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PARTE I DA CONSTITUIÇÃO COMO LIMITE À CONSTITUIÇÃO COMO

4. A constituição inclusiva

4.3. Identidade (s) e constituição

Não podemos deixar de notar317 que o tópico da identidade se estende também ao direito constitucional. Sendo um conceito gerador de sentimentos ambivalentes, ora de atração ora de repulsa318, a identidade apresenta-se como polissémica, designando simultaneamente semelhança (“sameness”) e individualidade (“selfhood”)319, ou seja, o pressuposto de um raciocínio de “idêntico a” e aquilo que nos identifica como nós próprios, ou, noutra terminologia, identidade relativa e identidade absoluta320. Tal como a identidade individual, também a identidade coletiva se constrói com base na “interação dinâmica entre projeções de semelhança e imagens de individualidade”, o que implica ora complementaridade ora                                                                                                                

316

LUÍSA NETO, “Referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 617/06”, in JC, n.º 10, 2006, p. 29 ss., p. 36.

317

Porventura também cativos de um certo “fascínio identitário” para o qual adverte TONY

JUDT, O chalé da memória, Lisboa, Edições 70, 2011, p. 199 ss. Aludiu-se supra aos “sobressaltos identitários” do constitucionalismo pós-nacional, depois ao papel da constituição estadual como “referente identitário” da comunidade política, em especial sobre a possibilidade de desempenhar uma tal função num contexto de pluralismo.

318

Misto de atração e repulsa, sobretudo nos dias de hoje em que assistimos ao discurso das identidades frequentemente associado à exclusão xenófoba e racista. Sobre a questão, CARLOS MAURO, “A Não Inevitalibilidade da Identidade Nacional”, Diversitates, v.1, n.º1, 2009, p. 39 ss.

319

Ou, na terminologia de Paul Ricoeur, identidade-idem ou “mesmidade” e identidade-ipse ou “ipseidade”. Sobre estes conceitos, JOAQUIM DE SOUSA TEIXEIRA, Ipseidade e alteridade. Uma leitura da obra de Paul Ricoeur, v. II, Lisboa, INCM, 2004, p.146 ss.

320

Entre nós, PAULO OTERO, Direito Constitucional..., cit., p. 21, alude a um sentido absoluto e a um sentido relativo de identidade, referindo-se à identidade axiológica constitucional como “revelando o conjunto de valores que emergem das suas normas e a permitem caracterizar como um todo sistemático, conferindo-lhe uma individualidade jurídica própria e autónoma, isto no sentido de a identificar em si (identidade absoluta) e ainda por referência a outros textos constitucionais (identidade relativa) ”.

contradição321, bem como uma dinâmica de inclusão/exclusão322. O mesmo pode aplicar-se à identidade constitucional.

O conceito de identidade constitucional – o qual, é certo, pertence à categoria dos “conceitos essencialmente contestados”323 – pode revelar-se útil, do ponto de vista interno, na demanda por uma identidade constitucional capaz de permanência no tempo e de inclusividade sem “diluição” na realidade ou perda de sentido normativo324, bem como, do ponto de vista externo, para “defender” a constituição da assimilação325, v.g. no contexto da interconstitucionalidade.

Como escreve GOMES CANOTILHO, qualquer constituição possui um núcleo de identidade – que define como “conjunto de normas e princípios estruturantes de uma determinada ordem jurídico-constitucional” – aberto ao desenvolvimento                                                                                                                

321

MICHEL ROSENFELD, “Constitutional…”, cit., p. 757 e, desenvolvidamente, The Identity…, cit., p.37 ss.

322

MICHEL ROSENFELD, The identity..., cit., p. 21 e infra, Parte II. 323

MICHEL ROSENFELD, “Constitutional…”, cit., p. 756-757. Hoje o conceito é utilizado em diversos contextos e sob diversas perspetivas, ora acentuando a descrição de traços essenciais de um sistema constitucional, ora em articulação com a cultura na qual a constituição se insere, ora em articulação com outras identidades, como a nacional, a religiosa ou a ideológica.

