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Cultura, identidade, diversidade

PARTE II – DA DIVERSIDADE CULTURAL AO MODELO

2. Abordagem tópico-problemática

2.1. Cultura, identidade, diversidade

Na senda do que já dissemos, atribui-se aos comunitaristas o impulso dado às questões do reconhecimento das identidades coletivas culturais 750. Na sua formulação contemporânea, o pensamento comunitarista desenvolve-se como proposta de correção do projeto liberal, consubstanciando uma crítica da modernidade, “das suas matrizes individualista, racionalista e voluntarista, bem como das visões do eu, da

                                                                                                               

748

Parafraseamos Will KYMLICKA, Multicultural Odysseys: Navigating the New International Politics of Diversity, Oxford, Oxford University Press, 2007, p. 61, a propósito da (im)possível definição de multiculturalismo liberal.

749

AYELET SHACHAR, Multicultural Jurisdictions, Cambridge, Cambridge University Press, 2001, p. 27.

750

Também em relação ao comunitarismo é válido afirmar que não existe um, mas vários. Sobre estes, OLIVIER NAY, Histoire…, cit., p. 524 ss.; WINFRED BRÜGGER, “Communitarianism...”, cit., p. 433 ss. e CARLOS AMARAL, “Comunitarismo”, in JOÃO

CARDOSO ROSAS (org.), Manual de Filosofia Política, Coimbra, Almedina, 2008, p. 89 ss., p. 98 ss.

sociedade, da justiça, da democracia e do político que a enformam”751. Em extrema síntese, os comunitaristas apontaram ao liberalismo a sua incapacidade para dar conta das desigualdades realmente existentes, desconhecendo a sua dimensão comunitária, e uma conceção abstrata de indivíduo e de sociedade como “soma de indivíduos”, associada ao esquecimento ou à desconsideração de que os indivíduos são seres “situados”, que se constroem por referência a comunidades, atribuídas ou escolhidas752, reconhecidas como sujeitos de direitos e deveres e, designadamente, de um direito à autodeterminação753. Neste sentido, a identidade do sujeito não prescinde da sua inserção social, tradicional, histórica e cultural754. É contestada a contraposição entre o “justo” e o “bem” e a precedência daquele sobre este (para os comunitaristas não existe a “pessoa” separada da sua “conceção de bem”, e a conceção de bem-estar individual também envolve a dimensão comunitária e, nesta, a política755), bem como o correspondente princípio da neutralidade estadual756. Ao contrário dos liberais, os comunitaristas sustentam que cabe às sociedades formular conceções partilhadas, mais ou menos densas, de bem comum (diferindo os comunitaristas entre si quanto ao

                                                                                                               

751

CARLOS AMARAL, “Comunitarismo”, cit., p. 88. Ao mesmo tempo, procura dar uma resposta ao desencanto com a atividade política e ao afastamento entre esta e os cidadãos (ob.cit., p. 88), sendo a valorização comunitarista das “comunidades substanciais” e das virtudes republicanas clássicas retomada pelas variantes modernas do republicanismo (MILENA DOYTCHEVA, Le multiculturalisme, cit., p. 36).

752

OLIVIER NAY, Histoire…, cit., p. 524 ss. e WINFRED BRÜGGER, “Communitarianism...”, cit., p. 433 ss.Contestando a assunção de que a teoria liberal concebe o indivíduo de forma isolada e atomística, salientando que do que se trata é, não de negar a importância das comunidades e associações, mas de estabelecer a prioridade do indivíduo face à comunidade, CHANDRAN KUKATHAS, “Are there any cultural rights?”, in PT, 20, 1992, p. 105 ss., p. 110 ss.

753

Discutindo a questão, CHANDRAN KUKATHAS, “Are there any…”, cit., p.108 ss. 754

JÓNATAS MACHADO, “A jurisprudência constitucional portuguesa diante das ameaças à liberdade religiosa”, in BFDC, n.º 82, 2006, p. 65 ss., p. 85. A “obsessão identitária” dos comunitaristas é objeto de crítica dos libertarismos, vd. OLIVIER NAY, Histoire…, cit., p. 551 ss.

