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3.2 LINGUAGEM E EPISTEMOLOGIA NAS CIÊNCIAS HUMANAS NA CONCEPÇÃO DO CÍRCULO DE

3.2.1 Especificidade do objeto de estudo: o discurso do professor

O primeiro ponto sobre o qual vamos refletir a seguir é o que se refere às especificidades do objeto de investigação: os enunciados que compõem o discurso, no nosso caso, mais especificamente, o discurso-resposta do professor.

Bakhtin (Volochinov) (1992) postula que “para observar o fenômeno da linguagem, é preciso situar os sujeitos – emissor e receptor do som –, bem como o próprio som, no meio social”. A linguagem é um fenômeno social extremamente complexo que envolve diferentes esferas da realidade: a física (som – fenômeno puramente acústico); a fisiológica (processo de produção e recepção do som) e a psicológica (atividade mental). Entretanto “a unicidade do

meio social e a do contexto social imediato são condições absolutamente indispensáveis para

que o complexo físico-psíquico-fisiológico que definimos possa ser vinculado à língua, à fala, possa tornar-se um fato de linguagem” (BAKHTIN (VOLOCHINOV), 1992, p. 70-71).

As categorias da Linguística à qual Bakhtin (Volochinov) se refere servem para o estudo da língua como sistema, não na sua realização em contextos concretos, na sua relação

imediata com a realidade e com a pessoa viva falante (sujeito), ou seja, a língua como

discurso, pois "[o] objeto da lingüística é apenas o material, apenas o meio de comunicação discursiva mas não a própria comunicação discursiva, não o enunciado de verdade, nem as relações entre eles (dialógicas), nem as formas da comunicação, nem os gêneros do discurso" (BAKHTIN, 2003, p. 324).

Nesta investigação, interessa o estudo do enunciado como unidade “no grande diálogo da comunicação discursiva”. Por isso, não é possível garantir o rigor científico, utilizando categorias das ciências naturais ou exatas. A especificidade do objeto, ou melhor, do discurso do sujeito a ser estudado, exige o reconhecimento de que há um campo novo para o estudo do qual o rigor é de outra natureza. Bakhtin assim se manifesta sobre o “objeto de estudo” dessa “nova ciência”:

O enunciado (produção de discurso) como um todo entra em um campo inteiramente novo da comunicação discursiva (como unidade desse novo campo) que não se presta à descrição e à definição nos termos da lingüística

[...]. Esse campo é dirigido por uma lei específica e para ser estudado requer uma metodologia especial (BAKHTIN, 2003, p. 371).

Ainda que Bakhtin não proponha uma metodologia acabada para a pesquisa em Ciências Humanas, ao longo da explicitação de sua “teoria” ele vai apresentando elementos que nos permitem buscar um caminho metodológico, após o conhecimento das especificidades do objeto a ser investigado. Quando ele diz que “[n]enhum fenômeno da natureza tem ‘significado’, só os signos (inclusive as palavras) têm significado. Por isso qualquer estudo dos signos, [...] começa obrigatoriamente pela compreensão”, está apontando o texto, na sua condição de enunciado, como “o dado (realidade) primário e o ponto de partida de qualquer disciplina nas ciências humanas.” (BAKHTIN, 2003, p. 319). O autor destaca, entretanto, que essa compreensão não pode levar a tomar textos ou fragmentos de textos, ou a estudar as criações sígnicas do homem como fenômenos da natureza: “estamos interessados primordialmente nas formas concretas dos textos e nas condições concretas da vida dos textos, na sua inter-relação e interação”. Sobre o estudo deste “objeto” específico, Bakhtin diz que, ao estudarmos “o homem, procuramos e encontramos signos em toda parte e nos empenhamos em interpretar o seu significado.” (BAKHTIN, 2003, p. 319).

Ainda com relação ao objeto de estudo, Bakhtin enfatiza que é necessário realizar uma “delimitação precisa dos objetos de investigação científica. O objeto real é o homem social (inserido na sociedade), que fala e exprime a si mesmo por outros meios.” (BAKHTIN, 2003, p. 319).

Vendo dessa perspectiva, a própria denominação “objeto de estudo” torna-se questionável, uma vez que não há objetificação como nas ciências naturais, pois o foco do estudo aqui recai sobre as relações entre sujeitos, ocorrendo, portanto, o que Bakhtin chama de processo de personificação. Assim, a tarefa do pesquisador em ciências humanas passa pela interpretação39 da fala dos sujeitos que exprimem a si mesmos nas interações sociais, que se realizam por meio de enunciados.

