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PARTE II – DA DIVERSIDADE CULTURAL AO MODELO

1.1. A descrição e a norma

Comecemos por empreender um esforço de precisão conceptual e terminológica, esclarecendo de que falamos quando falamos de multiculturalismo.

Podemos entendê-lo como mero facto – neste sentido, o multiculturalismo descreve as sociedades atuais, nas quais coexistem diversas culturas e modos de vida, resultado potenciado pelas migrações. Outras vezes, estamos a pensar numa reflexão teórica ou mesmo na identificação de um modelo normativo capaz de gerir possíveis conflitos gerados pela convivência entre pessoas e grupos de diferentes culturas674.

                                                                                                               

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Sobre as diferentes aceções, v. entre outros, PAUL KELLY, “Introduction: Between Culture and Equality”, in PAUL KELLY (ed.), Multiculturalism reconsidered, Polity Press, 2005, p. 1 ss., distinguindo “circunstâncias” e reflexão teórica, IGNACIO SÁNCHEZ CÁMARA, “Integración...”, cit., GIOVANNI SARTORI, La sociedad..., cit., p. 61 ss., JOÃO CARDOSO

De uma ou de outra forma, o conceito aponta, pois, simultânea ou alternativamente, para uma descrição e para um projeto, podendo referir-se, enquanto descrição, à “existência de uma multiplicidade de culturas no mundo”, à “coexistência de culturas diversas no espaço de um mesmo Estado-Nação” ou à “existência de culturas que se interinfluenciam tanto dentro como para além do Estado-Nação” 675.

Para simplificar, distinguiremos sociedades multiculturais ou multiculturalidade (sentido descritivo) de multiculturalismo (sentido normativo), assentindo na constatação de serem as nossas sociedades multiculturais, apesar de nem todos concordarmos com a perspetiva multiculturalista sobre essas sociedades

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.

Esta distinção prévia é fundamental, seja porque a sua ausência está na base de diversos equívocos na discussão sobre a diversidade cultural (como desenvolveremos infra), seja porque, uma vez aceitando a diversidade cultural como um dado, podemos concentrar a nossa atenção em negociar e compreender a forma como se relacionam as diferentes culturas 677.

Na literatura contemporânea, uma sociedade será vista como multicultural, por sua vez, numa de três aceções possíveis v.g. propostas por JOÃO CARDOSO ROSAS678: (1) como comunidade política na qual existem diversas nações históricas, com língua e história próprias; (2) como comunidade política na qual existem diversas comunidades étnicas, ou seja, diferentes em termos de língua e/ou religião e/ou usos e costumes, geradas pela imigração voluntária ou forçada; e (3) como sociedade em que existem diferentes grupos que têm por denominador comum tratar-se de “vítimas históricas de opressão da sociedade maioritária”, alargando o conceito de diferença cultural e minorias até abranger, não apenas minorias nacionais e imigrantes, mas minorias

                                                                                                               

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BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS/JOÃO ARRISCADO NUNES, “Introdução...”, cit., p. 21. 676

JOÃO CARDOSO ROSAS, “Sociedade...”, cit., p. 47. JOÃO LOUREIRO, “É bom …”, cit., p. 193, n. 73, prefere, à expressão “sociedades multiculturais”, a expressão “sociedades pluriformes”, oriunda dos Países Baixos, que sublinha que “a multiplicidade de culturas é apenas um dos aspectos da diversidade societária”, apresentando-se mais neutral.

677

BHIKHU PAREKH, Repensando…, cit., p. 21 ss. 678

JOÃO CARDOSO ROSAS, “Sociedade...”, cit., p. 47 ss. e, também, Conceções da Justiça, cit., p. 100-101. Sobre a diversidade da diversidade cultural, vd. ainda BHIKHU PAREKH, Repensando…, cit., p. 16 ss.

sexuais e outras679. Assim, numa conceção ampla, uma sociedade dita multicultural abrange uma vasta gama de formas de diversidade, como as baseadas no género, orientação sexual, incapacidade, para além da diversidade etnocultural propriamente dita680.

