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A sala de aula de línguas vem sendo tomada por linguistas como objeto de pesquisa há algum tempo. Já no início da década de 1990, Cavalcanti e Moita Lopes (1991, p. 135) alertavam que as investigações se realizavam dentro de um paradigma positivista de pesquisa. Assim, os linguistas aplicados não focavam o processo de ensino-aprendizagem, mas procuravam relações de causa e efeito no que antecede o processo e nos seus resultados.

Moita Lopes (1994, p. 330), com base nos dados dos Catálogos dos IX e X Congressos Internacionais de LA da década de 1990 (AILA-90 e 93), destaca a persistência dos métodos quantitativos de pesquisa que, devido ao seu status privilegiado, não são questionados. Não obstante, o autor chama a atenção para as formas inovadoras de fazer pesquisa em LA, as quais, devido à diferença na tradição epistemológica, podem revelar conhecimentos não alcançados pela pesquisa na tradição positivista.

O autor defende a pesquisa interpretativista, apontando para a natureza do objeto de estudo nas Ciências Sociais, que exige a utilização de meios e procedimentos distintos dos usados nas Ciências Naturais para produzir conhecimento. A inadequação do fazer científico

positivista deve-se ao fato de que o objeto de investigação nas Ciências Sociais faz uso da linguagem.

Outra característica da pesquisa interpretativista é que “o acesso ao fato deve ser feito de forma indireta através da interpretação dos vários significados que o constituem.” (MOITA LOPES, 1994, p. 331). A multiplicidade de significados que o homem atribui ao mundo social não pode ser controlada com variáveis, nem tratada estatisticamente, o que não permite a formulação de generalizações. Segundo o autor, estas não interessam à pesquisa em Ciências Sociais, uma vez que distorcem a realidade, padronizando-a em experimentos, diferentemente do que ocorre na visão interpretativista, que possibilita a intersubjetividade, isto é, “os significados que os homens, ao interagirem uns com os outros, constroem, destroem e reconstroem.” (MOITA LOPES, 1994, p. 332). Essa intersubjetividade permite uma aproximação da realidade pela contraposição dos significados construídos pelos atores sociais, uma vez que os aspectos processuais do mundo social é que são focados.

Quanto às formas de fazer pesquisa interpretativista, o autor apresenta como possibilidade mais adequada para tratar de aspectos sociais a pesquisa etnográfica, originada na Sociologia e na Antropologia, por focalizar o contexto social da perspectiva dos participantes. Neste tipo de pesquisa, “é essencial que se leve em consideração a visão que os participantes (sendo o observador-participante incluído aqui) têm do contexto e o todo do contexto social”, diferentemente do que ocorre na pesquisa positivista, que considera somente a observação do pesquisador (MOITA LOPES, 1994, p. 334).

A pesquisa de LA, com foco no processo de ensino-aprendizagem, hoje, tem utilizado este paradigma, visando a interpretar os significados construídos pelos participantes na sala de aula, por meio da utilização de instrumentos de pesquisa como: elaboração de diários, gravações em vídeo e áudio, entrevistas, análise de documentos. Essa diversidade de instrumentos permite a triangulação dos dados pela possibilidade de ter, pelo menos, três interpretações sobre o ocorrido. No caso da presente pesquisa, por exemplo, as anotações da pesquisadora trazem um registro que já vem de certa forma interpretado, as gravações contêm as falas dos participantes, e os documentos produzidos representam de alguma forma parte do que está ocorrendo no campo. Esse conjunto de dados possibilita uma visão mais ampla e complexa do fenômeno observado, possibilitando uma compreensão mais aprofundada do mesmo.

Com relação à abundância de dados, que pode dificultar a interpretação, Moita Lopes (1994, 336) sugere como procedimento de análise de dados: (1) procurar regularidades que possibilitem a formação de um arquivo de dados relacionados às questões em análise e (2)

confrontar esses dados com dados provenientes de outros instrumentos ou de novas investigações.

O autor diz que “a linguagem é, ao mesmo tempo, condição para a construção do mundo social e caminho para encontrar soluções e compreendê-lo”, o que mostra a complexidade do desafio e também pode revelar o motivo do fascínio pelo fazer pesquisa em LA.

