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1.4. A questão da participação

1.4.4. A Constituição brasileira de 1988 e as novas possibilidades para a

Considerada um marco na história democrática do Brasil, a Constituição promulgada em 1988, mobilizou amplos setores da sociedade na construção dos alicerces para um novo tipo de enquadramento conceitual dos diversos atores constituintes da vida pública nacional. Em nosso trabalho interessa, particularmente, abordar as novas possibilidades estabelecidas pela Constituição enquanto marco regulatório geral, notadamente no que se refere aos pré-requisitos para uma verdadeira democracia participativa.

Essa questão fica mais específica e clara, sobretudo na perspectiva de mudança na cultura do cidadão no que se refere ao engajamento deste em questões de interesse geral, antes quase que totalmente desconsiderado, face ao modelo político vigente, centralizador e autoritário.

A nova constituição enquanto marco regulatório estabelece novas possibilidades de participação direta ou indireta da sociedade civil nas decisões em espaços formais de políticas públicas.

As mudanças no modelo de Estado, a que já nos referimos anteriormente e, no caso do Brasil, a nova Constituição, denominada Constituição Cidadã, agregaram ao dia a dia do país o discurso da necessidade de se ampliar a participação popular nas decisões de Estado. Pela primeira vez em todo o percurso da história política do país, modifica-se a lógica da fórmula de relações de poder em sua macro configuração, algo impensável até então, particularmente pelas origens oligárquicas do modelo republicano estabelecido no Brasil desde a proclamação da república.

Um século depois da proclamação da república, a promulgação da nova constituição parece resgatar princípios democráticos ignorados até então32. Em seu primeiro artigo, em um parágrafo único, estabelece os fundamentos para uma nova relação Estado e sociedade. Os mecanismos para a participação popular na vida pública são ali destacados, como se dando sentido efetivo ao princípio da soberania destacado duzentos anos antes pela revolução francesa.

Em lugar do famoso “Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”, a nova Carta Magna preconiza que,” Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos dessa Constituição”. A grande diferença desta fórmula para a anterior está exatamente no termo “diretamente”, o que aponta para enormes possibilidades para a participação das pessoas na condução dos destinos do país.

O novo texto constitucional, como afirma Santos (2005, p. 35), reflete um conjunto de aspirações da sociedade civil no que diz respeito à participação e a transparência na gestão pública, sendo resultado dos processos de mobilização e das pressões exercidas por vários segmentos da sociedade na fase anterior à Assembleia Constituinte. Portanto, a Constituinte espelha o movimento amadurecido ao longo dos anos em busca da democracia. Um exemplo marcante desse contexto é o movimento pelas eleições diretas, uma vez que o Brasil convivia naquele momento com governos militares, ditatoriais. Um expoente desse movimento iniciou-se em 1980, conhecido como “Diretas já” e teve apoio de importantes seguimentos da população brasileira. A ação central do referido movimento estava relacionada com a aprovação de uma Emenda Constitucional, denominada Dante de Oliveira (nome do autor da proposta), que estabelecia a realização de eleições diretas. Em 1984 a Emenda Dante de Oliveira, não foi aprovada no Congresso Nacional e a

32 Não se pode deixar de reconhecer que a primeira Constituição da república brasileira representou

avanços para a época, notadamente no que se refere à questão do voto censitário e da designação indireta dos representantes legislativos, algo herdado do período monárquico, porém essa mesma constituição excluía mulheres, mendigos, soldados e religiosos do mundo dos cidadãos, além de exigir a alfabetização para poder votar, algo que atingia grande parte da população de um país recentemente saído de um período escravocrata, ou seja, excluía um contingente enorme de pessoas da possibilidade

eleição do presidente da república ficou sob responsabilidade do colégio eleitoral, portanto, uma eleição indireta.

Segundo Santos (2005, p. 36), com a derrota do movimento “Direta Já”, a Assembleia Nacional Constituinte, instalada em 1986, torna-se a nova arena de disputa e espaço privilegiado de lutas pela democratização da sociedade brasileira contra as velhas instituições oligárquicas. Portanto, a trajetória da sociedade civil foi fortemente influenciada pelo esforço de inscrever novos direitos na Constituição, institucionalizando espaços públicos de interação entre Estado e sociedade que dessem conta de toda a riqueza e diversidade social do país33.

Com efeito, afirma, ainda, Santos (2005, p. 36), a constituição aprovada em 1988, representou um marco em termos de incorporação de pressupostos de participação e controle social na implementação de políticas públicas e em processos decisórios sobre temas de interesse público.