IRIS MARION YOUNG distingue duas vertentes na “política da diferença”, a da “política da diferença posicional” e a da “política da diferença cultural”, esta última com protagonismo a partir da década de 90 do século XX. As duas abordagens partilham a crítica a uma conceção de igualdade como uniformidade e, por conseguinte, a abordagem ‘difference blind’ do “tratamento igual”, sustentando que a justiça exige em certos casos diferenciação, mas distinguem-se na abordagem dos grupos sociais e nas questões de justiça que enfatizam681. A primeira acentua que a abordagem de tratamento igual obscurece as diferenças materiais resultantes da posição social, divisão do trabalho, padrões normativos e formas de vida que perpetuam a desvantagem em que se encontram os membros dos grupos historicamente oprimidos, pelo que a igualdade em sentido material exige, não ignorar, mas levar em conta essas diferenças através de políticas de diferença (e.g. medidas de representação política). Por seu turno, a abordagem da diferença cultural centra-se nas diferenças em torno da nacionalidade, etnicidade e, posteriormente, religião, destacando, por oposição à perspetiva liberal, o valor que a identidade cultural assume para os indivíduos, rejeitando a neutralidade cultural e considerando que a justiça como igualdade impõe acomodar as diferenças culturais. YOUNG aponta as fragilidades da abordagem da diferença cultural e lamenta o esquecimento a que a abordagem da diferença posicional foi votada, sustentando que ambas são, na realidade, importantes e complementares682.

                                                                                                               

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A perspetiva mais ampla é adotada por IRIS MARION YOUNG, vd. IRIS MARION YOUNG, “Structural injustice and the politics of difference”, in Multiculturalism and Political Theory, cit., p. 60 ss. Sobre a distinção de perspetivas, vd. WILL KYMLICKA, Multicultural Citizenship: A Liberal Theory of Minority Rights, Oxford, Oxford University Press, 1995, p. 19.

680

KEITH BANTING/ RICHARD JOHNSTON/ WILL KYMLICKA/ STUART SOROKA, “Do multiculturalism policies erode the welfare state? An empirical analysis”, in WILL

KYMLICKA/KEITH BANTING (eds.), Multiculturalism and the Welfare State, Oxford, Oxford University Press, 2006, p. 49 ss., p. 51.

681

IRIS MARION YOUNG, “Structural…”, cit., p. 60. 682

O ‘corte transversal’ efetuado por recurso a categorias como a opressão, a vulnerabilidade ou a desigualdade estrutural é importante para iluminar as raízes profundas da desigualdade, bem como as relações e processos de exploração, marginalização e normalização, mostrando que a desigualdade não se resolve apenas através de um tratamento formalmente igual683. Porém, é possível em abstrato separar pretensões relativas à proteção da cultura (de maiorias ou de minorias, portanto) e pretensões relativas à proteção perante a desigualdade estrutural, sem prejuízo de, cruzadas, estas duas perspetivas de análise revelarem a complexidade de muitas das pretensões identificadas simplesmente como sendo ‘culturais’. Assim, ressalvando que o recurso a categorias como a vulnerabilidade ou a opressão, se aplicadas sem mais a determinados grupos culturais – v.g., aos imigrantes - é insuscetível de dar conta da diversidade interna destas (id est, dos diferentes níveis de ‘vulnerabilidade’ e de ‘desigualdade de facto’), bem como a necessidade de distinguir entre diversidade como realidade e tratamento normativo da diferença684, haverá vantagem em iluminar o que de semelhante une as diferentes pretensões que se reconduzem às ‘lutas pelo reconhecimento’ lato sensu, designadamente no que diz respeito à articulação do princípio da igualdade em termos substanciais685.

Tomemos sociedade multicultural nos dois primeiros sentidos apontados686. A multiculturalidade no primeiro sentido apontado pertence à experiência histórica da                                                                                                                

683

Idem, cit., p. 79. 684

Convoque-se, a propósito, a distinção entre diferença e desigualdade, vd. TERESA PIZARRO

BELEZA, Direito das mulheres…, cit., p. 86 ss. 685

E cremos que há, por exemplo, vantagem em recorrer aos conceitos desenvolvidos pela jurisprudência no seio do princípio da igualdade a propósito das chamadas ‘minorias sociais’. Mas concordamos, em geral, com as objeções de ROSAS ao conceito vago de opressão, o qual abrange realidades muitos distintas e demonstra uma visão fixista da identidade dos grupos, ignorando a sua variedade interna, para além de uma certa confusão entre a realidade multicultural e o tratamento normativo da diferença, vd. JOÃO CARDOSO ROSAS, “Sociedade...”, cit., p. 47-48 e “A universalidade dos direitos de cidadania”, in ACÍLIO DA

SILVA ESTANQUEIRO ROCHA (org.), Justiça e Direitos Humanos, Braga, Universidade do Minho/ Centro de Estudos Humanísticos, 2001, p. 47 ss. Também criticamente, CONCEIÇÃO

MOREIRA, “Multiculturalidade e multiculturalismo”, in João CARDOSO ROSAS, Manual de Ciência Política, Coimbra, Almedina, 2008, p. 219 ss., p. 237-239.

