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Específicos contextos de pluralismo normativo

PARTE I DA CONSTITUIÇÃO COMO LIMITE À CONSTITUIÇÃO COMO

3. Pluralismo constitucional e constitucionalismo plural

3.3. Específicos contextos de pluralismo normativo

Como afirma HESPANHA, “a orientação estratégica de reconstruir a teoria e a metodologia do direito numa perspetiva pluralista está basicamente correta, por corresponder ao ‘modo de ser’ das sociedades dos nossos dias” (do qual, por conseguinte, o modelo de “legal centralism”, recorrendo à expressão cunhada por GRIFFITHS179, não dá adequada conta). Vivemos num mundo de comunidades normativas múltiplas180, entre as quais o Estado e o seu Direito, gerando espaços de

                                                                                                               

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Sobre este, J.J.GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional..., cit., p. 1438 e 1450-1451, e o que escreveremos infra, nesta parte, em 4. e na Parte III.

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Assim, mesmo que todos concordemos, v.g., sobre o valor parametricial da dignidade humana e atentemos na sua dimensão jurídico-positiva, ainda aí subsistirão diferentes interpretações quanto ao que o princípio impõe, consente ou proíbe. Sobre a questão, BENEDITA MACCRORIE, A renúncia a direitos fundamentais, dissertação de doutoramento apresentada à FDUNL, 2010, p. 67 ss. Sobre o problema do desacordo sobre os direitos fundamentais, distinguindo entre níveis de desacordo e seu reflexo na determinação da competência de arbitragem, JORGE REIS NOVAIS, Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 149 ss.

178

PETER HÄBERLE, Teoría…, cit., p. 54 ss. e Retos actuales del Estado Constitucional, Oñati, 1996, p. 15 ss.

179

PAUL SCHIFF BERMAN, “Global Legal Pluralism”, in SCLR, vol. 80, 2007, p. 1171 ss. e SARA ARAÚJO, “Pluralismo Jurídico em Moçambique. Uma realidade em movimento”, RSJ, n.º 6, 2008, disponível em www.sociologiajuridica.net.br [22/04/2013].

180

PAUL SCHIFF BERMAN, “Global…”, cit., p. 1157 e 1169 ss. eBRIAN Z. TAMANAHA, “A framework…”, cit., p. 381 ss. Os estudos sobre pluralismo normativo ocupam-se tipicamente de diferentes categorias, que TAMANAHA identifica como sistemas jurídicos oficiais, sistemas normativos culturais/costumeiros, sistemas normativos religioso-culturais, sistemas normativos económicos/capitalistas, sistemas normativos funcionais e sistemas normativos comunitários/culturais, por sua vez em interação, choque e sobreposição.

relações jurídicas híbridas nos quais regimes jurídicos ou quase-jurídicos ocupam o mesmo domínio social181.

Como vimos, a abordagem pluralista tem sido alargada à arena global e à conceptualização de um mundo de hibridez normativa, concebido de forma dinâmica, avultando aí a compreensão das interações e da porosidade entre sistemas normativos e dos mecanismos de adaptação, reação e contestação que desenvolvem182 - em suma, da “interlegalidade” a que vem aludindo BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS183. Se a teorização do direito global e da constitucionalização supra estadual (pluralismo constitucional) imprimiram novo fôlego ao pluralismo jurídico184, é também certo que este não esgota aí a sua relevância, atenta a pluralidade de fenómenos normativos não reconduzíveis ao plano estadual185, sendo desejável, para que se verifique um “pluralismo verdadeiramente pluralista”, que este se abra a todas as formas de manifestação autónoma do direito186.

A constatação da existência de um pluralismo normativo ou de que o direito se pode encontrar em vários ordenamentos, de vários níveis, sem que entre eles exista uma hierarquia ou sem que um deles que determine a validade dos outros não é recente, podendo detetar-se várias fases nos estudos sobre o pluralismo jurídico187. A perspetiva pluralista, sobretudo desenvolvida para compreender o direito nas colónias e, depois, nos Estados pós-coloniais188, relaciona-se hoje, mais amplamente, com outros fenómenos internos ao Estado, entre os quais a realidade multicultural das sociedades atuais (acentuada pelas migrações) e o reconhecimento, v.g., dos Direitos

                                                                                                               

181

PAUL SCHIFF BERMAN, “Global…”, cit., p. 1158. 182

Idem, cit., p. 1159. 183

Sobre este conceito, inter alia, BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, “Uma cartografia simbólica das representações sociais: o caso do Direito”, in RCCS, n.º 24, 1998, p. 139 ss. e, ainda, SARA ARAÚJO, “Pluralismo...”, cit.

