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1.4. A questão da participação

1.4.2. Democracia participativa

Um tema central na agenda de países em todo o mundo, notadamente naqueles em desenvolvimento, está relacionado aos processos de participação social e, conseguintemente, em suas repercussões em aspectos-chaves como na economia, na política, na cultura e, de forma mais ampla, no desenvolvimento humano.

Tal situação toma relevância ainda maior ao considerarmos o contexto de crise de Estado diante da crescente demanda por novas formas de participação social, paradoxalmente oposta à crônica incapacidade desse Estado em atender a referida demanda.

No caso da América Latina, percebe-se um enorme paradoxo. De um lado observa-se certa estabilidade democrática, expressa, principalmente, nas mais de duas décadas de governos democráticos. Por outro lado, em que pese essa importante característica, a região enfrenta uma crescente crise social, alimentada por profundas desigualdades sociais, níveis elevados de pobreza e crescimento econômico insuficiente, o que leva a demonstrações constantes de descontentamento popular com a condução dos governos. (mesmo que democráticos), o que pode ser entendido como circunstâncias desestabilizadoras21.

Segundo Relatório divulgado em 2005 pela Rede Interamericana para a Democracia, nomeado Índice de Participação Cidadã na América Latina, nos anos 80, no início da Terceira Onda no desenvolvimento das democracias, o debate esteve centrado nos valores, as instituições e os processos de transição para a democracia. Os países deixavam atrás uma longa história de oscilações pendulares entre os extremos do autoritarismo e a democracia. A redefinição da cidadania política, a reestruturação do Estado democrático, o acesso aos direitos, a afirmação dos direitos humanos e as liberdades públicas e a reestruturação dos partidos políticos e as instituições republicanas, concentraram a atenção dos especialistas, dos partidos e movimentos sociais. (RID, 2005, p. 5).

Retomando a questão da crise do Estado e avançando aos anos 90 o relatório da RID descreve que nesse período, os efeitos da globalização e as implicâncias das reformas econômicas definiram uma nova agenda que se

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Na América Latina entre 30 e 60% da população padece alguma forma de exclusão social, negadora de sua cidadania, deixando em evidência a incapacidade das instituições públicas para encontrarem

somou aos problemas da consolidação da democracia22. Segundo o relatório, os assíncronos e desequilíbrios entre o desenvolvimento político e o desenvolvimento econômico expuseram em términos particularmente agudos os problemas da governabilidade democrática no marco de sociedades complexas e desiguais. (RID, 2005, p. 6).

De forma muito aguda eclode nas análises políticas e sociais a relação entre democracia política e participação social. Na reflexão de Figueiredo (2001, p. 24), sendo o sistema representativo imprescindível em sociedades tão complexas e populosas como as atuais, o problema se configura na maneira como tornar as instituições democráticas mais abertas à participação do cidadão nas decisões de políticas destinadas a processar a enorme pluralidade de objetivos presentes na sociedade sem comprometer a eficácia do governo. Portanto, o processo de construção democrática está umbilicalmente vinculado a ampliação dos espaços de participação cidadã no conjunto dos processos de discussão e mesmo de tomada de decisões relativas à políticas públicas.23

Ao analisar os fatores condicionantes do desenvolvimento da participação cidadã na América Latina o RID (2005, p. 5), esclarece que os problemas do desenvolvimento humano, a pobreza e a exclusão social, as demandas insatisfeitas de sociedades desiguais, com bloqueios à participação, a questão da representação e a atenção das novas dimensões da política social em Estados enfraquecidos pela crise econômica e a crise do público

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Vale destacar, como o faz Boaventura de Sousa Santos (2009, p. 16) que a globalização não é algo radicalmente novo: significa uma expansão exponencial das relações transfonteiriças, umas voluntárias, outras forçadas, com a consequente transformação das escalas que tem dominado até agora os campos sociais da economia, da sociedade, da política e da cultura.

23 Um bom exemplo no Brasil é o caso da saúde, tendo como referência a Reforma Sanitária que traz em

seu bojo uma nova visão de sociedade, especialmente na relação desta com o poder público e uma percepção de um cidadão participativo que encontra no aparato público as instâncias necessárias à sua manifestação seja em interesse próprio, seja na ação coletiva.

produziram um novo quadro de prioridades para o processo de expansão do Terceiro Setor24.

Nesse sentido, afirma, ainda, o RID, “A explosão da participação e o protagonismo das organizações da sociedade civil configuraram um novo mapa que hoje reclama mediações e traduções institucionais de nova índole”. Ou seja, tal situação aponta para a emergência da construção/elaboração de novas possibilidades de interlocução entre os diversos atores, face às novas configurações de desejos e necessidades de participação cívica, que diferem do até aqui vivido, seja no ritmo acelerado do crescimento da demanda pela participação, seja pela complexidade desta.