De acordo com Celani (1998, p. 136), as metodologias utilizadas na área de LA, nos últimos anos, tendem mais para a abordagem qualitativa, e os tipos de pesquisa desenvolvidos incluem a etnográfica, a microetnográfica, a colaborativa, a participativa e a pesquisa-ação em sala de aula. A autora se reporta aos volumes 17 e 18 da publicação stricto sensu da área de LA – Trabalhos em Lingüística Aplicada, destacando que se percebe claramente “uma maior aproximação com as Ciências Sociais, com trabalhos de base antropológica, com pesquisa-ação e com pesquisa de natureza participativa e etnográfica.” (CELANI, 1998, p. 138-139).

Referindo-se à sala de aula, como contexto focalizado nas pesquisas em LA, a partir dos anos 90, Kleiman (2001, p. 16) defende que

[...] as abordagens interpretativistas são privilegiadas a fim de entender os vários objetos que são, por sua vez, nesse contexto construídos: as práticas discursivas de letramento, a interação em sala de aula, as práticas discursivas do professor, a construção de identidades. Assim, elementos unificadores importantes desses trabalhos, então e hoje, são, por um lado, a abordagem discursiva e, por outro, a abordagem metodológica: considera-se que a realidade do ensino e aprendizagem na sala de aula só pode chegar a ser conhecida através de metodologias de pesquisa interpretativas, qualitativas que permitam descrever o contexto natural da aula.

A autora destaca que a recente linha de pesquisa de formação do professor segue quadro semelhante ao apresentado na década de 90 para as pesquisas que abordavam questões de sala de aula, pois as abordagens metodológicas da nova linha investigam o conhecimento de situações como: “(a) alunos e alunos-professores em formação nas suas interações como seus docentes universitários; (b) professores em atuação na sala de aula, pondo em evidência seus processos de formação; (c) professores refletindo sobre suas práticas; (d) professores interagindo com seus colegas no cotidiano escolar” (KLEIMAN, 2001, p. 21).

Com a ampliação das situações-foco de interesse dos linguistas aplicados, surgem novas questões para se pensar, dentre elas, a necessidade de se rever e relativizar conceitos

estabelecidos sobre os aspectos metodológicos, como a relação entre os participantes da pesquisa e posturas e procedimentos éticos.

Kleiman (1998) defende o diálogo com os indivíduos envolvidos no estudo, referindo-se à pesquisa colaborativa, e destaca a relevância social da pesquisa para a vida das pessoas como um fator que se sobrepõe à construção de teorias. A autora reconhece os riscos da aplicação, mas aponta, como possibilidades para avaliar a relevância dos resultados da pesquisa: (a) o desenvolvimento de pesquisa/intervenção, mesmo que fujam mais radicalmente dos paradigmas dominantes, b) “o contínuo envolvimento de linguistas aplicados em projetos práticos de formação de professores e de renovação das práticas escolares”, e (c) “a produção de trabalhos de divulgação da pesquisa e de mediação entre a universidade e a escola”. (KLEIMAN, 1998, p. 72).

Cavalcanti (1998) faz uma reflexão sobre o fazer pesquisa em LA, ao discutir sua relação como pesquisadora com os participantes de uma pesquisa com professores indígenas, os quais a fizeram repensar conceitos desenvolvidos em sua vida acadêmica. Ela reflete sobre a mudança na sua posição de pesquisadora na medida em que passou a ter um papel duplo de pesquisadora e formadora de professores. Sobre seus estudos com povos indígenas, ela assim se manifesta:

O que aprendi até agora, quero acreditar, é ouvir, observar e estar sempre pronta a fazer mudanças e ajustes onde e quando for necessário. Isto inclui, principalmente, fazer mudanças no trabalho de pesquisa para abrir espaço para as prioridades dos professores indígenas. Estas mudanças e ajustes são todos parte do fazer pesquisa aplicada como a entendo hoje: os interesses de todos os participantes sendo levados em consideração e, dentro do possível, os interesses do grupo sendo tomados como prioridade. (CAVALCANTI, 1998, p. 199).