184

ANTÓNIO HESPANHA, Cultura..., cit., p. 552 ss. 185

ALESSANDRA FACCHI, “Prospettive attuali del pluralismo normativo”, 2005, disponível em http://www.juragentium.org/topics/rights/it/facchi.htm [21/04/2013] e ANTÓNIO HESPANHA, Cultura..., cit., p. 550 ss. Vd. ainda MARCELO NEVES, Transconstitucionalismo, cit., p. 190 ss. 186

ANTÓNIO HESPANHA, Cultura..., cit., p. 554-555. 187

SARA ARAÚJO,“Pluralismo...”, cit. e PAUL SCHIFF BERMAN, “Global…”, cit., p. 1170 ss. 188

dos imigrantes, das minorias étnicas, das comunidades religiosas189, realidades às quais fornece uma perspetiva privilegiada de abordagem.

Uma primeira dificuldade colocada à admissibilidade do pluralismo prende-se com a delimitação do “jurídico”, uma vez tornado independente da estadualidade190, e com a opção terminológica entre pluralismo jurídico e pluralismo normativo. Quanto a esta última, a opção pela expressão “pluralismo normativo” pode ser justificada pela sua menor ambiguidade e por permitir englobar ordens normativas porventura difíceis de qualificar como jurídicas mas que se relacionam com o direito positivo e institucional191.

Pertencendo o direito ao universo da cultura, o reconhecimento de culturas diferentes e a opção pelo multiculturalismo no plano jurídico implicaria, porventura, a consideração, ou mesmo a aceitação e celebração, do pluralismo normativo - o que nem sempre acontece 192. Ao pluralismo normativo aponta-se que põe em causa traços essenciais dos sistemas ocidentais, quais sejam a procura de certeza e segurança jurídicas (vd. infra), por um lado, e a uniformidade na aplicação do Direito, por outro. Esta última característica, todavia, revela-se frequentemente desconforme com a realidade de pluralismo sociológico e normativo193. Esta “realidade normativa híbrida”, nota BERMAN, é negada seja pela perspetiva da soberania territorial, maxime do Estado-nação, seja pela perspetiva universalista, ambas incapazes de fornecer respostas adequadas, tanto mais que conduzem, não à gestão, mas à eliminação da hibridez, abrindo caminho a uma “terceira via”, a do pluralismo, que fornece

                                                                                                               

189

ANTÓNIO HESPANHA, Cultura..., cit., p. 550 ss., salientando ainda o contributo da teoria social e política, v.g. da teoria sistémica de LUHMANN e do “agir comunicacional” de HABERMAS, para a promoção do pluralismo, ao contribuir para a compreensão da complexidade da regulação social.

190

JACQUES VANDERLINDEN, “L'utopie pluraliste, solution de demain au problème de certaines minorités? ”, in NICOLAS LEVRAT (dir.), Minorités et organisation de l'état, Bruxelas, Bruylant, 1998, p. 665 ss., p. 668 ss., BRIAN Z.TAMANAHA, “A framework...”, cit., p. 381 ss.

191

Assim, ALESSANDRA FACCHI, “Prospettive...”, cit. Também PAUL SCHIFF BERMAN, “Global…”, cit., p. 1177 considera que a opção pelo pluralismo normativo dispensa um conceito essencialista de Direito, atendendo às normas sociais e ao lado externo da sua aceitação (“o direito é o que as pessoas tratam como direito”).

192

GARY F.BELL, “Multiculturalism in law is legal pluralism”, in SJLS, 2006, p. 315 ss. 193

JEAN-FRANÇOIS GAUDREAULT-DESBIENS, “Introduction to Part II”, in Cultural…, cit., p. 377.

simultaneamente uma descrição da realidade e uma abordagem alternativa a essa realidade194.