Segundo O RID (2005, p. 5), “Trata-se de mudanças qualitativas, que prefiguram uma nova época. Trata-se de uma transformação nos valores, instituições, regras, procedimentos e formas de expressão cidadã. É um tempo de expectativas e demandas, no qual se renovam as formas de manifestação do Capital Social e se vigiam formas de participação que transbordam os caminhos e modalidades tradicionais”.

Para Figueiredo (2001, p. 25), Isso pressupõe, naturalmente, um processo demorado de elaboração coletiva – bem como, aliás, a adoção de procedimentos que assegurem esses mecanismos, os quais comportam complexos procedimentos de negociação entre contendores que têm interesses, concepções e, sobretudo, expectativas distintas sobre a ordem democrática.

Diante disso, o autor defende a necessidade da formação de um consenso normativo, que permita minimamente o desenvolvimento da democracia sem interrupções a cada conflito fundamental que emerge, sendo

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O Relatório chama a atenção para o fato de os níveis de participação não somente se vêem afetados pela deterioração nos fatores do entorno político. Também se refletem no impacto crescente das crises econômicas e seu impacto sobre os mecanismos de formação de atitudes coletivas e redes sociais de incorporação e participação cidadã. Apesar disto, as crises sociais na região demonstraram ser fonte de

isso tão importante quanto à formação de um sistema partidário eficiente ou a instituição de mecanismos adequados de representação política.

Moisés (citado por Figueiredo, 2001, p. 25), afirma que esse consenso, ou pacto entre elites, envolve, entre outros fatores, a generalização de um conjunto de valores, orientações e atitudes políticas em meio aos diferentes segmentos em que se divide o mercado político e resulta tanto dos processos de socialização como da experiência política concreta dos membros da comunidade política.

Importa destacar que, mesmo considerando a busca por esse consenso normativo, os avanços no sentido da participação democrática não se efetivam de forma automática e igualitária para todos os atores sociais. A garantia de direitos fundamentais parece estar atrelada a capacidade de mobilização no sentido de garantir a efetividade desses direitos.

Mais que um conjunto de direitos e liberdades, no sentido de um sistema político formal, é preciso uma cultura participativa que mobilize a sociedade em seus diversos âmbitos. Nesse sentido, o que se observa é a incapacidade do sistema político formal, dada a diversidade de demandas sociais, em dar conta desta demanda de maior participação. Portanto, não basta só ter direito a votar e ser votado, ir e vir, de se expressar livremente ou de livre associação, algo ostensivamente propagado nas democracias liberais.

Para Figueiredo (2001, p. 26), de fato, a desilusão em relação às democracias liberais consolidadas, por um lado, e os estímulos ao aprofundamento da democratização em países de recente liberalização, por outro, têm vindo ao encontro da ressurreição da sociedade civil, da reestruturação do espaço público e da intensa mobilização dos grupos independentes.

Longe dos temas historicamente recorrentes, essa nova postura participativa da sociedade civil aponta para temáticas e preocupações até

então explicitadas apenas por grupos minoritários e/ou especialistas25. Da mesma forma, as possíveis saídas aparecem como algo novo e ainda por ser descoberto e construído, o que implica na necessidade de construção de novos arranjos, de uma nova arquitetura que possa dar conta da nova agenda social que se impõe.

São muitos os estudos que tentam dar conta desse novo desafio. Ressaltamos o trabalho de Putnam (2000) que adentra nos pormenores da relação entre desempenho institucional e comunidade cívica, ao estudar o caso da Itália. O autor faz menção à existência de uma correlação positiva entre participação cívica e desenvolvimento, algo já apontado por Tocqueville (1977), considerado um clássico nessa temática. Para Putnam (2000, p. 133), parece que quanto mais cívica for uma comunidade, mais abertos e democráticos tenderão a ser os processos de decisão pública e de controle social.

Retomando a questão das novas demandas colocadas em cena, percebe-se que estas não são atendidas pelas formulações clássicas da política, o que é ratificado no RID (2005, p. 6), quando aponta que as expectativas e demandas predominantes já não estão centradas em definições ou concepções gerais da política. Apontam aos temas do emprego e de desenvolvimento humano, o acesso à educação, a luta pela transparência na política e nas instituições, a resposta à insegurança cidadã, o combate contra a