Vale destacar, ainda, que, como dito anteriormente, para realizar um estudo com tais características, Bakhtin insistia que era preciso uma nova ciência, pois defendia que entre os enunciados “existem relações que não podem ser definidas em categorias nem mecânicas nem lingüísticas”, uma vez que os enunciados não têm analogias consigo. (BAKHTIN, 2003, p. 371).

39 Interpretação aqui entendida como reação-resposta aos enunciados que constituem os sujeitos participantes e também como enunciado por meio do qual o pesquisador se encontra com um outro, que se torna também seu interlocutor (AMORIM, 2004a).

Bakhtin nos mostrou que havia um campo inexplorado pela ciência, um universo de conhecimentos a ser construído. Ele nos lançou o desafio de estudar as relações dialógicas que constituem a comunicação discursiva entre sujeitos reais, nas diferentes esferas sociais. Mas como fazê-lo, se o autor não nos apontou uma metodologia?

Assumimos, neste trabalho, que a pesquisa de cunho etnográfico-interpretativista, na interface entre a LA e a Educação, pode viabilizar a construção de um percurso metodológico coerente com as especificidades do “objeto” a ser estudado, apresentadas por Bakhtin, bem como com a complexidade do espaço discursivo da escola.

Considerando que um objeto de pesquisa precisa ter uma materialidade que permita a análise e que o estudo do homem e sua linguagem sempre passa pelo texto na sua condição de enunciado (BAKHTIN, 2003), a opção metodológica deve considerar as peculiaridades dos dados produzidos, recolhidos e analisados. No caso de um processo como o de reestruturação do currículo de uma disciplina em uma determinada escola ou rede de ensino – que envolveu discussões, leitura e elaboração de documentos –, cujo material de análise constituiu-se, portanto, de textos (enunciados) verbais orais e escritos, a pesquisa interpretativa de cunho etnográfico configurou-se como possibilidade metodológica.

Ludke (1998) comenta a mudança de paradigmas na pesquisa em educação, mostrando que há necessidade de um estatuto epistemológico próprio às ciências sociais:

As generalizações extraídas de constatações de pesquisa nunca passam de tentativas, sujeitas a constantes revisões. A validade só pode ter sentido dentro de determinado contexto e as relações de causa e efeito deixaram de ser perseguidas, já que implicam um reducionismo incompatível com a densidade do objeto de estudo da pesquisa em educação. (LUDKE, 1998, p. 26).

Essa preocupação contempla as especificidades do objeto de pesquisa apontadas anteriormente, fundamentadas no pensamento bakhtiniano, pois, segundo Bakhtin (2003, p. 407), “[q]uanto mais profundo o indivíduo, isto é, quanto mais próximo do objeto individual mais inaplicáveis os métodos de generalização; a generalização e a formalização obliteram as fronteiras entre o gênio e a mediocridade”.

Como Bakhtin, ao discutir a pesquisa em Ciências Humanas, não estava pensando particularmente na esfera discursiva escolar40 como locus específico do seu estudo, serão

40 Esfera discursiva escolar é diferente de espaço geográfico da escola. Ela é entendida aqui como esfera de atividade humana, esfera de produção de discurso.

apresentadas a seguir as considerações de autores que se dedicaram às especificidades da pesquisa em educação, tomando a escola como campo de investigação.

André (1997, p. 1-2) historia as origens do movimento de aproximação dos pesquisadores educacionais à etnografia, que tem início no final da década de 1970. A abordagem antropológica surgiu como alternativa às “análises de interação”, orientadas teoricamente pelos princípios da psicologia comportamental, perspectiva na qual os instrumentos primavam pelo grande volume de dados e rigor no tratamento estatístico. Como consequência, a metodologia era supervalorizada e a teoria ficava relegada a segundo plano. Era preciso dispor de uma alternativa para ultrapassar tais limitações, pois o contexto espaçotemporal das interações na sala de aula é “permeado por uma multiplicidade de significados” que fazem parte de um universo cultural que não podia continuar sendo ignorado pelos pesquisadores.

Segundo André (1997, p. 2),

Para entender e descrever esse universo, o pesquisador deve fazer uso da observação participante, que envolve observação, anotações de campo, entrevistas, análises de documentos, fotografias, gravações. Os dados são sempre considerados inacabados. O observador não pretende comprovar teorias nem fazer generalizações estatísticas. O que busca, sim, é compreender e descrever a situação, revelar seus múltiplos significados, deixando que o leitor decida se as interpretações podem ou não ser generalizáveis, com base em sua sustentação teórica e em sua plausibilidade.