Favorecendo mecanismos procedimentais, instituições e práticas discursivas para gerir, sem eliminar, a hibridez195 (e sendo por conseguinte, uma solução de tipo procedimental e não uma proposta de acordos normativos), o pluralismo permite, segundo BERMAN, alargar a possibilidade de forjar um espaço social comum e as “vozes” tidas em consideração, sem significar todavia, de um ponto de vista normativo, uma renúncia à capacidade de ajuizar e uma aceitação acrítica de todas as posições196. Não obstante as críticas de que é alvo, esta abordagem não visa fornecer soluções abstratas, definitivas e adequadas a todos os casos, mas tomar consciência da hibridez e assumir a sua gestão como valor autónomo e não como “mal inevitável” 197. E fá-lo fornecendo uma estrutura compreensiva capaz de abarcar diferentes modalidades de pluralismo. É, também, uma perspetiva pluralista ampla, abarcando diferentes modalidades de pluralismo, jurídico e filosófico, interno e transnacional, que propõe ROSENFELD, como veremos infra.

O pluralismo normativo, terreno fecundo para o cruzamento de diferentes perspetivas quais sejam a jurídica, a sócio antropológica e a ético-política198, se situado ao nível do indivíduo como sujeito de Direitos199 - vale dizer, do indivíduo como ponto de convergência de ordenamentos, por vezes conflituantes, que considera como jurídicos e que são produzidos por sociedades às quais, de uma forma ou de outra, voluntariamente ou não, está ligado200 - mostra-se particularmente apto a enquadrar a realidade dos estrangeiros imigrantes, os quais se relacionam com uma                                                                                                                

194

PAUL SCHIFF BERMAN, “Global…”, cit., p.1178 ss., 1189 ss. e 1191 ss. 195 Idem, cit., p. 1196 ss. 196 Idem, cit., p. 1166 ss. 197 Idem, cit., p. 1234 ss. 198

ALESSANDRA FACCHI, “Prospettive...”, cit. Dando igualmente conta das diferentes perspetivas, PAUL SCHIFF BERMAN, “Global...”, cit., p. 1171 ss.

199

JACQUES VANDERLINDEN, “L'utopie…”, cit., p. 666. 200

Idem, cit., p. 665-666, considera que o pluralismo jurídico “postula a existência de uma multiplicidade de ordens normativas suscetíveis de reivindicar a qualificação de “jurídicas” e de se aplicar simultaneamente ao comportamento de um indivíduo”. Onde alguns vêm a apologia sem limites do individualismo e a destruição da sociedade, Vanderlinden observa que o pluralismo constata, mais modestamente, a situação comum de inserção do indivíduo em múltiplas sociedades e, logo, ordens jurídicas, participando em diferentes medidas e a títulos diferentes na sua elaboração e desenvolvimento e sendo, frequentemente, chamado a escolher (dentro de limites) entre ordens normativas vinculativas.

pluralidade de normas, de múltiplas fontes, não apenas de direito positivo dos estados de origem e de destino, mas também religiosas ou costumeiras, transnacionais ou infranacionais, por vezes com validade pessoal ou étnica e não territorial, não necessariamente reconhecidas pelo ordenamento estadual mas nem por isso menos eficazes201. Mais amplamente, permite ainda enquadrar a questão do reconhecimento de regimes de autonomia para acomodação da diversidade etnocultural e religiosa202, v.g., minorias etnoculturais e comunidades (sejam ou não minoritárias) de base religiosa. Tem-se em mente o reconhecimento de autonomias de base territorial ou não-territorial, bem como “margens de apreciação” estaduais destinadas a permitir a aplicação da lei pessoal, seja ou não de base religiosa, em determinadas matérias da vida dos indivíduos, designadamente familiares, sejam ou não estrangeiros - por conseguinte, fora do âmbito do Direito Internacional Privado e como alargamento das soluções já existentes no âmbito do seu direito de conflitos. Referimo-nos, em especial, ao reconhecimento da relevância da vontade na determinação da lei aplicável a não estrangeiros, desde que verificada a existência de “elementos de conexão” relevantes203.

Apesar de a história mostrar que os sistemas de base pessoal não são nem uma novidade nem se circunscrevem apenas ao contexto do credo, hoje em dia, no Ocidente, a questão coloca-se sobretudo a propósito da possibilidade de aplicação de leis pessoais de base religiosa, designadamente muçulmana. Alguns autores sustentam, a propósito, a vantagem de organizar a proteção das comunidades muçulmanas como grupos religiosos ao invés de organizá-la como grupos culturais (desde logo, pela dificuldade na identificação de uma homogeneidade de tipo étnico), beneficiando do facto de a proteção das comunidades religiosas estar mais

                                                                                                               

201

Assim, ALESSANDRA FACCHI, “Prospettive...”, cit. 202

Sobre os regimes de autonomia limitada, na senda da proposta de Steiner, destinados a acomodar a diversidade religiosa, étnica e linguística, PAUL SCHIFF BERMAN, “Global…”, cit., p. 1203 ss., referindo-se aos regimes de autonomia territorial dentro do Estado nação para grupos de base étnica, religiosa ou linguística, a esquemas de partilha de poder através de direitos de representação e participação para comunidades minoritárias e, finalmente, ao reconhecimento, pelo Estado, da aplicação da lei pessoal (religiosa ou não) que acompanha o indivíduo onde quer que este se encontre (“federalismo pessoal”).