A autora assim resume a relação entre o pesquisador e os demais participantes da pesquisa: “se o pesquisador não experimenta de dentro, não há como construir uma visão êmica e não há como derivar modificações no modo de ser e de agir do mundo acadêmico.” (CAVALCANTI, 1998, p. 200, grifo da autora). Opinião, de certa forma, partilhada por Moita Lopes (1998, p. 124), ao defender um modo de fazer pesquisa em LA que privilegia o conhecimento produzido, considerando a visão que os participantes têm do contexto social, em pesquisa de natureza colaborativa ou etnográfica – metodologias bastante utilizadas em LA.

Signorini (2006) aprofunda a discussão sobre a relação entre os participantes da pesquisa, ao falar da participação ativa do pesquisador e de seus instrumentos como

constitutivos da prática estudada. O pesquisador, como observador participante, colabora para a produção da situação que descreve. Ela entende que a própria constituição e organização dos dados pelo analista já é uma produção de conhecimento. No caso do seu foco de análise, o estudo da língua em uso no campo aplicado, Signorini (2006, p. 187) defende que interessa “pensar a pesquisa enquanto intervenção e o pesquisador enquanto agente dessa intervenção, e não as maneiras de neutralizar essa dimensão de sua relação com seu objeto”. Nessa perspectiva, ela reforça a ideia de que o objeto de investigação não é dado de antemão, ele vai se constituindo e transformando no processo mesmo de sua constituição30.

Celani (2005, p. 109), quando discute a ética na pesquisa em LA, considerando as especificidades do paradigma qualitativo-interpretativista, também toca na questão da relação entre pesquisador e participantes da pesquisa, focando o papel destes últimos no desenvolvimento da pesquisa. Para a autora, não existe uma linguagem “científica” que possa “descrever a vida social do lado de fora, para olhar e interpretar os dados”. Ela defende que os sujeitos da pesquisa são, além de participantes, parceiros do pesquisador, pois “[a] construção dos significados é feita pelo pesquisador e pelos participantes, em negociações.”. A autora chama a atenção para a necessidade de os participantes terem um papel mais ativo no desenvolvimento da pesquisa, podendo até mesmo questionar seus métodos e resultados.

Essa possibilidade de redimensionar o desenho da pesquisa deve ser considerada no planejamento prévio, pois, no paradigma qualitativo-interpretativista, atualmente utilizado na pesquisa educacional crítica, há o entendimento da pesquisa como uma “situação aberta, com um fim não previsível.” (CELANI, 2005, p. 110).

Para esta autora, tais questões têm a ver com uma postura ética na pesquisa em LA, tanto na sala de aula quanto na formação contínua de professores. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido31 é também uma forma de diálogo entre o pesquisador e os participantes, pois proporciona o entendimento dos objetivos da pesquisa, do papel dos participantes e, inclusive, informa sobre a liberdade de desistir da participação na pesquisa a qualquer momento.

Celani destaca que o pesquisador não pode deixar de se perguntar em que medida a pesquisa pode ser útil aos participantes, nem pode excluí-los da etapa final de apresentação dos resultados, pois, na teoria crítica, “a participação de todos não é apenas um meio, mas é

30 Voltaremos a essa questão, na próxima seção, ao apresentar as reflexões do Círculo de Bakhtin sobre a pesquisa em Ciências Humanas.

31 Documento exigido pelo Conselho Nacional de Saúde e regulamentado pela Resolução 196/96, homologada pelo Ministério de Estado da Saúde, em 10 de outubro de 1996.

respeitada como um fim em si mesma, pois tem a emancipação como fim último.” (CELANI, 2005, p. 111).