755

MARÍA JORQUI AZOFRA, “Defensa de la universalidad de los derechos humanos y protección de las diferencias”, in LAURA MIRAUT MARTÍN (ed.), Justicia, migración y derecho, Madrid, Dykinson, 2004, p. 291 ss., p. 298.

756

JÓNATAS MACHADO, “A jurisprudência…”, cit., p. 87, nota que a perspetiva comunitarista mostra a impossibilidade de garantir uma verdadeira e pura neutralidade mundividencial quando se trata de proceder à identificação, delimitação e ponderação dos bens constitucionais em domínios como o valor da vida, a sexualidade a família, etc., consideradas essenciais para a subsistência da vida social enquanto tal”, abrindo-se ao cultivo de virtudes cívicas e políticas.

peso que lhe atribuem), e não apenas a cada indivíduo determinar a sua conceção pessoal de bem757.

Recorrendo à síntese de BRUGGER758, os comunitarismos evidenciam como características comuns (baseadas numa determinada antropologia e teoria social) a “comunalidade” (o que implica a determinação de qual o critério para estabelecer a comunidade e determinar o “bem comum”) e a ênfase na liberdade positiva de associação em formas partilhadas de vida (e não na negativa) e na liberdade de autodeterminação através da comunidade759. Partilham ainda a procura de uma ponte entre o interesse individual e o Estado, ou seja, ocupam-se das relações triádicas entre os vários elementos da sociedade, desde as associações privadas ao mercado e, daí, ao Estado. Este último deve organizar-se de forma a facilitar a constituição de comunidades, adotando uma atitude de “facilitação, cuidado e coordenação”, que faça naturalmente relevar o princípio da subsidiariedade.

A crítica liberal ao comunitarismo aponta-lhe o facto de aprisionar o indivíduo dentro das comunidades. Porém, partindo de uma conceção de homem como “ser em relação”, “naturalmente social” (retomando de alguma forma o pensamento aristotélico original), a sociabilidade comunitária não tem de ser um limite à liberdade individual, podendo antes revelar-se uma condição desta760. A comunidade, por seu turno, não tem de ser concebida como comunidade de destino, podendo apresentar-se, na linha do comunitarismo de AMITAÏ ETZIONI761, como espaço de “federação de vontades”, aberta ao exterior, assente em “valores partilhados” entendidos não como simples normas culturais, mas como conjunto de princípios morais aos quais aderem aqueles que se envolvem numa atividade comum, sendo esta a condição para a                                                                                                                

757

AMITAÏ ETZIONI, “Communitarism”, in JOEL KRIEGER (ed.), The Oxford Companion to Comparative Politics, Nova Iorque, Oxford University Press, 2013, p. 221 ss., disponível em http://icps.gwu.edu/publications/academic-publications/.

758

WINFRIED BRÜGGER, “Communitarianism…” cit., p. 433 ss. 759

Como nota WINFRIED BRÜGGER, “Communitarianism …”, cit., p. 436, o BVerfG adota uma posição “comunitarista” quando acentua a necessidade de o homem ser entendido como ser social: “a imagem de homem na Lei Fundamental não é a de um indivíduo isolado, soberano; antes, a Lei Fundamental decidiu a favor de uma relação entre o indivíduo e a comunidade, no sentido de dependência e compromisso do indivíduo para com a comunidade, sem pôr em causa o valor individual da pessoa” (4 BVergGE 7, 15, seguido em jurisprudência posterior).

760

OLIVIER NAY, Histoire…, cit., p. 533, referindo-se à conceção de Amitai Etzioni. 761

criação de “laços sociais que não se limitem ao jogo de interesses (como no liberalismo) nem à identidade de tensão (como no multiculturalismo)”762. Os valores morais, cuja superioridade face às normas racionais estabelece, não são estabelecidos a priori, não são imutáveis nem absolutos, devem antes resultar de um diálogo moral, ou seja, de uma discussão aberta sobre os princípios e valores julgados indispensáveis para a boa sociedade, que procura o bem de todos no respeito dos direitos mas também na definição dos deveres763.

