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Para melhor entender a esfera social escolar, consideramos pertinente refletir sobre o que Júlia (2001) denomina “cultura escolar”. Ele enfatiza que o estudo da cultura escolar não pode ser feito sem uma análise precisa das relações – conflituosas ou pacíficas – que esta cultura mantém com as culturas religiosa, política ou popular que lhe são contemporâneas. O conceito de cultura escolar apresentado pelo autor a descreve “como um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos” (JÚLIA, 2001, p. 10, grifos do autor). Essas normas e práticas estão relacionadas a finalidades religiosas, sociopolíticas e de socialização, que podem variar segundo as épocas e que “não podem ser analisadas sem se levar em conta o corpo profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essas ordens e, portanto, a utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar a sua aplicação”, ou seja, os professores70 (JÚLIA, 2001, p. 10-11).

69 Optamos por refletir sobre esta esfera da comunicação discursiva principalmente a partir das discussões de Chervel (1990), Júlia (2001) e Petitat (1994). Destacamos, entretanto, que a teoria social de Bourdieu, produzida nas décadas de 1960 e 1970, contrapondo-se (como Bakhtin) às perspectivas do subjetivismo e do objetivismo, poderia fomentar a reflexão sobre a esfera escolar, a partir dos conceitos de habitus, sentido prático, capital cultural e campo, presentes na teoria desse autor. Para ver aproximações entre o pensamento do Círculo de Bakhtin e a obra do sociólogo e filósofo francês Pierre Bourdieu, consultar o artigo “Esfera e campo” (GRILLO, 2006).

70 Por mais que o papel dos interlocutores seja tão constitutivo da dimensão extraverbal do enunciado quanto a questão do espaço-tempo e o aspecto temático, para fins de organização do trabalho os professores serão o foco da análise na seção 5.2, na qual serão explicitadas as posições/papéis dos interlocutores na situação de interação aqui investigada.

As reflexões produzidas no âmbito da história da educação têm fomentado uma enorme gama de publicações sobre o estudo das práticas e das populações escolares, da organização e da gestão escolar, entre tantos outros temas ligados às problemáticas relações sociais que se desenvolvem na esfera escolar, desde a institucionalização da instrução escolar até nossos dias.

A escolarização moderna, nos moldes como a conhecemos hoje, começa a ser institucionalizada na segunda metade do século XVI, apesar de haver estudos apontando a existência de uma prática educacional medieval, que já começava a fazer distinção entre o ensino doméstico e o escolar, nos séculos XI e XII. (HAMILTON, 2001; PETITAT, 1994).

Júlia (2001) aponta três elementos constitutivos da cultura escolar, surgidos no período moderno contemporâneo (séculos XVI a XIX), como essenciais para compreender a história das disciplinas escolares que abrem a “caixa preta” da escola: o espaço escolar específico71, os cursos graduados em níveis e o corpo profissional específico.

O espaço escolar autônomo, com um edifício, mobiliário e material específicos, que já é uma realidade para as universidades desde o século XV, prolonga-se ao ginásio, no século XVI. Já a escola elementar, que corresponde aos atuais 1º e 2º ciclos, começa a ter seu espaço físico e um mobiliário apropriado, na França, nas escolas urbanas dos Frades das Escolas Cristãs, a partir do século XVII. Nos Países Baixos, a partir do século XVIII, as escolas diaconais dos pobres e os orfanatos também tiveram seu equipamento específico. Entretanto, as escolas de caridade constituíam uma minoria e a existência de um espaço escolar independente, no conjunto das escolas primárias, só se concretizou no decorrer do século XIX (JÚLIA, 2001, p. 13-14).

Não obstante, Petitat (1994, p. 77) relata que o surgimento de estabelecimentos de ensino dá-se, em Paris, a partir do século XIII, quando muitos estudantes72 pobres eram mantidos por nobres ou eclesiásticos que consideraram melhor fundar os hospitia nos quais os

71 A distribuição dos indivíduos no espaço vai se configurar, ao longo dos séculos XIX e XX, como um dos mecanismos de controle e vigilância das práticas discursivas e não-discursivas dos indivíduos na sociedade. Para uma discussão aprofundada sobre as relações de poder presentes em todas as instituições sociais, ver os trabalhos do filósofo francês Michel Foucault, produzidos na década de 1960, principalmente a obra Vigiar e punir (FOUCAULT, 1987). Para este autor, a escola é vista como uma das “instituições de seqüestro”, nas quais são utilizados mecanismos disciplinares, como a vigilância panóptica, objetivando a docilidade dos corpos. Por mais que as relações de poder estejam imbricadas na construção do horizonte apreciativo dos interlocutores e sejam determinantes nas interações sociais analisadas na presente pesquisa, não nos deteremos no aprofundamento desse aspecto, por uma questão de escolhas teóricas impostas pelo recorte necessário para viabilizar um “acabamento” mínimo e necessário à pesquisa.