Importa destacar que a proposta de incluir mecanismos de participação popular na nova Carta Magna, nasce no bojo da própria sociedade civil a partir de um fórum denominado Plenário Pró-participação Popular na Constituinte, composto por um conjunto de entidades e organizações civis, endossada, ao mesmo tempo, por 402 mil assinaturas, recolhidas em todo o país e assumidas no processo de construção da Constituição pelo Partido dos Trabalhadores que

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É possível destacar que o caminho trilhado para a democracia vivenciada atualmente no Brasil, registra momentos importantes, posteriores à promulgação da Constituição de 1988, mas, igualmente reflexos do contexto social e político que a ela conduziu. Já em 1989, ocorreu a primeira eleição direta para Presidente da República após 21 anos de regime militar. Em 1994 o inpeachment do Presidente Fernando Collor de Mello pelo Congresso Nacional. Em 1994, a eleição de Fernando Henrique Cardoso – FHC – para a Presidência da República, apresenta-se como forte indicador da maturidade do processo democrático no Brasil, já sem a influência dos militares. 2003 é o primeiro ano do governo Luiz Inácio Lula da Silva, um operário, nordestino, que assume a Presidência e ratifica de forma peremptória, a democracia no Brasil. Por fim, 2011, assume a Presidência da República Dilma Rousseff, como Lula, oriunda do Partido dos Trabalhadores e a primeira mulher a assumir esse cargo no Brasil.

a encampou enquanto proposta ao Congresso Constituinte, tendo seu texto básico sido formulado pelo jurista Fábio Komparato34.

A Constituição impunha uma nova forma organizativa ao Estado brasileiro, descentralizando suas ações. Muitas das questões de políticas públicas, antes concentradas na união, passam a ser atribuições de estados e, mais enfaticamente de municípios, num movimento de descentralização nunca visto no país.

Nesse contexto, são inúmeros os avanços, especialmente e de forma destacada, no que se refere aos direitos políticos, sociais e civis, através da configuração de um moderno arcabouço institucional e de organização dos poderes públicos, que conferem/estabelecem mecanismos que visam assegurar a participação cidadã nos assuntos de Estado e na defesa de direitos individuais.

Um bom exemplo disso é o estabelecimento de variadas instâncias colegiadas de deliberação e consulta, através das quais, a sociedade civil participa discutindo e imprimindo sua marca na construção das políticas públicas seja em nível federal, estadual ou municipal. Um bom exemplo de amadurecimento dessa participação da sociedade civil é o setor de saúde, através dos Conselhos de Saúde, que em sua composição incluem representantes do poder público, de prestadores de serviço, de profissionais da saúde e de usuários, organizados de forma paritária e com caráter deliberativo,

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Interessante destacar que essa forma de atuar da população durante a Constituinte, ao final também é consagrada na Carta Magna que reconhece as iniciativas populares como uma das formas de participação do povo no processo legislativo, garantida pelo artigo 14º da Constituição Federal, promulgada em 1988. O parágrafo 2º do artigo 61 especifica que “A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles”. Um exemplo significativo desse procedimento, dada a repercussão política de sua implantação, é o Projeto Ficha Limpa, apresentado ao Congresso pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral - MCCE, com mais de 1,6 milhão de assinaturas. O projeto foi sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no dia 4 de junho de 2010 e proíbe a candidatura de políticos condenados pela Justiça em decisão colegiada em processos ainda não concluídos e representou um grande avanço na política nacional, fato que mobilizou parcela significativa da população brasileira no sentido de pressionar o Congresso Nacional para a aprovação e mesmo o

o que aponta para sua grande importância inovadora na organização do sistema de saúde brasileiro35.

É preciso assinalar que o movimento de descentralização disseminado no Brasil, não é diferente do que ocorre em outros países e tem como referências dois elementos fundamentais: a participação e a transparência. Nesse conjunto, a participação é entendida, em um primeiro momento, e, fundamentalmente, como a possibilidade de a população escolher livremente e de forma direta, seus governantes. Já a transparência aponta para à necessidade de o governo prestar contas e, mais do que isso, justificar o que faz. Essa questão torna-se mais eficiente com o advento da internet que confere maior velocidade e eficácia à comunicação. Através de portais de vários formatos e mantidos por diferentes instituições, é possível se acompanhar, instantaneamente, as informações relativas à gestão pública, especialmente dos governos de perfil mais democráticos que assumem o compromisso explícito com essa questão36.