A proximidade entre multiculturalismo e comunitarismo é evidente, dada a referência comum ao papel fundamental das comunidades na forma de conceber a vida social, a comum recusa de uma visão abstrata de homem e a convergência na importância assumida pelos “patrimónios” (normas, valores, culturas…) ” na construção de laços sociais e no desenvolvimento pessoal764. Porém, multiculturalismo e comunitarismo não se confundem765 e as diferentes variantes do comunitarismo, substantivo ou conservador, universalista-igualitário e liberal766, posicionam-se de forma diferente perante a realidade multicultural do Estado.

Assim, não só a discussão sobre o multiculturalismo não assenta hoje já sobre a contraposição entre liberalismo e comunitarismo - respetivamente contrário e favorável ao reconhecimento jurídico-político da diversidade cultural -, como se conclui pela possibilidade quer de um multiculturalismo liberal - relevando a compatibilidade ao menos com um certo tipo de liberalismo767 - quer de um ‘anti

                                                                                                               

762

OLIVIER NAY, Histoire…, cit., p. 528 ss. 763

Idem, cit., p. 528 ss. 764

Idem, cit., p. 524 ss., WINFRED BRÜGGER, “Communitarianism...”, cit., p. 433 ss. e CARLOS AMARAL, “Comunitarismo”, cit., p. 98 ss. A principal diferença, segundo NAY, é a filiação liberal do multiculturalismo.

765

Em consequência, se a perspetiva comunitarista se ocupa da procura de um bem comum assente em valores morais partilhados, ou do “restabelecimento da moral”, os multiculturalistas ocupam-se dos direitos reconhecidos às identidades sociais e culturais reais, colocando a questão das pertenças culturais do ponto de vista da reflexão sobre os direitos em democracia, vd. OLIVIER NAY, Histoire…, cit., p. 524 ss., WINFRED BRÜGGER, “Communitarianism...”, cit., p. 433 ss. e CARLOS AMARAL, “Comunitarismo”, cit., p. 98 ss. 766

WINFRED BRÜGGER, “Communitarianism...”, cit., p. 438 ss.. 767

Há, assim, que distinguir o liberalismo clássico, que defende unicamente direitos dos indivíduos, do liberalismo que tolera os direitos das culturas sempre e quando não sejam contrários aos direitos de liberdade nem infrinjam os princípios liberais, corrente de que é expressão o liberalismo progressista ou culturalista de KYMLICKA, vd. MARIA ISABEL

multiculturalismo’ de base comunitarista768, em que a defesa da identidade cultural serve não a causa da diversidade cultural mas a da coesão ou mesmo da homogeneização cultural e da assimilação. Apercebe-se essa dificuldade em lidar com a diversidade cultural na variante substantiva ou conservadora do comunitarismo769, mas também a variante universalista-igualitária pode ser acusada de reconhecer pouco espaço à expressão da diversidade pela ênfase colocada no que é comum a todos770. Neste sentido, propostas comunitaristas em que a identidade cultural relevante é a da maioria, por referência à qual se coloca a questão da integração das minorias, bem como propostas de “promoção ativa e militante” de comunidades morais de base étnica, religiosa ou mesmo política e cívico-republicana771, podem ser acusadas, entre outras coisas, de traduzir um retorno à assimilação, mesmo que já não de base étnica mas de base jurídica e política (e, neste sentido, pós-étnica). Parece mais defensável a abordagem de certo comunitarismo liberal, promissora na atenção que dedica à articulação entre as diversas comunidades com “estrutura, objetivos, moralidade e justiça” próprios772, e que são, afinal, as “comunidades de pertença” do sujeito multicultural, e de um ‘comunitarismo responsivo’ que combina responsabilidade sociais com direitos individuais.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             

minorías culturales”, in ÓSCAR PÉREZ DE LA FUENTE (ed.), Una discusión sobre la gestión de la diversidad cultural, Madrid, Dykinson, 2008, p. 109 ss.

768

JOÃO CARDOSO ROSAS, “Sociedade…”, cit., p. 14. 769

Assim, WINFRED BRÜGGER, “Communitarianism …”, cit., p. 438. A variante substantiva ou conservadora, escreve, assenta no pressuposto de que uma comunidade politica e jurídica estável necessita sempre de um grau mínimo de homogeneidade interna, garantindo lealdade, compreensão e cuidado mútuos entre as pessoas, bem como, externamente, um distanciamento face aos demais estados e povos. Esta perspetiva pressupõe a homogeneidade ou pelo menos compatibilidade de raças, línguas e religiões e revela dificuldades perante a realidade multicultural da generalidade dos estados.

