiculturalismo que rejeita um conceito essencialista de cultura e reivindica a centralidade do indivíduo e dos seus direitos.

O feminismo multiculturalista sustenta uma mudança no sentido de uma abordagem mais crítica das dimensões políticas e jurídicas do multiculturalismo e da cidadania e suas implicações nos direitos das mulheres, procurando fazer justiça à “aspiração multidimensional de obter seja a igualdade seja o reconhecimento como mulheres, cidadãs e membros de grupos minoritários”973. As suas reivindicações fundamentais prendem-se com a rejeição de um entendimento apolítico da cultura, a rejeição de uma conceção da mulher como ser não dotado de capacidade de ação para operar mudanças na sua tradição cultural e a necessidade de levar em conta as

                                                                                                               

969

Idem, cit., p. 166 ss. 970

Afirmando também um princípio de não-monopólio, AYELET SHACHAR, Multicultural…, cit., p. 120 ss. Todavia, ANNE PHILLIPS é, ao contrário de AYELET SHACHAR, perentória na recusa de reconhecimento de sistemas de direito costumeiro ou de base religiosa, que entende violarem o princípio da igualdade, no direito da família. Reconhecendo precisamente essa diferença, ANNE PHILLIPS, Multiculturalism..., cit., p. 171.

971

ANNE PHILLIPS, Multiculturalism..., cit., p. 169. De facto, a estar correta a crítica a um conceito reificado de cultura, bem como a inexistência de mecanismos convincentes que permitam aos membros de um grupo cultural um controlo democrático sobre aqueles que falam em seu nome, os referidos poderes regulatórios convertem-se em poderes autoritários. É, todavia, difícil distinguir medidas que empoderam um indivíduo e medidas que reforçam a autoridade de um grupo, tanto mais que atuações voluntárias de indivíduos podem reforçar a autoridade de um grupo e resultar em coerção dos outros membros do grupo (ob. cit., p. 176 e exemplos aí referidos).

972

Idem, cit., p. 176-177. O seu multiculturalismo recusa aprisionar os indivíduos nas suas culturas e tratar as suas escolhas em contexto de pressão social como “inautênticas”, como se houvesse um leque de escolhas livres de pressões socais, económicas, familiares ou culturais, e só este leque de opções “puras” contasse, mas recusa igualmente uma compreensão “tudo- ou-nada” da liberdade que retire do facto de uma pessoa se manter numa relação particular ou grupo cultural, e não faça uso da possibilidade de sair, signifique que consentiu em todos os seus traços ou elementos.

973

condições jurídico-institucionais, as estruturas de representação do grupo e a forma como condicionam o espaço de ação real das mulheres974.

Reconhecendo, tal como PAREKH, TULLY, BENHABIB ou SHACHAR, o papel das interações na construção cultural, SONG considera fundamental ir mais além, debruçando-se sobre o modo como as interações culturais moldam as identidades e práticas das culturas minoritárias, salientando a importância das interações e lutas com outras culturas na formação das identidades culturais e a necessidade de compreender as dimensões ‘intra’ e ‘inter’ culturais dos conflitos culturais975. Se e em que medida os indivíduos se identificam, ou são identificados, com identidades sociais particulares é algo que resulta, combinadamente, da ação pública e dos constrangimentos e opções resultantes do ambiente que envolve os diferentes grupos identitários, não se tratando apenas de possuir certos atributos culturais, mas de se identificar com, e participar na via coletiva de variadas formas. A abordagem construtivista permite não só avaliar criticamente o papel do Estado na construção da cultura mas também tomar consciência da variabilidade que o valor e a experiência de pertença cultural assumem para diferentes membros do grupo e para diferentes grupos976.

A abordagem construtivista da cultura evidencia a contingência e variabilidade das experiências individuais de pertença cultural977, permitindo valorizar as dimensões de autoidentificação e de experiência pessoal da identidade cultural – dimensões, como justamente observa SONG, algo negligenciadas pela teoria multiculturalista978 - o que nos remete para a questão das dimensões autónomas e heterónomas da adscrição cultural (e, consequentemente, para a questão do ‘direito de saída’ do grupo de pertença) e para a essencialidade de garantir ao indivíduo a possibilidade de deter controlo (ao menos, parcial) sobre a sua identificação cultural.                                                                                                                

974

Idem, cit., p. 129. 975

SARAH SONG, Justice..., cit., p. 36 ss. 976

Idem, cit., p. 36 ss. 977

SARAH SONG, “Majority norms, multiculturalism and gender equality”, in APSR, vol. 99, n.º 4, 2005, p. 473 ss., nota que o critério de adscrição associado à identidade cultural dos grupos inclui ancestralidade partilhada, linguagem comum e costumes partilhados, mas também uma dimensão subjetiva, a de saber até que ponto indivíduos adotam as categorias e que significados lhes atribuem. Assim, alguém pode possuir os atributos associados a uma categoria mas não experimentar um sentimento forte de pertença, podendo resistir e mesmo procurar transformar as próprias categorias.

978

Neste sentido, a identidade é acesso a processos de identificação que desenvolvem e garantem as capacidades do sujeito de se ligar e desligar, nomeadamente de ser criador de objetos, e de se construir (uma vez que não é um dado), pressupondo a relação com o outro, a responsabilidade perante o outro (LEVINAS), em suma, alteridade e intersubjetividade979.