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A Lei 8.142/90 formaliza o controle social como princípio e atribui aos Conselhos de Saúde caráter permanente e deliberativo, bem como das competências para atuar “na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões deverão ser homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera do governo”. Deve-se destacar, ainda, que na composição do CS, 50% de seus membros são representantes da sociedade civil organizada. Outros Conselhos também importantes, ao considerarmos a amplitude e o amadurecimento de sua ação, são os Conselhos de Cultura e da Criança e do adolescente. No caso do Esporte, as experiências ainda são diminutas e de pouca repercussão.

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Uma referência no Brasil de instituição que acompanha a gestão pública é o Portal Contas Abertas, que é uma entidade da sociedade civil, sem fins lucrativos, que reúne pessoas físicas e jurídicas, lideranças sociais, empresários, estudantes, jornalistas, bem como quaisquer interessados em conhecer e contribuir para o aprimoramento do dispêndio público, notadamente quanto à qualidade, à prioridade e à legalidade. O referido portal busca oferecer permanentemente subsídio para o desenvolvimento, aprimoramento, fiscalização, acompanhamento e divulgação das execuções orçamentária, financeira e contábil da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de forma a assegurar o uso ético e transparente dos recursos públicos, preservando-se e difundindo-se os princípios da publicidade, eficiência, moralidade, impessoalidade e legalidade, previstos no artigo 37 da Constituição Federal. (Fonte: www.contasabertas.uol.com.br. Visitado em 13/09/2010). Importa ressaltar, também, outro fato de extrema relevância nesse campo que foi a convocação em dezembro de 2010, através de decreto do então presidente da República Luis Inácio Lula da Silva, acatando o pedido da sociedade civil feito através de abaixo-assinado, da 1ª Conferência sobre Transparência Pública e Controle Social – Consocial, com o tema A sociedade no acompanhamento e controle da gestão pública. Para a referida Conferência foram estabelecidos quatro eixos principais: Promoção da transparência pública e acesso à

No que se refere à participação, entendemos ser importante destacar dois aspectos: a participação política e a participação em organizações, em especial na gestão de organizações.

A participação política exprime-se na possibilidade de o indivíduo assumir o papel de autor de seu destino, de opinar e de eleger seus governantes, não se resumindo, apenas, como defendem alguns, à inclusão de indivíduos na economia de mercado.

Para Bordenave (2007, p. 20), a participação constitui-se no "processo coletivo, transformador, às vezes contestatório, no qual setores marginalizados se incorporam à vida social por direito próprio, conquistando uma presença ativa e decisória nos processos de produção, distribuição, consumo, vida política e criação cultural”.

Por outro lado, a ideia da descentralização do Estado e da ampliação da participação, segundo Brose (2001), é mais ou menos como a ideia de que devemos nos alimentar de forma saudável e praticar exercícios físicos constantemente: todo mundo concorda, mas pouca gente consegue fazê-lo de forma voluntária.

A participação política exige tempo, investimento e paciência, no sentido da necessária mudança cultural. Não se pode conceber que, de uma hora para outra, como em um passe de mágica, as pessoas passem a se interessar em participar das decisões, inclusive, as que têm a ver, diretamente, com o seu dia a dia, particularmente, se considerarmos que durante anos foram desestimuladas à participar, como estratégia de manutenção do status quo.

informação e dados públicos, Mecanismos de engajamento da sociedade civil no controle da gestão pública, Atuação dos conselhos de políticas públicas como instância de controle e Diretrizes para prevenção e combate à corrupção. A conferência tem a coordenação da Controladoria Geral da União – CGU e ocorrerá em Brasília no período de 18 a 20 de maio de 2012, precedida de etapas regionais.

Nessa perspectiva, discutem-se, também, as armadilhas que alguns processos participativos embutem, no sentido da manipulação das pessoas, em que pese o argumento de serem democráticos e de gerar participação. Como adverte Faria (2005, p. xxviii), embora pareça óbvio, o fato é que não existe democracia sem participação coletiva, mas nem toda participação coletiva significa participação. É preciso ficar claro que participar é muito mais que ter acesso a informações; é preciso ter discernimento, formação, cultura para participar autonomamente. Participação tem a ver com exercício do poder e com a responsabilidade que isso representa.