770

A variante universalista-igualitária enfatiza dois postulados universais, que DWORKIN

formulou como “equal concern and respect”, ou seja, igual tomada em consideração pelas necessidades básicas e autodeterminação de todos os povos e igual respeito pelos estilos de vida de todos os indivíduos e grupos. Nesta perspetiva – de HABERMAS e de DWORKIN – o que é privilegiado é o que é comum a todos, que é universal a todos – a capacidade de linguagem e de razão – e, nesse sentido, o que nos diferencia é secundário ou mesmo suspeito. Como tal se revela difícil na atualidade, os defensores desta perspetiva aceitam a existência do Estado-Nação mas defendem a sua progressiva articulação com outros níveis de governança em ordem a atingir um estado de coisas que combata as desigualdades à escala universal, vd. WINFRED BRÜGGER, “Communitarianism …”, cit., p. 439.

771

Assim também JÓNATAS MACHADO, “A jurisprudência…”, cit., p. 89. 772

Partindo de uma conceção de cultura como ‘bem intrínseco’ e ‘irredutivelmente social’773, CHARLES TAYLOR afirma a necessidade de preservar as culturas e de garantir condições para a sua sobrevivência, desenvolvimento e florescimento, o que exige uma política de igualdade formal de direitos entre indivíduos mas também o reconhecimento do igual valor das diversas identidades culturais e, consequentemente, de direitos especiais a grupos culturais (o seu multiculturalismo é frequentemente apelidado de ‘multiculturalismo forte’). TAYLOR alerta para a importância do reconhecimento da especificidade (cultural) na construção da identidade, concebida de forma dialógica, e para a necessidade de complementar a ‘política de igual dignidade’ com uma ‘política da diferença’ (aplicável a diferentes grupos sociais, como as minorias étnicas e as minorias imigradas), ambas dimensões da “política do reconhecimento”, que integra a esfera pública e é a base da sua proposta774. A exigência do reconhecimento está associada à tese da relação entre reconhecimento e identidade (“multicultural self”775), nos termos da qual a nossa identidade é formada, em parte, pela existência ou inexistência de reconhecimento e, muitas vezes, pelo reconhecimento incorreto dos outros. Assim, “[o] respeito devido não é um ato de gentileza para com os outros. É uma necessidade humana vital”776. A passagem da ‘honra’ à ‘dignidade’, e a nova compreensão da identidade individual que surgiu no final do século XVIII como identidade individualizada (no sentido de ‘aquela que é especificamente minha’), noção que surge juntamente com o ideal de ‘autenticidade’ (no sentido de ‘ser verdadeiro para comigo e para com a minha maneira de ser’), associado ao “ideal de originalidade” de inspiração ‘hederiana’, estão na origem desta evolução no sentido da identidade, da

                                                                                                               

773

CHARLES TAYLOR define os ‘bens irredutivelmente sociais’ de duas formas distintas mas sobrepostas, como bens que tornam concebíveis ações, sentimentos e formas de vida valiosas (id est, sede de bens que valorizamos) e como bens que incorporam entendimentos comuns acerca do seu valor (id est, como bem), vd. SARAH SONG, Justice…, cit., p. 17 ss. e ainda, dada a relevância para a problemática dos direitos coletivos, NEUS TORBISCO CASALS, Minorias culturales y derechos coletivos: un enfoque liberal, Barcelona, Universidad Pompeu Fabra, 2000, ISBN 8469985094, p. 89, disponível em http://www.tdx.cat/TDX-1212101- 123858.