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Assim, em relação à constituição portuguesa, não obstante o “frenesim constitucional” a que alude JORGE MIRANDA, MELO ALEXANDRINO considera que se manteve a sua identidade – ou seja, os seus “constitutional essentials”, quais sejam o princípio da dignidade da pessoa humana, o primado dos direitos, liberdades e garantias e o princípio da democracia representativa (com a garantia da regularidade do funcionamento dos órgãos e das instituições políticas), vd. JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, “Reforma constitucional – lições do constitucionalismo português”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Martim de Albuquerque, vol. II, Coimbra, FDUL/Coimbra Editora, 2010, p. 9 ss., p. 23-24. O autor insere-se no leque de autores que falam, a propósito, em “desenvolvimento constitucional” sem perda de identidade constitucional. Já PAULO OTERO nos apresenta a perspetiva contrária de uma “constituição transfigurada”, considerando que, exceção feita à Parte I, a identidade axiológica da CRP mudou pelo decurso do tempo e pelas revisões constitucionais, pelo que só formalmente poderá dizer-se que a Constituição é ainda a mesma, vd. PAULO OTERO, Direito Constitucional…, cit., p. 27 ss. e 207 ss. e, para uma apreciação crítica, LUÍS PEREIRA

COUTINHO, A autoridade…, cit., p. 429 ss. 325

Em Portugal, não existe à data uma “decisão paradigmática” do Tribunal Constitucional sobre a relação entre o direito constitucional português e o direito da União, maxime quanto aos direitos fundamentais. Entre nós, sobre a questão, vd. CARLA AMADO GOMES/MARIA

LUÍSA DUARTE, “O Tribunal Constitucional português e a garantia de aplicação do Direito da União Europeia”, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Paulo Pitta e Cunha, vol.I, Coimbra, Almedina, 2010, p. 695 ss., CARLOS BLANCO DE MORAIS, “A sindicabilidade do Direito da União Europeia pelo Tribunal Constitucional português”, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Manuel Sérvulo Correia, vol. I, Coimbra, FDUL/Coimbra Editora, 2010, p. 221 ss. e MARIA LUÍSA DUARTE, Estudos sobre o Tratado de Lisboa, Coimbra, Almedina, 2010.

constitucional, sendo que a articulação entre ambos conduz ao conceito de identidade reflexiva, id est, “capacidade de prestação da magna carta constitucional face à sociedade e os cidadãos” 326. A mudança constitucional, por via da interpretação ou da revisão, coloca a questão da identidade constitucional e esta, por sua vez, impõe distinguir diferentes “estratos normativos” de uma mesma constituição, ou seja, a distinguir entre o nível das “decisões fundamentais” e “elementos que, dotados embora da força das normas constitucionais, aí surgem de forma meramente acidental ou contextual 327.

A referência, neste contexto, aos limites materiais de revisão constitucional e às normas que os explicitam revela-se paradoxal, no sentido em que são ponto de partida para a determinação da identidade constitucional e, simultaneamente, limites à sua reflexividade, impondo-lhe que se mantenha “fiel a si mesma”328. Aludimos aqui à questão do sentido e valor das “cláusulas de intangibilidade” (normas de limites materiais, cláusulas pétreas) utilizadas pelas constituições como autopreservação identitária, e de que é exemplo o art. 288.º da Constituição portuguesa. Estas normas, nas quais podemos ver espelhado o núcleo da constituição material e da ideia de direito, podem ser arrimo para a determinação do que sejam os princípios que integram o núcleo duro da identidade constitucional329 - os quais, uma vez ultrapassados, significam que já se está perante outra que não aquela constituição - garantindo assim uma “defesa identitária” da Constituição (ainda que não a única330). Por essa razão, a introdução, na revisão constitucional de 2004, do n.º 4 do art. 8.º suscitou a questão da sua possível inconstitucionalidade por violação de limites                                                                                                                

326

J.J.GOMES CANOTILHO, “Brancosos”…, cit., p. 121-122. 327

DIETER GRIMM, Constitucionalismo y derechos fundamentales, Madrid, Trotta, 2006, p. 37-39.