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Estamos certos de que os usos supra avançados não esgotam os usos possíveis do termo “multiculturalismo”. Por exemplo, FONS J.R.VAN DE VIVJER/SEGER M. BREUGELMANS/ SASKIA R.G.SCHALK-SOEKAR, “Multiculturalism: Construct validity and stability, in IJIR, 32, 2008, p. 93 ss., apresentam a seguinte tipologia: como sociedade plural ou poliétnica na sua composição demográfica; como tipo de política em relação à diversidade cultural e como atitude relacionada com a ideologia política (conceito psicológico).

generalidade dos Estados europeus, variando em função do grau de concretização do projeto de Estado-Nação687 ou, de outra forma, da capacidade de construção identitária de um projeto nacional688. Não é uma questão resolvida, mas controlada, já que se verifica, por um lado, um reconhecimento das minorias nacionais ou tradicionais na esfera pública689, mas, por outro, os respetivos termos da acomodação da identidade cultural são suscetíveis de ser continuamente negociados690.

Mas é a perspetiva da multiculturalidade no segundo sentido visto que tem estado no centro da discussão sobre o multiculturalismo nas sociedades poliétnicas europeias691 (e também, como veremos, sobre a sua crise), avultando aí a questão de determinar qual a forma mais justa de integração dos imigrantes692.

A multiculturalidade das nossas sociedades deve ser vista como um processo histórico e irreversível693, pelo que a sua gestão “sem vulnerar os nossos valores democráticos e liberais” se apresenta como uma das questões básicas do nosso tempo694. A gestão desta multiculturalidade deve articular os “portadores” (imigrantes e cidadãos), os “gestores” (o conjunto de redes de atores políticos, sociais, económicos e culturais, entre os quais os Estados conservam em última análise, o monopólio e o controlo último da gestão do processo) e os “investigadores” da                                                                                                                

687

JOÃO CARDOSO ROSAS, “Sociedade…”, cit., p. 47-49. Portugal é, neste contexto, exceção, dada a estabilização precoce das fronteiras e a identificação entre Estado e nação. Aludimos aqui ao processo de consolidação do Estado Moderno de tipo europeu, nas suas diversas fases. Sobre a questão, vd. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo I, 7.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 63 ss.

688

Sobre as políticas de “nation building” dos modernos Estados democráticos, WILL

KYMLICKA/CHRISTINE STRAEHLE, “Cosmopolitaniam, Nation-States, and Minority Nationalism: A Critical Review of Recent Literature”, in EJP, vol. 7, 1999, p. 65 ss., p. 73 ss. 689

WILL KYMLICKA, Multiculturalism: Success, Failure, and the Future, Washington DC, Migration Policy Institute, 2012, disponível em www.migrationpolicy.org.

690

Veja-se, por exemplo, a evolução da discussão sobre o estatuto de autonomia da Catalunha com a STC 31/2010, v.g. AGUSTÍN RUIZ ROBLEDO, “El preámbulo del Estatuto catalãn como manifestación del Estado neoautonómico”, in RGDC n.º 13, 2011.

691

JOÃO CARDOSO ROSAS, “Sociedade…”, cit., p. 49. Acentuando igualmente a dimensão pós-imigração do multiculturalismo e a centralidade das questões relativas às minorias étnicas e religiosas de origem imigrante, e criticando a pouca importância que assumem em abordagens como, por exemplo, a de WILL KYMLICKA, vd. TARIQ MODOOD, Multiculturalism. A civic idea, Cambridge, Polity Press, 2007, p. 30 ss.

692

JOÃO CARDOSO ROSAS, “Sociedade…”, cit., p. 49. 693

RICARD ZAPATA BARRERO, Multiculturalidad e inmigración, Madrid, Sintesis, 2004, p. 10.

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multiculturalidade (politólogos, sociólogos, antropólogos, demógrafos, juristas, filósofos, economistas, etc.)695.

