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No auge da crise sistêmica que atingiu o mundo em outubro de 2008, países ricos e pobres se deparam com uma nova realidade: o sistema, diferentemente do preconizado pela concepção neoliberal, não consegue se regular internamente, avança em uma crise sem precedentes e põe em risco todo o mundo. O paradoxal do momento é ver defensores até então intransigentes dos princípios neoliberais, apelarem para a intervenção do Estado como único caminho para salvação do sistema.

O capitalismo central se mobiliza no sentido de dar conta da criação de um novo sistema de regulação, com a intenção de coibir o que, até então, era a mais pura lógica do sistema e o dogma maior do liberalismo: o mercado se autorregulando.

Todo sistema passa a exigir um novo paradigma. FMI, ONU, G8, G20, todos se integram em um movimento salvacionista que, mesmo que sem

admitir explicitamente, no que se refere à leitura política do momento e de sua gravidade, reconhece que o pilar liberal ruiu e é preciso pensar outro modelo.

No dia 7 de novembro de 2008, os líderes dos países da União Europeia aprovaram em Bruxelas um documento de quatro páginas em que propõem adotar medidas para mudar o sistema financeiro internacional em um prazo de cem dias. Em abril de 2009 o G20, reuni-se em Londres, tendo como anfitrião o primeiro-ministro da Grã-Bretanha, Gordon Brown, que tratou de evitar conflitos no meio diplomático sobre a discussão em torno da economia mundial e defendeu que valores familiares como o trabalho e a responsabilidade devem nortear o mercado financeiro. O Brasil, através do então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, defendeu uma nova regulamentação para o mercado, além do fim dos paraísos fiscais e do protecionismo e a democratização de organismos financeiros internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.

A crise, portanto, aponta para revisão do sistema atual, com refinanciamento do FMI e buscando garantir as condições mínimas de sobrevivência do capitalismo, o que inclui até o combate aos paraísos fiscais, historicamente tolerados.

As sugestões contidas no documento foram defendidas pelo bloco em reunião de cúpula do G20 na semana seguinte, dia 15 de novembro de 2008, em Washington, em reunião convocada para discutir a crise financeira global.

A pressa e a necessidade de maior transparência são a tônica central ao documento europeu, em que a presidência francesa da União Europeia propos medidas concretas para dirigir o que, na visão do bloco, deve ser a reforma do sistema financeiro mundial.

Um importante destaque é a unanimidade no discurso dos 27 países componentes do bloco, liderado naquele momento pelo presidente francês Nicolas Sarkozy.

Nas palavras de Sarkozy, à imprensa mundial, "A Europa fala com uma só voz”. Para ele, o novo sistema financeiro mundial deve ser fundado sobre o princípio da transparência das operações financeiras e incluir códigos de conduta que evitem que as instituições se aventurem em riscos excessivos.

O documento explicita que nenhuma instituição financeira, nenhum segmento de mercado, nenhuma jurisdição deva escapar da regulamentação e supervisão, é o retorno do Estado como ente regulador maior e a explicitação de um novo discurso político, até então entendido como antagônico as teses liberais, mais, diante da gravidade da crise, aceito, ressuscitado e valorizado9.

A proposta da União Europeia vislumbra um Fundo Monetário Internacional (FMI) no centro desse novo sistema, com papel reforçado e dotado de meios técnicos que permitam efetuar uma coordenação mais rápida, além da possibilidade de intervir de forma preventiva na eventualidade de uma nova crise. Uma espécie de plantão anti-crise.

A proposta dos europeus era pedir que os países adotem regras de governança para todos os atores financeiros, inclusive as agências de avaliação, e que se criem colégios de supervisores para coordenar o controle dos organismos nacionais sobre grandes grupos financeiros internacionais. Além disso, defenderam, também, mudanças nas normas contábeis com o objetivo de evitar a formação das famosas "bolhas especulativas10" em

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Para Faria (2009, p. 36), Na verdade, o que os ideólogos do capitalismo desejam, em síntese, é encontrar um “ponto de equilíbrio” entre a economia de mercado e a ação reguladora e financiadora do Estado, capaz de manter o sistema operando a contento, ou seja, um ponto em que o Estado controle os “excessos do mercado” e o mercado determine os “excessos do Estado”. O mundo perfeito do capitalismo versão Total Flex: mercado, Estado ou ambos. Esse é o capitalismo totalmente flexível.

10 A expressão bolha especulativa tem se tornado comum no mundo financeiro atual e está relacionada

a momentos em que forma-se em um mercado uma espécie de pirâmide natural. A única coisa que sustenta a progressão do mercado é a entrada de novos participantes, em sua maioria, investidores inexperientes em busca de lucro fácil. Um exemplo disso é o que acontece com a cotação das ações negociadas em bolsa de valores. Em dado momento, os grandes investidores, ou aqueles familiarizados com o mercado, percebem que os valores estão irreais e que os riscos de desvalorização aumentam vendem suas ações, levando a queda dos preços, provocando assim o estouro da bolha e vitimando grande número de pessoas e até instituições.

momentos de crescimento econômico, o que tem se comprovado, acentua os problemas em posteriores momentos de crise.