203

Neste sentido, JACQUES VANDERLINDEN, “L'utopie…”, cit., p. 668 ss. e, desenvolvidamente, ANDREA BÜCHLER, Islamic Law in Europe? Legal pluralism and its limits in European Family Law, Farnham, Ashgate, 2011, p. 58 ss.

desenvolvida e traduzindo a natureza extraterritorial do Islão204. Com efeito, de um ponto de vista jurídico, o pluralismo no que concerne a ordens normativas de base religiosa conhece um grau de institucionalização considerável em certos ordenamentos jurídicos nacionais europeus por referência ao direito canónico, ordem normativa de carácter transnacional ou extraterritorial205, podendo servir como referência para soluções relativas a outras ordens normativas de base religiosa de caráter universal206, no cumprimento do princípio da igualdade de tratamento207. E, com efeito, tem-se consolidado no espaço europeu a “fórmula” dos acordos celebrados entre os Estados e as confissões religiosas208. Assim, é pensável a                                                                                                                

204

Assim, SÍLVIO FERRARI, “Islam and the European system of State-religions reations throughout Europe”, in Cultural…, cit., p. 477 ss., p. 499 ss.

205

Entre nós, sobre a questão, PAULO PULIDO ADRAGÃO, “Ordem jurídica portuguesa e ordem jurídica canónica: um tema invulgar na jurisprudência constitucional" (Anotação ao Acórdão TC n.º 268/2004), in JC, n.º 4, 2004, p. 30 ss. e, na perspetiva do alargamento a outras confissões religiosas, VITALINO CANAS, “Os acordos religiosos ou a generalização da fórmula concordatária”, in Estudos em Memória ao Conselheiro Luís Nunes de Almeida, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 281 ss., JÓNATAS MACHADO/J.J.GOMES CANOTILHO, “Metódica…”, cit., p. 254 ss. e JORGE BACELAR GOUVEIA, “O Acordo Religioso entre o Imamat Ismaili e o Estado Português à luz do direito interno e do direito internacional”, in Direito, Religião e Sociedade no Estado Constitucional, Lisboa, 2012, p. 69 ss. O enquadramento é dado pelos princípios da congruência estrutural das ordens jurídicas e da pluralidade dos ordenamentos jurídicos, este último por sua vez resultante do art. 8.º da CRP, vd. JORGE MIRANDA, “A Concordata e a Ordem Constitucional Portuguesa”, in Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa (1940), Coimbra, Almedina, 2001, p.65 ss., p. 81. 206

Neste sentido, SÍLVIO FERRARI, “Islam...”, cit., p. 497 ss. O autor considera que, não obstante a diversidade entre modelos estaduais de relação entre Estado e religião, há três traços comuns que permitem identificar um “padrão europeu comum”, e que são a proteção da liberdade religiosa individual, o respeito pela autonomia das comunidades religiosas e a cooperação seletiva entre Estados e organizações religiosas, unidos entre si por um princípio orientador da sua interação, nos termos do qual todas as comunidades religiosas, incluindo as mais novas e as mais distantes dos valores sociais e culturais tradicionalmente partilhados num pais, devem gozar de algumas liberdades básicas que lhes permitem não apenas sobreviver mas também desenvolver-se, pelo que, uma vez garantidas a todos estas liberdades básicas, é aceitável um grau razoável de diferenciação na cooperação do estado com as comunidades religiosas (ob. cit., p. 479 ss.). Finalmente, nota que a presença muçulmana na Europa coloca diferentes questões, algumas comuns a todas as religiões, outras comuns a algumas religiões e outras ainda específicas, como a do seu enquadramento numa realidade em muitos casos estranha às comunidades muçulmanas - a do Estado secular.

207

Sobre este princípio, JÓNATAS MACHADO/J.J.GOMES CANOTILHO, “Metódica…”, cit., p. 254 ss.