774

CARLOS THIEBAUT, “Charles Taylor: democracia y reconocimiento”, in RAMÓN MAÍZ

(org.), Teorías políticas contemporáneas, Valencia, Tirant lo Blanch, 2001, p. 209 ss. 775

JAN M.BROEKMAN, “Multiculturalism”, in PyD, n. º 48, 2003, p. 15 ss. 776

CHARLES TAYLOR, Multiculturalismo. Examinando a política do reconhecimento, Lisboa, Edições do Instituto Piaget, 1998, p. 46.

relevância moral da diferença e do reconhecimento777. Para se compreender a relação entre identidade e reconhecimento tem pois de se tomar em consideração um aspecto definitivo da condição humana, e que é o seu caráter fundamentalmente dialógico: tornamo-nos em verdadeiros agentes humanos, capazes de nos entendermos e assim definirmos as nossas identidades, quando adquirimos “linguagens humanas de expressão” 778.

O argumento de TAYLOR a favor da preservação das culturas foi acusado de incorrer em confusão entre factos e juízos de valor sobre as culturas779. A presunção de igual valor entre culturas que avançou mereceu-lhe severas críticas780, mas parece todavia expressar a necessidade pedagógica de um “alargamento do diálogo” no sentido de que todas as culturas merecem ser ouvidas, e não, necessariamente, uma predeterminação dos resultados desse estudo ou uma igualdade efetiva entre culturas781. Por outro lado, a defesa de uma preservação das culturas pode entrar em conflito com direitos básicos dos membros do grupo, cabendo então perguntar como compatibilizar direitos individuais e bens coletivos782, bem como não contempla a possibilidade de desacordo, seja quanto ao que constitui a identidade do grupo (correndo o risco de privilegiar certas ‘versões’), seja o desacordo intergeracional783.

A conciliação entre liberalismo e multiculturalismo pode ser ilustrada pelo ‘liberalismo culturalista’ de KYMLICKA, que parte da autonomia e da igualdade para advogar políticas multiculturalistas e a atribuição de direitos multiculturais. O autor canadense sustenta que a liberdade individual implica levar a cabo escolhas entre formas possíveis de viver a vida e conceções de vida boa, bem como a possibilidade de rever as opções tomadas, ou seja, de rever os seus fins784. Ou seja, a liberdade                                                                                                                

777

CHARLES TAYLOR, Multiculturalismo..., cit., p. 49 ss. 778

Idem, cit., p. 52. 779

Sobre a questão, SARAH SONG, Justice..., cit., p. 20. 780

Por exemplo, veja-se Jürgen HABERMAS, “La lucha…”, cit., p. 209. 781

Assim, CLIFFORD ORWIN, “Pluralismo...”, cit., p. 127 ss. 782

Quanto à questão de saber se os direitos individuais poderão ceder para acomodar a integridade de uma determinada forma de vida cultural, TAYLOR responde com a necessidade de distinguir direitos fundamentais que não deverão ser postos em causa, de privilégios e imunidades que são importantes mas poderão ser restringidos por razões de política pública, desde que justificadamente, vd. CHARLES TAYLOR, Multiculturalismo..., cit., p. 80 e Jurgen HABERMAS, “La lucha…”, cit., p. 189 ss.

783

SARAH SONG, Justice..., cit., p. 21 ss. 784

envolve escolhas entre possibilidades e a nossa cultura societal785 não apenas nos proporciona este leque de opções como nos fornece o contexto necessário para que as percebamos como significativas, dependendo as escolhas relativas às práticas sociais da crença acerca do valor dessas práticas 786. Os direitos culturais justificam-se com base na importância dos “contextos de escolha” e, por conseguinte, com base na centralidade da autonomia pessoal e das liberdades individuais787.

Restará esclarecer se a relação entre liberdade individual e cultura se estabelece em relação à própria cultura, ou exige apenas que a pessoa tenha acesso a ‘culturas’ e, em consequência, se deve ser garantido o acesso à própria cultura, designadamente protegendo-a da desintegração, ou se basta garantir aos membros da cultura minoritária o acesso à cultura maioritária788. KYMLICKA sustenta, tendo por base a posição de WALDRON do ‘cidadão cosmopolita’ que se move entre culturas não precisando da ligação à ‘sua’ cultura789, que nem as mudanças são tão frequentes, nem estão isentas de custos, o que suscita a questão de saber se às pessoas deve ser exigido que suportem esses custos (que variam consoantes as pessoas e as circunstâncias) a menos que voluntariamente escolham fazê-lo790. Ou seja, uma teoria da justiça deve                                                                                                                

