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O estudo da história das disciplinas escolares amplia as possibilidades de compreensão das finalidades da escola, construídas historicamente em decorrência da relação intrínseca da esfera escolar com outras esferas públicas, como a religiosa e a política.

Chervel (1990) opõe-se à ideia de que os ensinos escolares sejam uma vulgarização ou adaptação das ciências de referência, uma vez que a escola tem finalidades específicas que não correspondem meramente à inserção de alguns “saberes eruditos” específicos de uma dada área de conhecimento no currículo da respectiva disciplina.

83 Para um panorama das discussões sobre a influência do pensamento pós-moderno no discurso contemporâneo sobre currículo, ver SILVA, 1993, 2004; SILVA e MOREIRA, 1995; e MOREIRA, 1997b.

Essa opinião é partilhada por Petitjean84 (1998), ao afirmar que o francês é uma disciplina que trabalha através de relações sociais ideológico-culturais. Admitindo que há motivos outros que interferem na definição dos conteúdos a serem ensinados, o autor opõe-se à noção restrita de transposição didática cunhada por Chevallard (1991) e defende que “reduzir os conteúdos a serem ensinados [...] a vulgarizações e adaptações é omitir o fato de que as finalidades culturais são construções relativamente autônomas em relação aos conhecimentos não escolares e cuja configuração depende das finalidades atribuídas à disciplina de acordo com o nível de ensino (fundamental, médio, superior) nos quais elas operam.” (PETITJEAN, 1998, p. 18).

Chervel (1990, p. 184) amplia o conceito de disciplina, atribuindo às disciplinas escolares um papel importante não só na história do ensino, mas na história cultural. Ele esclarece que “uma disciplina escolar comporta não somente as práticas docentes da aula, mas também as grandes finalidades que presidiram sua constituição e o fenômeno de aculturação de massa que ela determina”. Assim, na opinião do autor, a escola “forma não somente os indivíduos, mas também uma cultura que vem por sua vez penetrar, moldar, modificar a cultura da sociedade global”, papel que só faz sentido nas idades de formação, por isso as disciplinas escolares exercem seu papel de transmissão cultural utilizando procedimentos tipicamente disciplinares na escolaridade das crianças e adolescentes, público cuja frequência à escola é forçada. Isso caracteriza uma diferença entre os níveis de ensino básico e superior, pois neste a frequência é livre e não há necessidade de contemplar o conteúdo cultural e a formação do espírito, uma vez que o foco centra-se nos conteúdos científicos propriamente ditos (CHERVEL, 1990, p. 184-186).

Como a sociedade, a família e a religião delegaram à escola certas tarefas educacionais, dentre elas a da instrução formal, cabe às disciplinas escolares o papel de "colocar um conteúdo de instrução a serviço de uma finalidade educativa" CHERVEL, 1990, p. 188). Assim, as disciplinas escolares constituem apenas uma parte da educação escolar, pois, segundo o autor, “o papel da escola não se limita ao exercício das disciplinas escolares. A educação dada e recebida nos estabelecimentos escolares é, à imagem das finalidades correspondentes, um conjunto complexo que não se reduz aos ensinamentos explícitos e programados” (CHERVEL, 1990, p. 188). O autor postula que a escola tem uma dupla função

84 O autor faz uma leitura do conceito de Transposição Didática, utilizado por Y. Chevallard, e apresenta algumas contribuições que ajudam a compreender o sentido mais amplo do termo, que o leva a endossar a noção de elaboração didática proposta por Halté, como veremos na seção 4.6.

na sociedade, a instrução das crianças e a criação das disciplinas escolares, estas definidas como:

vasto conjunto cultural amplamente original que ela [a escola] secretou ao longo de decênios ou séculos e que funciona como uma mediação posta a serviço da juventude escolar em sua lenta progressão em direção à cultura da sociedade global. No seu esforço secular de aculturação das jovens gerações, a sociedade entrega-lhes uma linguagem de acesso cuja funcionalidade é, em seu princípio, puramente transitória. Mas essa linguagem adquire imediatamente sua autonomia, tornando-se um objeto cultural em si e, apesar de um certo descrédito que se deve ao fato de sua origem escolar, ela consegue contudo se infiltrar subrepticiamente na cultura da sociedade global. (CHERVEL, 1990, p. 200).

O historiador francês aponta os textos oficiais de ensino como fontes para se depreender as finalidades teóricas – ou de objetivo – do ensino de determinada disciplina, entretanto chama a atenção para o fato de que há finalidades reais, distintas das primeiras, que não estão nos documentos oficiais. Para o autor (1990, p. 190), "[a] definição das finalidades reais da escola passa pela resposta à questão 'por que a escola ensina o que ensina?' e não pela questão à qual muito frequentemente nos apegamos: 'que é que a escola deveria ensinar para satisfazer os poderes públicos?'". Assim, tais documentos podem nos levar à história das políticas públicas educacionais, mas não podem ser a fonte única para se chegar às finalidades da realidade pedagógica.