Sobre ética e poder na pesquisa, Moita Lopes (1996, p. 10) salienta que o respeito aos interesses do pesquisado, o direito a saber o que se passa em seu contexto social e a preservação de sua identidade são aspectos de natureza ética relevantes em qualquer contexto de atuação do pesquisador em LA. O autor qualifica como inaceitável, no seu ponto de vista, “a noção de objetividade positivista que implica a possibilidade de ver o mundo social como existindo separadamente do ser humano, envolvendo, portanto, a possibilidade de controlar o pesquisado para evitar contaminação no resultado da investigação”. O autor ressalta também a questão da intersubjetividade típica da construção discursiva, na visão interpretativista de pesquisa, como parte do próprio ato de investigação como prática social. Portanto, o envolvimento do pesquisado na pesquisa e sua consciência sobre esse processo são elementos constitutivos do ato de investigação. Moita Lopes (1996, p. 10) assim explica essa relação: “nas várias metodologias de natureza interpretativisita, o pesquisado e suas percepções dos processos a que está submetido na prática discursiva, os seus conhecimentos, e a sua relação interacional com o pesquisador são parte da própria investigação.”

Paiva (2005, p. 46), ao falar sobre as pesquisas desenvolvidas nas escolas públicas, que, muitas vezes, expõem as deficiências das escolas sem apresentar nenhum retorno aos pesquisados, diz que essa postura só “contribui para desestabilizar o que já está fragilizado” – o que a autora qualifica como “irresponsável” e “não solidário”.

Quanto ao acesso ao conhecimento produzido, Moita Lopes (1996) traz a problemática de que, se, por um lado, os atores sociais têm direito ao conhecimento produzido nas pesquisas das quais participaram, por outro, o pesquisador precisa “ter cuidado para que sua pesquisa não seja usada para tirar a voz e caçar o poder de quem está em situação de desigualdade.” Com a ampliação dos contextos institucionais nos quais se faz pesquisa em LA e considerando que a construção de significado viabilizada no fazer pesquisa está impregnada de relações de poder, o autor faz um alerta: “os resultados de nosso trabalho podem ser usados para desempregar, condenar, criar incompetência”. (MOITA LOPES, 1996, p. 11).

Como contribuição para as reflexões sobre ética na pesquisa em LA, destacamos, ainda, as considerações de Paiva (2005) sobre dois aspectos advindos das especificidades da pesquisa nessa área, bem como da opção pelas investigações de base etnográfica. A primeira questão apontada pela autora diz respeito à relação entre pesquisadores. Ela traz o exemplo da própria Linguística, citando as disputas no interior de determinadas correntes teóricas, e comenta o desprezo para com os “profissionais que fazem investigações na área do ensino,

considerada como inferior e não científica, principalmente se a opção é por uma metodologia qualitativa, sem tratamento estatístico.” (PAIVA, 2005, p. 49).

A segunda questão discutida pela autora diz respeito à relação entre pesquisador e pesquisado (PAIVA, 2005, p. 53-56). Ela trata de aspectos como: a importância de a coleta de dados não alterar a rotina da instituição; a necessidade de os participantes serem informados sobre os objetivos da pesquisa; a oportunidade que o informante deve ter de ler as transcrições e dar seu aval antes de concluído o trabalho32; que o pesquisador não imponha suas crenças, por mais que esteja convicto de que algo é bom.

Com base nas discussões desses linguistas aplicados, podemos perceber que as questões relacionadas à ética na pesquisa têm uma ligação estreita com a especificidade do fazer pesquisa nesta área. Assim, a posição dos participantes e as possíveis consequências das pesquisas na vida deles precisam ser analisadas de acordo com o contexto institucional, evitando-se, desse modo, prejuízos para ambos os envolvidos e mesmo para a imagem das instituições.

Por outro lado, as reflexões sobre o fazer pesquisa em LA, hoje, apontam algumas especificidades dadas tanto pela natureza do objeto – práticas de linguagem de sujeitos – quanto pelas metodologias privilegiadas atualmente na área, dentro do paradigma qualitativo- interpretativista. A seguir, abordaremos a questão do fazer pesquisa na perspectiva teórica adotada na presente pesquisa, ou seja, segundo a teoria/análise dialógica da linguagem proveniente dos estudos do Círculo de Bakhtin.

3.2 LINGUAGEM E EPISTEMOLOGIA NAS CIÊNCIAS HUMANAS NA CONCEPÇÃO