25 O conceito de sociedade civil utilizado nesse trabalho está referenciado em Figueiredo (2001, p. 27),

para quem sociedade civil é concebida como um campo de organização da vida social, simultaneamente voluntário, auto-regenerativo, largamente auto-sustentado, autônomo com relação ao Estado e só limitado pela ordem legal estabelecida ou pelo compartilhar das regras do jogo. É distinta da sociedade em geral no sentido de que envolve cidadãos agindo coletivamente na esfera pública para expressar seus interesses, paixões e ideias, para trocar informações, buscar objetivos comuns, efetuar demandas ao Estado e fortalecer a responsabilidade dos gestores públicos. A sociedade civil é, assim, uma entidade intermediária, situada entre a esfera privada e o Estado, que não apenas restringe o poder do Estado como legitima sua autoridade quando baseada no cumprimento das leis. Comporta um vasto conjunto de organizações formais e de grupos informais de natureza variada: econômicos (associações comerciais e produtivas); culturais (religiosos, étnicos, comunitários, defensores de direitos coletivos, valores, credos e símbolos); de informação e educação; profissionais; de desenvolvimento (que visam à melhoria da qualidade de vida); orientados por problemas (meio ambiente, de gênero, consumidores); cívicos (promotores da cidadania). Tais constelações comportam ainda mídia independente e organizações vocacionadas para a produção cultural e intelectual – universidades, teatros, institutos publicitários,

pobreza e a exclusão social, o reclamo contra as diversas formas da desigualdade e a discriminação e a exigência geral de estabilidade e credibilidade da política, o que pode ser observado na tabela a seguir que oferece uma primeira síntese das expectativas e demandas sociais hoje predominantes.

Quadro 2. As maiores preocupações segundo país.

Fonte: RID - Rede Interamericana de Democracia (2005). Índice de Participação Cidadã. Segundo o Relatório, tal como pode ser observado no quadro, de uma lista curta de problemas sugeridos, onde os entrevistados tiveram a possibilidade de assinalar duas prioridades, a insegurança e a corrupção na administração pública preponderam como principais preocupações entre os países estudados. Na Argentina, México e República Dominicana prepondera a primeira delas, enquanto que na Bolívia, Costa Rica, Chile, Peru e Brasil a ênfase se coloca no segundo aspecto mencionado.

Dos dados expostos pelo Relatório da Rede Interamericana de Democracia, merece ênfase, ainda, o fato de os problemas da educação, a situação econômica e os problemas de pobreza também adquirirem uma relevância destacável na maioria dos países estudados.

Concorda completamente ARGENTINA BOLÍVIA COSTA RICA

CHILE MÉXICO PERU REP. DOMIN. BRASIL Insegurança 62.7 52.2 58.5 46.7 74.9 36.1 60.1 51.8 Situação econômica/pobreza 33.3 36.6 45.0 39.6 46.1 45.9 45.0 29.9 Governabilidade democrática 10.9 21.1 9.3 12.1 13.3 19.9 10.5 8.9 Problemas na área de educação 46.7 29.1 19.8 43.2 22.6 34.1 27.7 46.1 Corrupção na administração pública 46.4 61.0 67.4 58.4 39.0 64.0 56.7 62.4

Finalmente, destaca o relatório, em todos eles sem exceção, o problema da governabilidade democrática fecha a lista de preocupações com porcentagens notavelmente inferiores ao resto dos itens mencionados, pondo de manifesto que, apesar da magnitude e importância dos problemas, as preocupações e demandas predominantes nas sociedades estudadas não necessariamente indicam assinalamentos para a democracia em sua capacidade para encontrar as soluções aos problemas que dentro dela se expõem.

Nesse contexto, destaca o relatório, questões como a segurança cidadã, o desemprego estrutural, a crise da educação ou dos sistemas tradicionais de saúde e previsão social transbordam toda capacidade instalada de resposta e suscitam realinhamentos transversais nas atitudes e valores de uma sociedade cada vez mais autônoma e insatisfeita em relação às formas tradicionais de representação e participação social e política. Novas definições do âmbito da esfera pública condicionam ideias também novas a respeito de noções clássicas como as de cidadania, direitos fundamentais, justiça social, governabilidade e legitimidade. O centro de interesse é a ideia de “bom governo”, definida desde enfoques que transcendem amplamente os cânones da teoria tradicional do Estado e da sociedade.

Essas constatações estão presentes em importantes documentos como o Relatório sobre o estado da democracia, elaborado pelo Programa de Nações Unidas para o Desenvolvimento - PRODDAL - Projeto sobre o Desenvolvimento da Democracia na América Latina, em 2004 e o Índice de Desenvolvimento Democrático da América Latina (IDD-LAT 2005), que, em síntese, pode-se afirmar que apontam para a existência de “sérios problemas, tanto para a consolidação dos regimes democráticos quanto para a generalização de formas de vida democráticas frente a estes desafios”.