Ordinariamente, as finalidades já vêm determinadas e cabe aos docentes desenvolverem o ensino, muitas vezes desconhecendo essas finalidades, que lhes são ocultadas. Chervel vê nos momentos de crise, quando são impostas finalidades novas à escola, um período privilegiado para análise das relações entre objetivos teóricos e ensinos reais85, uma vez que se dispõe de uma dupla documentação:

De um lado, os novos objetivos impostos pela conjuntura política ou pela renovação do sistema educacional tornam-se objetos de declarações claras e circunstanciadas. De outro lado, cada docente é forçado a se lançar por sua própria conta em caminhos ainda não trilhados, ou a experimentar as soluções que lhe são aconselhadas (CHERVEL, 1990, p. 192).

85 Chervel denomina de finalidades reais aquelas constituídas nas práticas pedagógicas cotidianas, por oposição às finalidades teóricas, elaboradas por outras instâncias fora da escola. Daí a pertinência da investigação, proposta na presente pesquisa, relacionada às reestruturações curriculares desencadeadas na escola, nesse período pós-publicação dos PCN no Brasil.

As finalidades teóricas ou de objetivo, apontadas por Chervel, estão na essência de documentos oficiais como os PCN, e podemos caracterizá-las como “forças centrípetas”, que agem no sentido da unificação do ensino desenvolvido nas escolas de todo o território brasileiro, à semelhança do que diz Bakhtin (1998), quando se refere às forças que atuam sobre a língua. Não obstante, há o que Chervel chama de finalidades reais, que se vão constituindo nas práticas concretas, que podemos caracterizar como “forças centrífugas”, pois se constituem nas “transgressões” ao prescrito e são promovidas no cotidiano das interações escolares.

Chervel destaca a importância de distinguir as finalidades reais das finalidades teóricas, por meio da consciência de que uma determinação oficial visa muito mais a “corrigir um estado de coisas, modificar ou suprimir certas práticas, do que sancionar oficialmente uma realidade.” (CHERVEL, 1990, p. 190). É nesse sentido que o autor sugere que o estudo das finalidades da escola seja feito, simultaneamente, em dois planos, pois, além dos programas oficiais, deve-se considerar a vasta literatura produzida na escola em cada época, investigando, por exemplo, relatórios, projetos, artigos e manuais que orientavam os mestres sobre sua função. Aqui, vale trazer o ensino do francês, apontado por Chervel (1990, p. 216), como exemplo dos processos de mudança pelos quais as disciplinas passam ao longo de sua constituição. O autor informa que nos documentos oficiais que datam de 1833, a disciplina “elementos da língua francesa” restringia-se ao ensino da ortografia e da gramática; já em 1882, a disciplina passa a chamar-se “língua francesa”, compreendendo a leitura e a explicação de textos, a recitação e a redação. Nos quinze anos que antecederam a mudança na regulamentação, é possível que inspetores que trabalhassem com o ensino da redação o fizessem sob a rubrica “gramática” para não ferir a prescrição oficial. O ensino real sobrepõe- se à recomendação oficial, caracterizando uma forma de subversão, apesar da manutenção da terminologia prevista.

A sociedade delega à escola finalidades religiosas, sociopolíticas, de ordem psicológica, culturais e até as mais sutis finalidades de socialização e guarda do indivíduo, as quais devem promover a aculturação conveniente por meio do ensino escolar. Por outro lado, dá liberdade para que o sistema pedagógico regule as modalidades desse ensino, adotando determinados métodos ou abandonando outros e criando novos métodos de ensino. Desse modo, Chervel defende que, na evolução concreta das diferentes disciplinas, em todos os períodos da história da instrução, a instituição dá aos indivíduos uma “meia-liberdade” pedagógica, responsável pelo germe da inovação no trabalho. O autor cita algumas estruturas pedagógicas, como os internatos e pensionatos do século XVIII, “que se desenvolvem ao lado

dos colégios tradicionais” ou alguns “estabelecimentos livres não-católicos do fim do século XIX”, que, como muitos outros exemplos do século XX, dão mais liberdade aos seus mestres do que outras. Fatores como a divisão de uma classe entre vários colegas ou o fato de que nos anos seguintes uma mesma disciplina será ministrada por diferentes mestres podem limitar as possibilidades de liberdade de atuação. Entretanto, Chervel enfatiza que a sala de aula é o lugar específico e o grupo de alunos é o público determinado sobre os quais “a liberdade teórica de criação do mestre se exerce”, portanto o “único limite verdadeiro com o qual se depara a liberdade pedagógica do mestre é o grupo de alunos que ele encontra diante de si.” O autor caracteriza o trabalho docente como “da tensão de um corpo a corpo” com o grupo de alunos, que se constitui como peça fundamental do dispositivo disciplinar, por meio da manifestação de dificuldades encontradas ou pela assunção da palavra no lugar do mestre, ajudando os colegas com dificuldades (CHERVEL, 1998, p. 194-195).

