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A constituição da família e o retorno de lembranças

Capítulo 4. Leituras de Manuelzão: o envelhecer

4.4 A constituição da família e o retorno de lembranças

Eu o que eu queria? (…) Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo!19

Guimarães Rosa (1965)

A primeira reminiscência de Manuelzão – e todas elas revelarão a necessidade primordial humana de estabelecer pontos balizadores, referenciais que pontuem a existência – é a lembrança da chegada na casa, na Terra do Boi Solto, que ele descreve como “uma casa- rancho” com um pátio nas proximidades onde “homens e animais formavam convivência”. Ali nascera a necessidade de uma família e, desse sentimento de falta, também nascera o impulso de trazer a mãe e a família do filho Adelço, órfão de mãe e nascido “de um curto acaso”, para morarem com ele.

Não é claro para Manuelzão o motivo de ele convidar o filho e as pessoas de sua família: “Por que as trouxera?”. Ele acreditava que finalmente teria ali “termo de destino” e, por isso, se pergunta: “Estivesse, naquela hora, denunciando cabeceira de velhice? Não

19

Em carta a Curt Meyer-Clason (Rosa, 2003, p. 258), Rosa explica o sentido da frase aqui em epígrafe: “Cada um de nós ainda não é o que ‘é’, tem de esforçar-se por chegar a ser.”

pensava”. Embora não tenha se arrependido, Manuelzão começa a perceber a existência de um “não saber” que o move:

Essas coisas ocorrem nuns escuros, é custoso se saber se a gente deve se aprovar ou confessar um arrependimento: nos caroços daquele angu, tudo tão misturado, o ruim e o bom. Mas ele não punha em pé o pesar. Estavam de bem, só que, em qualquer novidade, nesta vida, se carece de esperar o costume, para o homem e para o boi (p. 118).

Seu filho Adelço era de “guardadas palavras e olhares baixos”, tal como o avô. Não se mostrava, “era mesquinho e fornecido maldoso, um homem esperando para ser ruim”. Ao pai, “obedecia soturno”. Manuelzão não queria “detestar o filho”, mas se pergunta: “Seria, porém, aquele, um saído de seu sangue? Se assustava quase, de ter gerado e estar apurando um sujeito assim, desamigo de todos. Sua culpa.” (p. 118).

A ideia de arrependimento, entretanto, suscita-lhe uma imagem curiosa:

Se então, mais valesse o rejeitar outra vez e enxotar para os passados ─ feito a gente está pescando e dá na peneira uma serepente: um cospe um nojo e desiste logo aquilo no movimento das águas, ligeiro, no rio, de donde veio! A vida cobra tudo (p. 118).

Os olhos de Manuelzão veem ali a imagem de uma cobra a ser devolvida às águas. O símbolo da cobra como metáfora do filho é significativo: em contiguidade à frase “a vida cobra tudo”, temos a adversativa: “Mas a mulher do Adelço, Leonísia, era boa, uma sinhá de exata, só senhora”. Assim, se de um lado Adelço não era o filho “esperado”, “fora pescado por acaso”, “era uma cobra”; se Manuelzão não reconhece o filho como seu (lembremos que Adelço não tem sobrenome, ele é “Adelço de Tal” – recusa ao reconhecimento da filiação?); de outro sua presença “corporifica” um encontro amoroso fortuito e sem continuidade do passado. A vida erótica de Manuelzão, que de algum modo estava “represada”, tomada pela vida do trabalho, abre-se novamente: não só a chegada do filho reaviva lembranças desse encontro amoroso, como ele traz consigo Leonísia, sua nora, para quem seus olhos se voltam:

Leonísia era linda sempre, era a bondade formosa. O Adelço merecia uma mulher assim? Seu cismado, soturno caladão, ele encabruava por ela cobiças

de exagero, um amuo de amor; a ela com todas as grandes mãos se agarrava (p. 143).