Não só a pesquisa com enfoque nas interações na sala de aula, mas também as investigações sobre avaliação curricular se beneficiaram e ao mesmo tempo fortaleceram a aproximação da etnografia com a educação. Aqui, há uma identificação com o objeto de pesquisa específico sobre o qual estamos discorrendo – o discurso dos professores de LP sobre o objeto de ensino de sua disciplina –, por isso vale citar o trabalho de Parlet e Hamilton, comentado por André:

Na proposta desses autores deve ser dada atenção especial ao contexto particular em que se desenvolvem as práticas escolares, devem ser levadas em conta as dimensões sociais, culturais, institucionais que cercam cada programa ou situação investigada e devem ser retratados os pontos de vista dos diferentes grupos envolvidos no programa ou na situação avaliada. (ANDRÉ, 1997, p. 3).

Com o objetivo principal de compreender a realidade escolar, para poder modificá-la, os pesquisadores comentados pela autora recorreram à abordagem etnográfica buscando

“revelar a complexa rede de interações que constitui a experiência escolar diária, mostrar como se estrutura o processo de produção de conhecimento em sala de aula e a inter-relação entre as dimensões cultural, institucional e instrucional da prática pedagógica.” (ANDRÉ, 1997, p. 4). A autora apresenta, dentre as razões para o uso da etnografia no estudo da prática escolar cotidiana, o fato de que

Por meio de técnicas etnográficas de observação participante e de entrevistas intensivas, é possível documentar o não-documentado, isto é, desvelar os encontros e desencontros que permeiam o dia-a-dia da prática escolar, descrever as ações e representações dos seus atores sociais, reconstruir sua linguagem, suas formas de comunicação e os significados que são criados e recriados no cotidiano do seu fazer pedagógico. (ANDRÉ, 1995, p. 41).

Como diz Sarmento (2003, p. 152), a pesquisa etnográfica impõe "uma orientação do olhar investigativo para os símbolos, as interpretações, as crenças e valores que integram a vertente cultural (ou, dado que a cultura não existe no vazio social, talvez seja mais apropriado dizer vertente sociocultural) das dinâmicas da acção que ocorrem nos contextos escolares.".

André (1997) cita algumas contribuições que essa abordagem trouxe para a pesquisa educacional, como o deslocamento do “foco de atenção das partes para o todo e dos elementos isolados para sua inter-relação” e o surgimento das “pesquisas do cotidiano escolar”, decorrentes de um trabalho de campo sistemático e prolongado. Mas, pensando no objeto de investigação da presente pesquisa, consideramos fundamental a seguinte contribuição:

A consideração dos múltiplos significados atribuídos pelos sujeitos às suas ações e interações, princípio fundamental da etnografia, levou os pesquisadores da área da educação a buscarem as representações e as opiniões dos atores escolares, tomando-as como importantes elementos na investigação da prática escolar. (ANDRÉ, 1997, p. 4).

Tura (2003, p. 183) também recupera, mesmo que brevemente, a problemática que desencadeou a emergência de novas metodologias de pesquisa que favoreceram a aproximação dos pesquisadores “dos ambientes escolares, do espaço de interação entre alunos e professores, das condições concretas de realização do ensinar e do aprender.”

A fim de atender à necessidade de novas metodologias para realizar a análise da realidade escolar, a autora defende a observação própria da prática antropológica como procedimento de investigação da pesquisa etnográfica. Para tanto, Tura aponta algumas

vantagens da observação antropológica: “focaliza mais amplamente o contexto sociocultural do ambiente escolar, o que inclui a genealogia dos acontecimentos, articulações com outros ambientes sociais e temporalidades e a análise da construção de subjetividades e identidades nos processos de socialização que ali se realizam.” (TURA, 2003, p. 189).

A autora retoma a noção de “descrição densa”, recomendada por Geertz (1989), para demonstrar a complexidade da observação de cunho antropológico:

Esse é um procedimento que possibilita realizar mais do que a mera descrição de fatos, porque parte do pressuposto de que os acontecimentos do cotidiano se inter-relacionam com estruturas sociais mais amplas e com tradições que foram sendo incorporadas pelo grupo em ritos e costumes, que têm sua gênese em situações distantes do momento em que são vividos. A descrição densa é o esforço de articulação entre fatos, o envolvimento na lógica de sua organização, o decifrar dos aspectos obscuros, o buscar pistas para desvendar certos mistérios. Tudo isso exige que a atividade fundamental do pesquisador seja a interpretação/reinterpretação dos acontecimentos. Esta é a forma de tornar os símbolos inteligíveis. É a maneira de se aprender a hierarquia estratificada de estruturas significantes, que está na base de práticas e costumes sociais. (TURA, 2003, p. 190).

Considerando que o pesquisador é um elemento fundamental na pesquisa etnográfica e que a alteridade é um conceito central na teoria bakhtiniana, serão apresentadas, na seção seguinte, reflexões acerca do papel do pesquisador e da sua relação com os demais participantes da pesquisa.