Assumindo que a função das disciplinas escolares é "tornar possível o ensino", o autor destaca que a estabilidade de uma disciplina "se prevalece dos sucessos alcançados na formação dos alunos, assim como de sua eficácia na execução das finalidades impostas." (CHERVEL, 1990, p. 198). Essa posição pode ser confirmada na historiação feita por Soares (2001; 2002) sobre a constituição da disciplina de Língua Portuguesa no Brasil, a ser apresentada na sequência.

Dessa forma, a renovação ou constituição de novas disciplinas está ligada tanto ao objetivo a alcançar quanto ao público escolar a instruir. A mudança pedagógica, para Chervel, está relacionada à cultura e à vida social de seu tempo. Referindo-se ao ensino da ortografia na França, o autor esclarece que as mudanças na sociedade francesa e na juventude explicam modificações na história dessa disciplina:

As formas mesmas do ensino ortográfico gramatical tal como ele era praticado por volta de 1880 seriam atualmente impensáveis. Memorização e recitação de páginas de gramática antes mesmo que elas fossem explicadas; intermináveis análises gramaticais, "conjugações" escritas que não deixavam de lado nenhuma das formas do verbo; ditados pouco compreensíveis, corrigidos pela soletração sistemática de todas as palavras, sem nenhum comentário: nem os alunos nem os mestres suportariam mais obrigações tão entediantes (CHERVEL, 1990, p. 199).

Assim, apesar de afirmar que há uma didática imposta aos professores do exterior, Chervel admite certa liberdade pedagógica que, embora lhes permita intervir nas progressões curriculares de modo limitado, abre uma brecha para a inovação no trabalho.

Ao lado das finalidades, um dos principais componentes de uma disciplina escolar86 são os conteúdos a ensinar, os quais a distinguem das outras modalidades de aprendizagem fora da escola, como nas instituições familiares ou sociais. Para o autor,

todas as disciplinas, ou quase todas, apresentam-se sobre este plano como

corpus de conhecimentos, providos de uma lógica interna, articulados em

torno de alguns temas específicos, organizados em planos sucessivos claramente distintos e desembocando em algumas idéias simples e claras, ou em todo caso encarregadas de esclarecer a solução de problemas mais complexos (CHERVEL, 1990, p. 203, grifo do autor).

Aqui, vale trazer a contribuição de Petitjean sobre as condições internas e externas que justificam a emergência de novos objetos de ensino numa disciplina, ou seja, que fazem com que a disciplina entre em crise. O autor aponta como primeira razão o obsoletismo didático, que configura uma crise interna na disciplina:

A necessidade de atualização surge quando a distância entre os conhecimentos científicos e os conhecimentos ensinados é tão grande que os conhecimentos ensinados parecem errados. Foi assim, por exemplo, que a gramática tradicional foi contestada, nos anos setenta, pela lingüística, que inspirou uma gramática renovada, de ordem frasal primeiramente – sob a pressão dos modelos estruturais, gerativistas e funcionais – e depois textual e discursiva, se referindo às teorias da enunciação, da pragmática e da lingüística textual. (PETITJEAN, 1998, p. 14).

Como segunda razão que leva à renovação dos conhecimentos numa disciplina, o autor indica o fracasso escolar e a responsabilidade social e traz como exemplo a expansão do eixo sociocultural dos escolarizados e a prolongação da escolaridade obrigatória na França, na década de 70. Ele caracteriza como crise externa, essa demanda social que pode ser exterior à escola e fomentar debates públicos, com grande espaço na mídia (PETITJEAN, 1998, p. 15).

Considerando o ponto de vista de Chervel, de que são os conteúdos87 que apontam o

que é ensinável em determinada disciplina para atingir as finalidades propostas ou impostas, passamos a refletir mais especificamente sobre a constituição dos conteúdos de ensino da

86 Além dos conteúdos, “um ensino em exposição”, Chervel (1990, p. 207) apresenta um conjunto de vários constituintes que, combinados em proporções variáveis, constituem a disciplina escolar: “os exercícios, as práticas de incitação e de motivação e um aparelho docimológico [avaliação], os quais, em cada estado da disciplina funcionam evidentemente em estreita colaboração, do mesmo modo que cada um deles está, à sua maneira, em ligação direta com as finalidades”. Esses constituintes serão retomados, nos próximos capítulos, na medida em que aparecerem no discurso dos professores.

87 A exposição pelo professor ou por um manual de um conteúdo de conhecimentos é o que diferencia uma disciplina escolar das outras modalidades não escolares de aprendizagem, exercidas pela família ou pela sociedade. (CHERVEL, 1990, p. 202).

disciplina de LP, no Brasil. Por mais que as reflexões trazidas pelos autores franceses contemplem, de certo modo, a história de todas as disciplinas escolares, nesse momento, consideramos relevante abordar mais especificamente alguns aspectos da constituição do português como disciplina escolar.