BENHABIB considera justamente que um dos princípios da convivência multicultural pluralista na esfera jurídica há-de ser o da auto adscrição voluntária, nos termos do qual “uma pessoa não deve ser automaticamente atribuída a um grupo cultural, religioso ou linguístico em virtude do seu nascimento”, devendo privilegiar- se a forma mais ampla de auto adscrição e autoidentificação980.

O movimento do conceito de identidade para o de afiliação – o primeiro, preferido pelo discurso multiculturalista, remetendo para algo fixo e previamente dado, o segundo apresentando-se como mais performativo e sugerindo maior flexibilidade – é central para o que HOLLINGER designa como a superação do multiculturalismo por uma perspetiva pós-étnica, perspetiva esta que favorece as afiliações voluntárias sobre as involuntárias, valoriza as múltiplas pertenças, balanceia o peso das comunidades originárias com a abertura de espaço para novas comunidades e promove solidariedades de largo espectro que incorporam pessoas com diferentes backgrounds étnicos e raciais981. Não se nega que as pessoas tenham identidades, mas sublinha-se que as identidades que as pessoas assumem são em grande medida adquiridas através da afiliação, seja ela prescrita ou, preferencialmente, escolhida982, dado que qualquer um de nós tem alguma margem de escolha dos “circles of the we” que prefere983. A perspetiva pós-étnica reconhece o caráter instrumental e o caráter e âmbitos variáveis das comunidades nas quais as pessoas desenvolvem os seus valores, políticas, critérios de verdade e identidades                                                                                                                

979

Patrice MEYER-BISCH, “Le sujet des droits…”, cit., passim. 980

SEYLA BENHABIB, Las reivindicaciones…, cit., p. 216. Nos casos em que a identificação é controvertida, o Estado não deverá simplesmente outorgar o direito de definir e controlar a pertença grupal a expensas da própria pessoa, sendo ainda desejável que em algum momento da sua vida adulta as pessoas sejam consultadas para saber se aceitam pertencer às suas comunidades de origem.

981

DAVID HOLLINGER, Postethnic…, cit., p. 3. A perspetiva pós-étnica é desenvolvida nas p. 105 ss.

982

Idem, cit., p. 7. O conceito de afiliação é desenvolvido a p. 19 ss. 983

pessoais e rejeita a tentação “pluralista” de uma sociedade internamente compartimentada a favor de uma perspetiva capaz de construir solidariedades globais com capacidade para responder aos dilemas presentes984. A perspetiva pós-étnica não implica, pois, em rigor, superar o multiculturalismo, mas preferir a sua dimensão cosmopolita à sua dimensão pluralista, propondo um cosmopolitismo rearticulado a partir do apreço pela etnicidade, aberto às múltiplas pertenças, em suma, um ‘cosmopolitismo enraizado’985. Um multiculturalismo assim articulado em modo cosmopolita concilia a importância de reconhecer ao indivíduo um ‘espaço de ação cultural’ (o qual, todavia, é balizado pelos contextos sociais em que se exerce), traduzido pela ‘afiliação’ ou ‘auto adscrição voluntária’, e a capacidade de se inscrever em diferentes níveis de solidariedade ou pertença.

Finalmente, o movimento no sentido de conferir centralidade ao indivíduo e à sua capacidade de escolha, que identificamos nas propostas analisadas supra, de HABERMAS a SEN e a ANNE PHILLIPS, podem inscrever-se num quadro mais amplo de perspetivas centradas sobre o sujeito e o indivíduo, entre as quais se destaca a proposta de TOURAINE de pôr em primeiro lugar o sujeito como forma de combater os excessos, seja do comunitarismo seja do neoliberalismo. Como nota FACCHI, colocar o indivíduo em primeiro plano não significa, do ponto de vista metodológico, ter por referência um indivíduo abstrato sem referências culturais e sociais nem, do ponto de vista político, prescindir da referência às dimensões coletivas986.

                                                                                                               

984

DAVID HOLLINGER, Postethnic…, cit., p. 12-13. Colocámos pluralista entre aspas uma vez que a expressão tem um significado específico na proposta do autor, que identifica (ob. cit., p. 3-4) multiculturalismo uma tensão crescente mas dificilmente apercebida entre programas cosmopolitas e pluralistas para a defesa da diversidade cultural. Enquanto “o pluralismo respeita as fronteiras herdadas e localiza os indivíduos dentro de um ou outro de uma séries de grupos etno-raciais a proteger e preservar”, o cosmopolitismo “está mais consciente das compartimentações tradicionais e privilegia as afiliações voluntárias”, “promove as múltiplas identidades, enfatiza o caráter dinâmico e mutável de muitos grupos, e é sensível ao potencial de criação de novas combinações culturais”. A perspetiva pós-étnica baseia-se precisamente no elemento cosmopolita do movimento multiculturalista em detrimento do elemento pluralista.

985

Sobre o tema, WILL KYMLICKA/KATHRYN WALKER, "Rooted Cosmopolitanism: Canada and the World", in WILL KYMLICKA/KATHRYN WALKER (eds.), Rooted Cosmopolitanism: Canada and the World, Vancouver/Toronto, UBC Press, 2012, p. 1 ss.

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