72 Ao longo deste capítulo, os termos “estudante”, “aluno” e “aprendiz” serão utilizados como sinônimos, seguindo a opção feita pelo autor resenhado. O mesmo ocorre com os termos “professor”, “instrutor” e “mestre”. O estudo das diferenças semânticas entre os termos, apesar de muito instigante, demandaria uma pesquisa da origem etimológica das palavras que não cabe no escopo desta tese.

estudantes pudessem ter alojamento e alimentação. Estas casas de estudantes pobres, pouco a pouco, vão se transformando em estabelecimentos de ensino e, a partir do século XIV, não são mais os estudantes que se deslocam até os professores. Os mestres são impostos e, com o agrupamento de estudantes e professores sob o mesmo teto, eles passam a exercer controle sobre os alunos por meio de novos princípios disciplinares.

Constituindo o segundo aspecto constitutivo da cultura escolar, a progressão de nível marcada pelos cursos em classes separadas foi instaurada a partir das primeiras décadas do século XVI. Esse sistema foi utilizado inicialmente pelos Frades da Via Comum dos Países Baixos, sendo mais tarde difundido nos ginásios germânicos e na Companhia de Jesus; na Inglaterra, após a dissolução dos monastérios e das capelas pela Reforma, o ensino humanista se desenvolveu com a fundação das grammar schools73 (JÚLIA, 2001, p. 14).

Entretanto, Chervel (1990) destaca que essa organização não se instaurou de modo uniforme no primário74 e no secundário; neste, há um avanço de séculos em relação ao primeiro, pois até meados do século XIX, a maioria das escolas francesas elementares é de classe única e não possui uma “organização pedagógica” para além do estilo individual e de fórmulas precárias. O autor esclarece, ainda, que, até o final do século XIX, a repartição dos alunos por classes não levava em conta a idade, podendo haver variações de 10 ou 12 anos, bem como não estava relacionada à natureza das dificuldades encontradas – essa inovação na história pedagógica é determinada pela própria constituição das disciplinas escolares. (CHERVEL, 1990, p. 196).

O terceiro aspecto constitutivo da cultura escolar – a formação profissional dos educadores – passa a ser uma prioridade, de acordo com Júlia (2001, p. 14), no fim do século XVIII, quando o Estado retoma da Igreja o controle do ensino tanto das elites como do povo e quando surgem as escolas normais na Europa. Sobre esse aspecto, refletiremos na seção 4.6.

As finalidades desse espaço escolar, que tem seus contornos configurados no final do século XIX, os quais perduram até os dias atuais, não podem ser estudadas dissociadas das discussões sobre currículo e sobre a história das disciplinas escolares; aspectos sobre os quais discorreremos nas seções 4.2 e 4.3, respectivamente.

73 As grammar schools são escolas particulares britânicas, para alunos acima de 11 anos, que os preparam para os exames de ingresso na universidade e são conhecidas pelo elevado padrão acadêmico.

74 Chervel cita a Circular de 14 de agosto de 1869 (Bulletin de l’instruction primaire de la Seine, 1869, p. 309), na qual Otávio Gréard “realiza essa transformação decisiva do ensino primário: ‘Nós desejaríamos, escreve aos inspetores primários, que os estudos primários se tornassem verdadeiramente classes, classes elementares e simples acessíveis ao maior número, mas tendo seu seguimento e seu coroamento, próprios para formar espíritos esclarecidos e sábios, imbuídos de princípios exatos,...’.” (CHERVEL, 1990, p. 196-197). Como se pode perceber, a preocupação explicitada no documento é com a finalidade atribuída à escola de formação do espírito, não com necessidades ou dificuldades de aprendizagem do público escolar.