785

Por “cultura societal” entende-se (WILL KYMLICKA, Multicultural Citizenship…, cit., p. 76), uma cultura cujas práticas e instituições proporcionam aos seus membros “modos significativos de vida no que diz respeito ao largo espetro de atividades humanas, incluindo a vida social, educativa, religiosa, recreativa e económica, abrangendo quer a vida privada quer a pública”, culturas geograficamente delimitadas e cujo centro de gravidade gira sobre uma língua partilhada que é de uso diário na maioria das instituições sociais, tanto no campo público como no âmbito privado. Estas culturas nem sempre existiram, resultando do processo de modernização (Will KYMLICKA, Estados..., cit., p. 52).

786

WILL KYMLICKA, Multicultural Citizenship…, cit., p. 83. Assim, “ter uma crença sobre o valor de uma prática é uma questão, em primeiro lugar, relativa à compreensão dos significados atribuídos à mesma pela nossa cultura”, escreve o autor, Estados…, cit., p. 65-66. 787

Criticamente, RAINER FORST, “A critical theory of multicultural toleration”, in Multiculturalism and Political Theory, Cambridge University Press, 2007, p. 292 ss., p. 300. 788

WILL KYMLICKA, Multicultural Citizenship…, cit., p. 84 ss. 789

Idem, cit., p. 85 e JEREMY WALDRON, “Minority cultures and the cosmopolitan alternative”, in UMJLR, 25, 1992, p. 751 ss. WALDRON sustenta que os exemplos de cidadãos cosmopolitas que se movem entre culturas – como os imigrantes – mostram que não existe uma ligação forte da pessoa à sua cultura; dado que as pessoas não precisam da sua cultura, as culturas minoritárias têm, na melhor das hipóteses, direitos negativos, ou seja, o direito à não- interferência, mas não o direito ao apoio e assistência do Estado (e, por conseguinte, o direito à cultura equipara-se à liberdade religiosa).

790

WILL KYMLICKA, Multicultural Citizenship…, cit., p. 85 ss. Sobre os custos de saída e seu sobredimensionamento, vd. DANIEL M.WEINSTOCK, “Liberalism, multiculturalism, and the problem of internal minorities”, in Multiculturalism and political theory, cit., p. 244 ss., p. 261-262.

tratar o acesso de uma pessoa à ‘sua’ cultura como algo que é de esperar que as pessoas desejem, qualquer que seja a sua conceção particular de bem, pelo que o abandono da própria cultura deve ser tratado como a renúncia a algo a que se tem razoavelmente direito791. Ao contrário do que a liberalização, a modernização e a globalização fariam supor - ou, pelo menos, alguns autores assim o sustentaram - os membros das culturas liberais continuam a valorizar a sua pertença cultural792. A importância dos laços culturais para as pessoas e para o seu bem-estar resulta de a pertença cultural providenciar ‘oportunidades significativas’ associadas ao sentido de identidade própria de cada um e à sua autoestima: se uma cultura não é geralmente respeitada, então a dignidade e autorrespeito dos seus membros estará em risco793. Em suma, por estas diversas razões, a pertença a uma determinada cultura assume em geral valor para o indivíduo, e KYMLICKA não vê nisso uma incompatibilidade com o pressuposto liberal da “liberdade de escolha”, dado que esta “não é em sentido primário a liberdade de ir para além da sua própria linguagem e história, mas sim a liberdade de se mover no âmbito da própria cultura societal, de se distanciar de certos papéis culturais, de escolher quais os traços da cultura que vale a pena desenvolver e quais não têm valor” 794. Por seu turno, dado que a liberdade de escolha comporta a possibilidade de cada um rever os seus fins e alterar a sua conceção de bem, “temos um interesse não apenas em prosseguir a nossa conceção de bem, mas também em avaliar e potencialmente rever essa conceção” 795 . Este aspecto (de nítido recorte liberal) permite distinguir a posição de KYMLICKA de posições dado que, enquanto estas sustentam que os indivíduos têm vínculos constitutivos aos seus grupos sub- nacionais (e.g., igrejas, famílias, vizinhança) sendo sustentável limitar as liberdades