328

Sobre a “polémica” relativa aos limites materiais de revisão constitucional, JORGE

MIRANDA, Manual…, Tomo II, cit., p. 192 ss. 329

Sem prejuízo da existência de limites implícitos. Na ausência de definição de um conceito de identidade constitucional pelo TC, o art. 288.º da CRP é frequente ponto de partida para a sua identificação, como nota PAULO OTERO, Direito Constitucional..., cit., p. 23. No mesmo sentido, salientando que a função das “cláusulas pétreas” é o de impedir a destruição dos elementos essenciais da constituição, encontrando-se ao serviço da preservação da identidade constitucional, aí avultando os direitos fundamentais, INGO SARLET, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2003, p. 387. Aludindo, a propósito, a “supraconstitucionalidade”, e defendendo a convergência funcional entre esta e identidade constitucional, ÉDOUARD DUBOUT, “L’identité constitutionnelle de la France”, in RFDC, n.º 83, 2010, p. 451ss.

330

materiais de revisão, uma vez que a alusão aos princípios fundamentais do Estado de direito democrático deixaria de fora331 algumas dimensões estruturantes do Estado português, in casu o princípio da independência nacional (al. a) do art. 288.º) - ainda que suscetível de uma leitura conforme à constituição que interpretasse a referida norma como referindo-se aos “princípios e regras estruturantes da constituição material” portuguesa332. A interpretação da referência do referido n.º 4 do art. 8.º deve ter-se por feita, não a um modelo abstracto de estado de direito, mas sim à república portuguesa333.

Mas, em todo o caso, serão os próprios limites, explícitos ou implícitos, e não as cláusulas de limites334, que avultarão para determinar se e em que medida se está ainda no domínio da mesma constituição, tanto mais que as cláusulas de limites materiais estão, elas mesmas, sujeitas a interpretação evolutiva e nada podem se os princípios a que dão corpo não beneficiarem da adesão da consciência jurídica comunitária335. Ou seja, não podem “deter a dinâmica do processo político no qual está imersa a constituição”, que, no limite, pode cessar por revolução político- constitucional336.

Entre nós, PAULO OTERO desenvolve o conceito de identidade no contexto do direito constitucional, identificando a “identidade axiológica” da Constituição portuguesa com o conjunto de valores que a identificam e caracterizam – sem, no entanto, com isso significar a identificação do Estado “com um determinado e concreto projeto político ou ideológico”337. Esta identidade axiológica pressupõe, para o autor, a unidade e sistematicidade dos valores constitucionais e a abertura do sistema de valores à evolução ou, de outra forma, a temporalidade e a historicidade da identidade da constituição, e deverá ser encontrara por referência aos quatro                                                                                                                

331

Intencionalmente, segundo J. J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Ed., 2007, p. 267.

332

Dando amplamente conta da questão, CARLOS BLANCO DE MORAIS, “A sindicabilidade...”, cit., p. 238 ss.

333

CARLOS BLANCO DE MORAIS, “A sindicabilidade...”, cit., p. 249 ss. 334

As quais “só devem considerar-se como respeitantes ao núcleo de identidade quando tiverem correspondência no próprio texto da constituição e disserem inequivocamente respeito à “essência” da constituição”, ensina J.J.GOMES CANOTILHO, “Brancosos”…, cit., p. 122-123.

335

JORGE MIRANDA, Manual…, Tomo II, cit., p. 203-204. 336

DIETER GRIMM, Constitucionalismo…, cit., p. 38-39. 337

domínios nucleares nos quais se projeta: “a ideia de Direito subjacente à ordem jurídica; os critérios teleológicos (fins) do projeto político; o modelo de inserção externa do Estado; a organização interna dos elementos do Estado”338. Em cada um destes domínios, podemos retirar das normas constitucionais, por meio do labor doutrinário e jurisprudencial, um conjunto de valores que permitem estabelecer o perfil axiológico da constituição - o qual, no caso da Constituição de 1976, se expressa, para o autor, na seguinte síntese: “a ideia de Direito reconduz-se a um Estado de direitos humanos, os critérios teleológicos (fins) do projeto político identificam-se com o Estado de Direito democrático, o modelo de inserção externa do Estado permite caracterizá-lo como um Estado de soberania internacionalizada e europeizada e a organização interna dos elementos do Estado como um Estado unitário descentralizado, cada uma destas dimensões comportando no seu âmbito ainda uma pluralidade de valores, os quais, dotados de unidade e organização, compõem a estrutura reveladora da identidade da Constituição”339.