Naquele momento, dada à gravidade da crise a União Europeia propôs a instauração de um processo de acompanhamento sistemático internacional e, com a pressa que o momento exigia, que a aplicação das medidas necessárias para essas mudanças e a adoção de novas iniciativas fossem avaliadas em uma nova reunião internacional a ser realizada cem dias depois da cúpula de Washington, quando o governo dos Estados Unidos já estaria sob o comando de um novo presidente: Barack Obama, eleito em plena crise.

Santos, (2008, p. 9), quando estuda as potências emergentes e o futuro do capitalismo, defende que, “Se olharmos o cenário internacional do início do século XXI veremos, de um lado, a perda de dinâmica do capitalismo central, das instituições que o sustentam e de sua condição de ordenador da economia mundial”. Por outro lado, segundo esse autor, novas potências emergem no cenário global, determinando mudanças cada vez mais efetivas apesar de insuficientes para transformar totalmente a qualidade do sistema mundial.

Como se pode observar no movimento das grandes lideranças mundiais diante da crise instalada, de sua potencialidade arrasadora e da evidente incapacidade de atacá-la individualmente, a partir dos esforços de um único país, o momento constitui-se em um período de transição voltado para novas configurações no ordenamento mundial em variados aspectos. Como defende Santos, (2008, p. 9), “Trata-se (...) de uma fase de transição voltada a uma nova ordem mundial e a um novo sistema mundial que será regido claramente por fortes capitalismos de Estado, cuja ação conjunta buscará regular o comércio, o movimento de capitais e os serviços, assim como o movimento da mão-de-obra mundial”.

Para esse autor, durante esse período de transição as potências continentais e as integrações regionais desempenharão papel decisivo para organizar esse novo sistema mundial, seguindo uma filosofia política que servirá de base doutrinária para o pleno desenvolvimento de uma civilização

planetária, pluralista, democrática e igualitária, na qual os estados nacionais verdadeiramente modernos cumprirão papel ordenador e regulador, estabelecendo nova distribuição de renda e com instituições internacionais capazes de assegurar a justiça de forte base coletiva, apoiada nos direitos humanos e no direito dos povos, na paz e no respeito à soberania nacional.

É preciso destacar, no entanto, que o Estado continua tendo um papel fundamental seja na regulação econômica, seja no que se refere à representação política e, de modo muito especial, na solidariedade social, em que pese e particularmente, a necessidade de atualização da compreensão de seu papel no contexto atual, de seus limites estruturais e culturais em contraposição as formas de atuação historicamente registradas.

Não se pode, no entanto, deixar de considerar a argumentação de diversos autores sobre os limites próprios do modelo capitalista. Nessa perspectiva, afirma Faria (2009, p. 36), nenhuma das formas ou modelos resolverá o problema do capitalismo, pois são inerentes ao mesmo as crises de acumulação, dadas, como Marx já anunciava, pelas contradições entre as esferas de circulação de mercadorias e de capital.

Destacando a questão da solidariedade social enquanto um dos papeis do Estado, o que se observa no ambiente da crise de 2008 é ainda a miopia intencional frente a esse tipo de problema. Tal fato pode ser observado no montante de investimentos destinados, por exemplo, ao combate à fome, ao saneamento básico, à moradia, à saúde. De uma maneira geral irrisórios, particularmente se compararmos esse tipo de investimento com os recursos destinados ao socorro a instituições financeiras, boa parte acostumada a ações no mercado especulativo.

Nesse aspecto Faria (2009, p. 37) destaca que, enquanto o Estado socorre o capital, a situação social permanece como objeto periférico das atenções e dos investimentos. Nos EUA, por exemplo, a taxa de desemprego de 6,1% (9% em Michigan, onde se encontra as Big Three: GM, Chrisler e Ford) é a mais alta em cinco anos. Cada posto de trabalho na indústria

automobilística gera outros nove empregos. Desde 2005 as Big Three já eliminaram cerca de 100 mil postos de trabalho. Em todo os EUA 605.000 postos de trabalho foram eliminados entre janeiro e agosto de 2008. Em nenhum momento se cogitou resolver com intervenção direta e aporte de recursos os problemas sociais e do desemprego. No entanto, bastou o problema atingir as empresas para o governo injetar bilhões de dólares de recursos públicos em corporações privadas11.

A crise de 2008 revela, portanto, como afirma Faria (2009, p. 38), “o que já se sabe há muitos anos: há um processo cada vez mais intenso de estatização, de regulação e de financiamento público da economia de mercado”, diferentemente do discurso liberal defensor do Estado mínimo.

Nesse contexto de mudanças profundas a sociedade civil tem e terá papel fundamental, em que pesem os movimentos dissimulados no sentido de afastá-la desse front. É importante destacar, no entanto, que a participação da sociedade civil não ocorre por simples concessão. Ela é resultado de um confronto e se expressa tão forte quanto a capacidade de organização desta.

Na sequência desse texto abordaremos aspectos relacionados à sociedade civil e ao Terceiro Setor elementos teóricos fundamentais para o trabalho que nos propomos realizar.

1.3. Sociedade civil: democratização e o surgimento do Terceiro Setor.

1.3.1. Questões introdutórias.

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Exemplos emblemáticos disso são: o resgate da AIG, maior seguradora dos EUA, a nacionalização de instituições de crédito hipotecário e o socorro de 17 bilhões de dólares a duas empresas do setor automobilístico. O governo americano anunciou a disposição de investir algo em torno de US$ 1,3 trilhões no socorro a empresas em dificuldades e US$ 700 milhões para compra de títulos mobiliários “podres” do sistema financeiro.