Nessas condições, destaca Figueiredo (2001, p. 29), de fato, os regimes democráticos não representam o apanágio para a resolução dos problemas que afetam a sociedade. As novas democracias (como, em medida diferente,

desigual não só dos bens materiais, mas também dos bens simbólicos e dos recursos de poder, com os quais são enfrentados os problemas da ordem social. Em consequência, o entusiasmo democrático, que normalmente caracteriza a fase inicial do processo, cede lugar, muitas vezes, ao desencanto, à apatia e, mesmo, à hostilidade em face da democracia.

A construção dessa democracia passa, obrigatoriamente, pela consolidação da sociedade civil e de mecanismos que garantam a esta a participação ativa em sua própria construção, a partir da possibilidade concreta de participar das decisões políticas ordenadoras do ambiente social em todos os seus aspectos. Em resumo, pode-se afirmar que essa concepção de democracia participativa tem ênfase na ampliação do espaço de participação política da sociedade civil, em especial pela via dos movimentos sociais26.

Como afirma Nun (1989, p. 61), acontece que uma coisa é conceber a democracia como um método para a formulação e tomada de decisões no âmbito estatal; e outra bem distinta imaginá-la como uma forma de vida, como um modo cotidiano de relação entre homens e mulheres que orienta e que regula ao conjunto das atividades de uma comunidade. Estou aludindo ao contraste entre uma democracia governada e uma democracia governante, isto é, genuína.

A construção desse ambiente político pressupõe a superação de situações historicamente construídas. Ou, como afirma Macpherson (citado por

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Nesse aspecto, a Constituição brasileira de 1998 consagra em seu texto uma democracia participativa na esfera social e explicita de forma muito clara novos papéis e espaços para a atuação das organizações da sociedade civil, a exemplo de: a) cooperação no planejamento municipal (art.29,X.); b) presença assegurada na realização de audiências públicas com as comissões permanentes e temporárias do Congresso Nacional e sua Casas (art.58,§2º,II.); c) legitimidade ativa em denunciar irregularidades ou ilegitimidades perante o Tribunal de Contas da União (art.74,§2º); d) participação na gestão da Seguridade Social (art.194,VII); e) participação nas ações e serviços públicos da saúde (art.198,II), entre outras possibilidades estabelecidas nessa nova Carta Magna.

Figueiredo, 2001, p. 30), para que a democracia participativa possa ser efetivada são precisos dois pré-requisitos fundamentais:

a) mudança da consciência do povo – que deve deixar de se ver como essencialmente consumidor para passar a agir como executor e desfrutador da execução e do desenvolvimento de suas capacidades – para o que é necessário fortalecer na sociedade o sentido de “comunidade”;

b) diminuição da atual desigualdade social e econômica, visto que a desigualdade exige um sistema político que limita a participação do cidadão, para manter a sociedade coesa.

Em verdade, os pré-requisitos postos precisam ser buscados de forma concomitante. Nesse sentido, as duas dimensões se complementam. A ideia fundamental é que a efetivação deles aponte para a formalização da democracia participativa, na medida em que instrumentalizam a sociedade com os elementos necessários à vivência democrática em sua melhor acepção.

Vale destacar, que essa postura nos remete a uma situação que difere das posições inicialmente assumidas por uma importante parcela dos estudos sobre o potencial democratizador da sociedade civil e dos espaços participativos a ela vinculados que, de uma maneira geral, limitavam-se a constatação e mesmo a celebração dos espaços conquistados, sem, no entanto, conferir a análise um sentido de maior acuidade no que se refere ao potencial dessa participação e às condições efetivas de sua realização, sobretudo ao considerarmos como elemento balizador o contexto político, no sentido de observar o mais importante: a qualidade da participação.

Importa destacar, como o faz Dagnino (2007, p. 10), que não se trata de negar a importância da aposta nos espaços participativos institucionalizados como forma de qualificar o projeto democrático; tampouco de abrir mão dos ganhos analíticos que a investigação desses processos tem permitido no que se refere ao avanço dos debates acadêmicos sobre a democratização. Trata- se, isso sim, de reconhecer a complexidade do processo de construção

inspirando direções de pesquisa que ampliam o seu foco, em abordagens que privilegiam as relações que se estabelecem entre a multiplicidade de sujeitos e espaços envolvidos.

Em nosso estudo, buscamos compreender o potencial dos espaços participativos enquanto lócus de empoderamento de indivíduos e da sociedade civil para o exercício da cidadania. A noção de participação assume, portanto, um caráter de empoderamento, (empowerment), questão a qual nos reportaremos na sequência desse texto, por entendermos que está diretamente relacionada com um sentido de protagonismo civil, algo como uma consequência, um efeito da vivência de uma democracia participativa.