O conceito de identidade constitucional pode, por sua vez, revelar-se útil para “navegar nas águas” do pluralismo normativo e da interconstitucionalidade. Exemplificando, nos diálogos de feição marcadamente jurisprudencial que têm lugar no espaço europeu, a “identidade constitucional” dos Estados emerge nas suas vestes de “mecanismo de resistência”, contrapeso ou defesa face à integração340, em caso de conflito com o direito da União.

Tendo por pressuposto que a interconstitucionalidade, no sentido visto, pressupõe a manutenção da autonomia das “partes” no diálogo (e, daí, princípios como o da subsidiariedade ou da margem de apreciação assomarem como mecanismos de “gestão do pluralismo”), esta há-de pressupor a salvaguarda de um papel ao Estado e da sua Constituição. A proteção das identidades nacionais, aí incluída a identidade constitucional dos EM341, assemelha-se nessa dimensão a uma                                                                                                                 338 Idem, cit. 339 Idem, cit., p. 22-23. 340

ÉDOUARD DUBOUT, “L’identité…”, cit., p. 461 e VINCENZO BALDINI, “Il rispetto dell’a identitá costituzionale quale contrapeso al processo di integrazione europea”, in RTJAIC, n.º 00, 2010.

341

LEONARD BESSELINK, “National and constitutional identity before and after Lisbon”, in ULR, vol. 6, n.º 3, 2010, p. 36 ss. No contexto da União Europeia, a complementaridade entre identidades nacionais e identidade europeia, e o respeito pela identidade nacional (nas suas componentes política, jurídica e cultural) no processo de integração europeia, que sempre foi um “princípio constitucional da integração”, está expressamente ressalvada no n.º 2 do artigo

defesa contra a “assimilação” normativa com base na reivindicação de preservação de um “núcleo essencial” da constituição342. A defesa dos constitucionalismos nacionais contra a diluição identitária, simbolizada pela “luta” dos tribunais constitucionais assentou nos princípios fundamentais das constituições nacionais, na defesa da democracia, da soberania e dos direitos fundamentais343. Em França, a identidade constitucional entrou expressamente “em cena” em 2006, quando o Conselho Constitucional francês a invocou como limite ao primado do direito comunitário344.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             

4.º do TUE. Sobre a questão, CHRISTIAN KOHLER, “Le droit de l’Union Européenne face à la diversité culturelle”, in RHDI, 62, 2009, p. 472 ss. e FAUSTO DE QUADROS, “Constituição europeia e constituições nacionais – Subsídios para a metodologia do debate em torno do Tratado Constitucional Europeu”, in O Direito, 137, IV-V, 2005, p. 687 ss. Esta norma autoriza os tribunais nacionais a afastar-se do Direito da União com certos fundamentos limitados, sendo que a possibilidade de reservas ao direito da UE deve ser entendida no contexto da perspetiva sustentada pelos autores. Sobre a questão, JULIO BAQUERO CRUZ, “An area of darkness: three conceptions of the relationship between European Union Law and State Constitutional Law”, in Europe’s…, cit., p. 49 ss. O TJ referiu-se ao art. 4.º/2 do TUE no Acórdão de 22/12/2010, Sayn-Wittgenstein (C-208/09). Vd. ainda n.º 138 das Conclusões do Advogado-Geral Yves Bot sobre o Caso Melloni, C-399/11, apresentadas em 2/10/ 2012. 342