O outro aspecto a destacar, é a participação em organizações, em especial na gestão de organizações. As mudanças paradigmáticas a que já nos reportamos no que se refere à forma organizativa da sociedade, obviamente espalham-se para campos os mais variados. O discurso da participação não se resume à participação política do cidadão elegendo seus governantes. Esse sentido e necessidade de participação perpassa toda a sociedade e suas organizações. No caso das organizações empresariais, é importante destacar que esse caminho já começa a ser trilhado antes mesmo da abertura democrática em seu sentido político. Referimo-nos aos movimentos no sentido da organização do trabalho de forma mais flexível, atribuindo ao trabalhador, mesmo que pouca, uma certa possibilidade de apontar possibilidades de melhoria de processos. Obviamente, os dois movimentos têm sentidos diferentes. Um está relacionado à democratização da sociedade e o outro tem a ver com a necessidade de estímulo à ampliação da produção. Em um cenário de mudanças rápidas, quase vertiginosas, são necessárias atitudes eficazes no sentido de atender a essas novas demandas. Organizações estabelecidas de forma tradicional, hierarquizadas, com gestão verticalizada, onde o trabalhador constitui-se em um elemento passivo que espera ordens superiores para realizar todo tipo de tarefa, sem espaço para pensar, tornam-se obsoletas e sem possibilidades de sobrevivência. É preciso mais. É preciso desenvolver novas competências e possibilidades de adaptação tão rápidas quanto o momento exige.

Nesse contexto, as organizações são levadas a rever suas práticas de gestão. Ideias como trabalho em equipe, liderança democrática, ter iniciativa, ser flexível, passaram a fazer parte do vocabulário das modernas organizações e, mais que isso, passaram a ser praticadas em seu dia a dia, especialmente no período pós segunda grande guerra.

No Terceiro Setor, não poderia ser diferente. Sua natureza mais flexível do que as burocracias estatais, aliada à competências variadas, lhes confere a possibilidade de atuar em campos de trabalho complexos. Tudo isso favorecido pelo próprio desenho organizacional das ONGs.

Por outro lado, como há um enorme crescimento desse setor, surge concomitantemente a esse crescimento, a necessidade de profissionalização da gestão, sob pena de, em não ocorrendo essa profissionalização, ocorrer a sua inviabilização. Não basta ter um sistema organizacional flexível, é preciso um nível de excelência na gestão que garanta a sobrevivência das entidades.

Nesse sentido, é importante destacar as dificuldades do processo de consolidação de instâncias participativas, ou seja, as dificuldades no campo prático para a vivência do que a constituição estabelece; a distância entre teoria e prática, concepção e vivência. Santos (2005. p. 38), destaca como exemplo disso, que, embora a construção de espaços públicos tenha sido universalizada pela constituição de 1988, as constituições estaduais e as leis orgânicas municipais deparam-se com a dura realidade da correlação de forças e repartição de poder claramente desvantajosa para a sociedade civil. Portanto, enfatiza ainda esse autor, a sociedade civil avança sobre os espaços conquistados não sem tensões e conflitos com o modelo político prevalecente, ainda marcado pelo estilo oligárquico e tradicional de governar.

Essa situação, estabelecida pelos novos marcos regulatórios presentes na nova constituição, ilustra o conflito entre sociedade civil e o modelo de relações políticas vigentes, o que denota uma enorme distância entre democracias nominais e democracias efetivas. Santos (2005, p. 38) destaca que “Mas recentemente cristalizou-se a percepção de que instituições

democráticas formais não traduzem necessariamente mudanças na cultura política das sociedades latino-americanas, sendo, portanto, insuficiente pensar esse processo de democratização simplesmente pela ótica do funcionamento dos mecanismos formais”.

Para esse autor, a implementação de espaços públicos que possam dar vazão à democracia participativa depende fundamentalmente do devir dos atores sociais operando numa conjuntura plena de riquezas e contradições, algo semelhante ao que defendem Putnam (2000), quando destaca a importância da participação cívica e Boaventura de Souza Santos (2009), quando chama a atenção para a necessidade de “democratizar a democracia”.37

Nesse sentido, interessa para nós compreender a gestão participativa enquanto uma das possíveis e inúmeras instâncias/possibilidades de vivência da democracia participativa, espaço peculiar sujeito a tensões e conflitos que expressam, em última instância, a correlação de forças que representam o velho e o novo, o estabelecido e a possibilidade de mudança e, sobretudo, a infância democrática que iniciamos, consubstanciados nas lutas da e na sociedade civil, e fortemente expressas na nova Constituição brasileira enquanto parâmetro teórico ordenador dessa sociedade.