208

Entre nós, vejam-se a Concordata entre Portugal e a Santa Sé, assinada em 18 de maio de 2004, aprovada pela AR através da Resolução n.º 74/2004 de 30 de setembro e ratificada pelo PR pelo Decreto n.º 79/2004 de 16 de novembro e, em relação a outras confissões religiosas, as possibilidades abertas pelos arts. 45.º a 51.º da Lei n.º 16/2001, de 22/06 (Lei da Liberdade Religiosa), bem como o Acordo Religioso entre o Imamat Ismaili e o Estado Português, assinado em Lisboa em 8 de maio de 2009 e aprovado pela Resolução da AR n.º 109/2010. A

existência de uma estrutura englobante respeitada por todos que não exclui a existência de outras estruturas jurídicas dotadas de autonomia cujas instituições são, por vezes, reconhecidas pela ordem jurídica oficial209.

Em rigor, nem todas as formas de reconhecimento de direitos das minorias se reconduzem ao pluralismo jurídico, sobretudo se tomado numa aceção forte como a proposta por VANDERLINDEN 210, que supõe, não o mero reconhecimento de direitos individuais, mas uma efetiva devolução ao povo – neste caso, ao grupo minoritário - do poder de regular juridicamente certos aspectos da sua comum existência, não bastando o reconhecimento de regimes jurídicos consentidos por uma estrutura dominante. Há, por conseguinte, diferenças de intensidade entre mecanismos, não auto excludentes mas complementares, destinados a acomodar juridicamente a diversidade cultural211, sendo que a solução pluralista, que permite que diferentes comunidades sejam governadas pelas suas próprias normas em matérias (v.g. relações familiares) nas quais os valores culturais diferem significativamente entre os grupos, se apresenta como mais controversa, não apenas por pôr em causa a aplicação uniforme do direito ressuscitando o sistema pessoal, mas pelos riscos que comporta de desproteção dos grupos vulneráveis e de reforço de práticas consideradas contrárias aos princípios das democracias constitucionais212.

A reivindicação do reconhecimento de normatividades que se assumem como jurídicas mas não assentam numa base estadual – v.g. direitos confessionais – deve, por conseguinte, ser encarada não apenas do ponto de vista dos direitos fundamentais                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              

conformação jurídica concreta dessas relações dependerá da estrutura jurídica das comunidades em causa, e.g. se gozam ou não de personalidade e subjetividade jurídica internacional.

209

SÍLVIO FERRARI, “Islam...”, cit., p. 501-502. 210

JACQUES VANDERLINDEN, “L'utopie…”, cit., p. 668 ss. Em suma, para o autor, o verdadeiro pluralismo distingue-se da quase totalidade dos arranjos de natureza institucional relativos a minorias por três características essenciais: não se trata de um “reconhecimento” da existência de regimes particulares consentidos por uma estrutura dominante, mas de um acordo livremente consentido entre partes consideradas como iguais; a produção de direito nas matérias reconhecidas como sendo objeto de pluralismo escapa inteiramente ao grupo maioritário e está exclusivamente sob controlo da minoria, e os conflitos de direito e de foro entre ordens jurídicas minoritárias e entre estas e a ordem jurídica maioritária são regulados por instâncias representando de maneira igual as partes em presença.

211

Ilustrando, PATRICK PARKINSON, “Taking multiculturalism seriously”, in SLR, 16, 1994, p. 473 ss.

212

Sobre a questão, rejeitando a incompatibilidade entre o Islão e as democracias seculares ocidentais, SÍLVIO FERRARI, “Islam...”, cit., p. 497 ss.

mas também da soberania enquanto poder supremo (na ordem interna) e, bem assim, do monopólio estadual das formas de produção jurídica – apesar de poder sempre dizer-se que o poder de última palavra é, ainda, do Estado, na medida em que lhe cabe reconhecer e estabelecer os termos do reconhecimento. Mas, mais uma vez, é um exemplo entre outros de pluralismo jurídico213.

Como já assinalámos, e teremos oportunidade de desenvolver infra, a inclusão que o pluralismo normativo favorece não implica a renúncia ao estabelecimento de limites, mas antes uma disposição para o acolhimento de outras razões e de “compromissos normativos” de outras comunidades, procurando a conciliação possível no limite dado pela disponibilidade para participar em formas discursivas214 ou da compatibilidade com o pluralismo215. Ainda aí nos parece relevante o argumento da jusfundamentalidade da autodeterminação cultural, in casu, como favor por soluções pluralistas.