Recorrendo às palavras de VIEIRA DE ANDRADE, à constituição (material) cumprirá, por conseguinte, defender um conjunto de princípios fundamentais da comunidade politica, “mínimo de dignidade soberana da cultura nacional a preservar”, justificando-se “a legítima defesa do núcleo essencial da constituição”, vd.J.C.VIEIRA DE ANDRADE, “Conclusões”, cit., p. 189. Sobre a doutrina dos contralimites no domínio dos direitos fundamentais, vd. MIGUEL

GALVÃO TELES, “Constituições dos Estados e eficácia interna do direito da União e das Comunidades Europeias – em particular sobre o art. 8.º, n.º 4, da Constituição Portuguesa” in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano no centenário do seu nascimento, vol. II, Coimbra, 2006, p. 294 ss., p. 299 ss. e, acentuando também o papel dos direitos fundamentais na defesa da identidade constitucional, SUZANA TAVARES DA SILVA, Direitos…, cit., p. 46 ss.

343

Sobre a questão, MIGUEL GORJÃO-HENRIQUES, “Compreensões e pré-compreensões sobre o princípio do primado na aplicação do Direito da União: breves notas jurídico- constitucionais relativamente ao Tratado de Lisboa”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, Coimbra, Coimbra Editora/FDUC, p. 317 ss., MARIA

LUÍSA DUARTE/PEDRO DELGADO ALVES, União Europeia e Jurisprudência constitucional dos Estados-membros, Lisboa, AAFDL, 2006 e KRISTINE KRUMA, “Constitutional Courts and the Lisbon Treaty. The future based on mutual trust”, The area of freedom, security and justice ten years on, Bruxelas, Centre for European Policy Studies, 2010, p. 38 ss.

344

Decisão n.º 2006-540 DC de 26/07/2006 (direitos de autor). Traduziu assim um aperfeiçoamento da doutrina da reserva constitucional formulada em 2004. Sobre a posição “oscilante” desta jurisdição em relação à posição hirárquica do direito eurocomunitário, LAURENCE BURGORGUE-LARSEN, “France. The impact of European fundamental rights on the Fench Constitutional Court”, in PATRICIA POPELIER/CATHERINE VAN DE HEYNING/PIET

VAN NUFFEL (eds.) , Human rights protection in the European legal order : the interaction between the European and the national courts, Cambridge/Antwerp/Portland, Intersentia, 2011, p. 211ss, p. 214 ss.

Mais recentemente, em 2009, na sua contestada decisão sobre o Tratado de Lisboa345, o BVerfG invocou expressamente a “identidade constitucional”346, a qual corresponde aos segmentos normativos insuscetíveis de revisão (art. 79.º/3) ou de modificação por via de limitação da soberania sob forma pactícia (art. 23.º/1), abrangendo as matérias que são limite expresso de revisão, nos termos do n.º 3 do artigo 79.º (id est, divisão da federação em Estados, participação destes no processo legislativo, dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais) afirmando em suma que “o que os Estados, enquanto titulares originários dos poderes, estão proibidos de fazer, a União Europeia, por maioria de razão, que exerce os poderes por delegação, também não pode fazer”347. Mas o conceito de identidade constitucional vai para além destas matérias, referindo-se à constituição concreta e às matérias nas quais deve ser reservado ao Estado um “espaço suficiente de decisão politica sobre as circunstâncias da vida no âmbito económico, social e cultural” (§ 249), quais sejam esfera privada, segurança social, outras políticas sociais, cultura, história, língua, espaço de dinamização dos partidos políticos e do Parlamento, liberdade de imprensa, liberdade religiosa, sistema educativo, financiamento público348.

O critério da identidade da constituição cobra importância decisiva na determinação da fronteira do tolerável da prevalência do direito da UE sobre o direito constitucional interno349. A questão que avulta, por conseguinte, é a de saber quem determina o que seja a identidade constitucional e quem determina o que seja a identidade constitucional relevante do ponto de vista do direito europeu, pronunciando-se a doutrina no sentido de uma articulação entre TJ e tribunais (maxime, constitucionais) nacionais, cabendo aos tribunais internos a determinação do que integra a identidade constitucional e ao TJ a determinação da identidade

                                                                                                               

345

Lissabon-Urteil, BVerfG, 2 BvE 2/08 de 30/06/2009. Sobre a crítica a que se aludiu, inter alia, JÓNATAS MACHADO, Direito da UE, Coimbra, Wolters-Kluwer/ Coimbra Editora, 2010, p. 500-501 e CHRISTIAN KOHLER, “Le droit…”, cit., p. 472 ss.