O que nos parece importante assinalar é a necessidade de refletir sobre a multiculturalidade, qualquer que seja a aceção considerada, do prisma da identidade, individual e coletiva, tendo ainda presente, quanto a esta última, que a questão do reconhecimento da diversidade e de eventuais direitos às minorias não pode esquecer a questão da construção identitária das comunidades políticas. É certo que a história europeia mostra que a cultura e a identidade cultural não são uma questão nova, antes foram questões fundamentais no processo de construção dos modernos Estados- Nação. Mas, então, essa identidade cultural funcionou essencialmente como estratégia de homogeneização, quando hoje em dia é frequentemente invocada como estratégia de diversificação. A questão dos direitos das minorias como “resposta à construção da nação pela maioria” relaciona-se, por conseguinte, seja com a determinação das formas permitidas de “nation-building”, seja com a discussão dos termos justos da integração de imigrantes696. A questão da integração dos imigrantes coloca igualmente “questões identitárias” fundamentais aos Estados atuais, muitas vezes marcadas pela unilateralidade de perspetiva, no sentido em que são interrogações sobre que ‘medida de diversidade’ podem as sociedades ocidentais consentir – e não sobre as possibilidades de reconstrução recíproca em clave intercultural das diversas identidades culturais envolvidas. A “identidade” que é interrogada, à qual se pedem respostas e, simultaneamente, ajustamentos, é a identidade política e social da comunidade e, também por isso, a sua identidade constitucional (questão sobre a qual nos debruçámos supra, na Parte I).

As sociedades contemporâneas são caracterizadas por um ‘pluralismo multidimensional’ que se alarga à diversidade de religiões e de cosmovisões, aos costumes da vida quotidiana e às conceções de valor que as sustentam697. É certo que a diversidade etnocultural qua tale não é uma especificidade das sociedades

                                                                                                               

695

Idem, cit., p. 13 e 15. 696

WILL KYMLICKA,“The new debate on minority rights (and postcript)”, in Multiculturalism and Political Theory, cit., p. 25 ss.

697

OTFRIED HÖFFE, Derecho Intercultural, Barcelona, Gedisa, 2000, p.189. Vd. ainda GIANCARLO ROLLA, “Tutela de la identidad cultural y de la ciudadanía en los ordenamientos multiétnicos: la experiencia canadiense”, in FRANCISCO BALAGUER CALLEJÓN (org.), Derecho Constitucional y Cultura, Madrid, Tecnos, 2004, p. 131 ss.

modernas, antes é historicamente um dado nas sociedades humanas698. Todavia, nas sociedades multiculturais contemporâneas, o contexto histórico, a base cultural e os modelos de interação entre as comunidades colocam novas questões ou a necessidade de reformular questões e conceitos antigos, como nota PAREKH699. Assim, surgem como ‘algo de novo’ a assunção, no quadro de uma política de reconhecimento, da necessidade de o Estado ‘levar a sério’ a diversidade cultural que carateriza a sua população700, bem como a ‘diversificação da diversidade’ que nos remete para a pluralidade e diversidade de pertenças e de comunidades (culturais, políticas, jurídicas), sobrepostas e complementares701 - avultando aí, nota MODOOD, a novidade representada pela ‘mistura étnico-religiosa’ para as democracias europeias ocidentais702 - e para a necessidade de pensar a relação entre elas.

A globalização (ou melhor seria falar em globalizações, como adverte BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS703) traz o duplo movimento de internacionalização e ressurgimento dos localismos e dos discursos identitários704, e, do mesmo modo que conduz a uma homogeneização cultural, contribui igualmente para o reforço da diversidade, opondo ao global o local e à homogeneidade a diversidade705. Parte integrante da globalização, os movimentos migratórios de dimensão internacional706 das últimas décadas (e a sua diversificação), contribuíram para acentuar e dar maior visibilidade à diversidade cultural das nossas sociedades707, ainda que seja incorreto                                                                                                                

698

PATRICK SAVIDAN, Le multiculturalisme, Paris, PUF, 2009, p. 9 ss. 699

BHIKHU PAREKH, Repensando…, cit., p. 23 ss. 700

PATRICK SAVIDAN, Le multiculturalisme, cit., p. 3. 701

Assim, DAVID HOLLINGER, Postethnic America. Beyond multiculturalism, New York, Basic Books, 1995, 2005 (ed. revista), p. 105 ss. Aludindo à “diversificação da diversidade” a propósito do pluralismo jurídico, MICHEL ROSENFELD, “Rethinking...”, cit., p. 437.

702

TARIQ MODOOD, Multiculturalism…, cit., p. 8-9. 703

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, “Por uma conceção...”, cit., p. 334 e, desenvolvidamente, “Globalizations”, in TCS,n.º 23,2006, p. 393 ss.