346

Ainda que esta estivesse já subjacente à jurisprudência anterior, vd. RAINER ARNOLD, “Germany. The Federal Constitutional Court of Germany in the context of European integration”, in Human…, cit., p. 237 ss., p. 244 ss. Sobre a questão, CHRISTIAN TOMUSCHAT, “The Ruling of the German Constitutional Court on the Treaty of Lisbon”, in GLJ, 10, 2009, p. 1259 ss. e MARIA LUÍSA DUARTE, “O Tratado...”, cit.

347

MARIA LUÍSA DUARTE, “O Tratado...”, cit., p. 126. 348

Retirado de MARIA LUÍSA DUARTE, “O Tratado...”, cit., p. 126-127. 349

constitucional relevante do ponto de vista europeu350. Por outro lado, o conceito de identidade constitucional pode ter um papel a desempenhar na determinação do nível de proteção aplicável em matéria de direitos fundamentais351, deslocando a ênfase da garantia de um nível geral de proteção dos direitos para a “particularidade constitucional” 352.

Entre nós, a doutrina entende diferentemente a questão da relação entre o direito europeu e a constituição, avultando todavia, mesmo nas construções mais favoráveis à supremacia do Direito da União, o limite dado pelos “princípios fundamentais do Estado de direito democrático” a que alude o n.º 4 do artigo 8.º, “núcleo essencial de constituição” que funcionaria como “reserva de ordem pública constitucional” contra normas europeias aniquiladoras da estadualidade, juridicidade, democraticidade e fundamentalidade dos direitos básicos353. Todavia, e como vimos

                                                                                                               

350

Sobre a questão, RAINER ARNOLD, “Germany...”, cit., p. 254. Segundo ARNOLD, o conceito de identidade nacional, na qual se integra a identidade constitucional, referido no art. 4.º/2 do TUE, é um conceito a ser interpretado de forma supranacional e abstracta pelo TJ, cabndo ao tribunal constitucional nacional determinar que ato supranacional estaria a afetar que elemento da identidade constitucional em concreto. Ambos os conceitos – interno e supranacional – de identidade constitucional, ou ambas as dimensões, nacional e supraconstitucional, têm ser harmonizadas, pelo que a cooperação entre os tribunais (institucionalizada através do reenvio prejudicial) é inevitável. Entre nós, J. J. GOMES

CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição..., cit., p. 269-270. 351

Este entendimento teve eco no comentário do Advogado-Geral Yves Bot no caso Melloni, a que se aludiu supra, apresentadas em 2/10/2012 (maxime considerandos 128 ss.). Aí se evoca (n. 46) a afirmação de Besselink, nos termos da qual “divergent fundamental rights standards may not be resolved explicitly via provisions like Article 53 of the Charter and of the ECHR, but by reference to Article 4(2) EU. Reliance on divergent fundamental rights standards is then made dependent on whether it forms part of the constitutional identity of a Member State” (vd. LEONARD L. M. BESSELINK, “The Protection...”, cit., p. 46). Na sua decisão, o TJ confirmou que, quando um acto do direito da União exige medidas nacionais de execução, as autoridades e os órgãos jurisdicionais nacionais podem aplicar os padrões nacionais de proteção dos direitos fundamentais, desde que essa aplicação não comprometa o nível de proteção previsto pela Carta, conforme interpretada pelo Tribunal de Justiça, nem o primado, a unidade e a efetividade do direito da União. Sobre a questão, MYRIAM BENLOLO

CARABOT, “Mandat d’arrêt européen : la protection des droits fondamentaux subordonnée aux exigences de la primauté du droit de l’Union européenne”, in Lettre « Actualités Droits- Libertés » du CREDOF, 22/03/2013, disponível em http://revdh.org/lettre-dl/.