704

MIGUEL CARBONELL, “Constitucionalismo y Multiculturalismo”, in DC, n.º 13, 2004, p. 21 ss., p. 23.

705

Sobre a questão, BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, “Por uma conceção...”, cit., p. 334 ss. 706

Sobre a contraposição entre migrações internas e internacionais, STEPHEN CASTELS, Globalização, Transnacionalismo e Fluxos Migratórios, s.l., Fim de Século Edições, 2005, p. 16 ss.

707

Este entendimento pressupõe que as migrações internacionais são um “processo de multiculturalidade”, pelo que a gestão da imigração se converte também em gestão de novos contextos que resultam da multiculturalidade, RICARD ZAPATA BARRERO,

relacionar a multiculturalidade apenas com as migrações - basta pensar nas minorias “nacionais” geradas pela dinâmica de construção dos modernos Estados-nação, ou nas comunidades indígenas.

A perceção sobre a ‘diversidade’ é ambivalente, podendo ser percebida, ora como oportunidade, ora como ameaça708. Receia-se que a diversidade faça perigar a coesão, designadamente referida à nação e à identidade nacional como fator de unificação política709. A esta tensão diversidade-coesão acrescem outras tensões, como a que se dá entre valores próprios de um espaço ou de uma época e valores universais710, ou entre culturas e práticas culturais percebidas como liberais e iliberais711. Não será alheia a essa perceção de ‘ameaça’ o facto de a diversidade cultural surgir frequentemente conotada com “questões difíceis” como as relacionadas com os crimes de honra, os casamentos forçados, a poligamia ou a mutilação genital feminina712, leitura empobrecedora713 que obscurece a dimensão de oportunidade que essa diversidade pode representar. Em todo o caso, parece certo que a concorrência

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             

Multiculturalidad…, cit.,p. 10. Sobre o significado político das migrações internacionais, v. JUAN CARLOS VELASCO, “As migrações internacionais”, in Manual de Filosofia Política, cit., p. 197 ss.

708

HARALD ERMISCH, Minderheitenschutz ins Grundgesetz?, Munique, Lit, 2000, p. 32 ss. 709

Desde o Estado moderno de tipo europeu que o Estado tende a corresponder a uma ‘nação ou comunidade histórica de cultura’, veja-se, entre outros, JORGE MIRANDA, Manual..., Tomo I, cit., p. 63 ss. Neste sentido, as migrações podem ser percebidas como uma ameaça ao Estado-Nação, vd. STEPHEN CASTELS, Globalização…, cit., p. 38 ss. A homogeneidade cultural que a nação fornece ao Estado é, porém, mais construída que realidade pré-existente - veja-se, a propósito, a análise de TULLY sobre a forma como o constitucionalismo moderno eliminou a diversidade cultural e logrou obter a homogeneidade da comunidade política, cf. JAMES TULLY, Strange…, cit., p. 58 ss.

710

ACÍLIO DA SILVA ESTANQUEIRO ROCHA, “Direitos Humanos e o multiculturalismo”, in Justiça e Direitos Humanos, cit., p.181 ss.

711

A integração dos imigrantes surge, assim, como ‘a questão’ que enfrentam as democracias modernas, se bem que se deva distinguir a integração de imigrantes tout court do desafio representado pelo extremismo religioso e pelo fundamentalismo islâmico, vd. FRANCIS

FUKUYAMA, “Identity, Immigration, and Liberal Democracy”, in JD, vol. 17, n.º 2, 2006, p. 5 ss.

712

Um elenco de “questões difíceis” pode encontrar-se em BHIKHU PAREKH, Repensando…, cit., p. 389 ss.

713

Neste sentido, a propósito da crítica feminista pós-colonial ao multiculturalismo, AYELET

SHACHAR, “Feminism and multiculturalism: mapping the terrain”, in Multiculturalism and Political Theory, p. 115 ss., p. 125-126.

globalização-fragmentação (ou risco de ‘balcanização identitária’) coloca sérios desafios à viabilidade do Estado-nação714.

Partindo da diversidade cultural como ‘facto’, mais certo nos parece assumir, por enquanto, que esta é o ‘modo de ser’ das sociedades contemporâneas715 e, perante as inúmeras e importantes questões que suscita, enfrentar o desafio, enunciado por KYMLICKA, de procurar respostas “moralmente defensáveis e politicamente viáveis” para tais questões716.