Leonísia fica sendo “a dona-da-casa”, ocupando, desse modo, o “lugar da mãe” e da esposa. Manuelzão se sente atraído por ela: “Ela era boa, uma sinhá de exata, só senhora. Aquela tinha sinal de um sabido anjo-da-guarda – pelo convívio que ela encorajava, gerência de companhia”. Além de ela ocupar o lugar que “estava vazio”, Manuelzão acredita que seu desejo inconfesso seria endossado por sua falecida mãe:

À mente, a mãe de Manuelzão reconhecia o tamanho da alma de toda pessoa, no disparo de um olhar. Sobre Leonísia, ela redisse: – “Esta procede produzido de si, certa no esquecível e no lembrável...” –; e não dosou o bem- querer, que era para uma neta, para uma filha (p. 136).

Se, aos olhos do pai, o filho era “o contrário da festa”, “obscurecia na gente toda novidade de animação, as influências, toda graça de entusiasmos” (p. 136); se tinha um estatuto de vida semelhante ao seu, se era um “trabalhador na tristeza” como ele, por que haveria de merecer Leonísia? Manuelzão não entende e sente inveja do filho.

Qual é o significado do nome do filho? Além da ausência de sobrenome, Adelço, segundo Machado (2003, p. 171), é “de origem árabe e designa o infiel”. No caso, aquele que traiu o pai para ficar com quem “ocupa o lugar da mãe”. Há, então, dois aspectos a serem observados: o reencontro com o filho traz o movimento da vida erótica, catalizada pela figura da nora, mas também obriga Manuelzão a retomar parte da sua história, forçando-o, por exemplo, a ocupar, mesmo que só referencialmente, o lugar de pai. Se Adelço “não desamarrava” de perto de Leonísia, impedindo o acesso do pai (Manuelzão) à mãe e esposa (Leonísia), vemos Manuelzão enredado no significante “Samarra”, que se constituiu como morada graças ao desejo da mãe.

Essa amarra à figura materna faz entrever os efeitos de uma interdição não pronunciada: o tabu do incesto20. Talvez por isso Manuelzão expresse o desejo de que a nora permanecesse “sempre donzela”, como mostra o trecho seguinte:

20

Vale a pena retomarmos o mito da horda primitiva recriado por Freud em Totem e tabu (1912): Em tempos primitivos havia uma horda chefiada por um pai que retinha a posse sexual das mulheres. Odiando e invejando a onipotência do pai, os filhos uniram-se para matá-lo, permanecendo, entretanto, fiéis ao símbolo do animal totêmico representante desse pai morto. Ninguém mais

[…] Leonísia já devia de estar em cama, junto com o Adelço, só ele tinha o direito de olhar a formosura alegre de Leonísia. Mesmo de pensar, mesmo de reparar no rosto, no descanso de Leonísia. Deus de lei. Maus pensamentos. A Leonísia devia de ter permanecido sempre exata donzela formosa, não se casado com ninguém (p. 147).

Diante da lei paterna (Deus de lei), Manuelzão sente-se culpado pelos desejos amorosos e, interdito pela possível punição de quem a infringe, consegue escapar dos “maus pensamentos”. Noutra ponta, porém, continua atado à figura da mãe: permanece solteiro, não assume a posição de pai nem de patriarca da família e a festa até aqui se configura como mais uma celebração da figura materna.

Manuelzão precisará elaborar as faltas que começa a vislumbrar: a mulher que não tem, a mãe que já morreu, as terras que nunca possuiu, a lembrança do riacho que secou, como veremos em seguida. A dor no pé e o mal-estar são os primeiros sinais de degenerescência da idade e sinalizam o início da sua velhice física. Lembremos que, além desses sinais, Manuelzão vive, subjetivamente, a sensação de ser estrangeiro em seu próprio espaço: a movimentação das mulheres e a impressão de que elas “não o veem” provocam uma ferida narcísica (mais um sinal do envelhecer), pois a chegada delas o faz perder a posição de “objeto de desejo” que seu aparente poder lhe conferia. As referências de sua trajetória deixam temporariamente de existir e a sensação de “estranhamento” retorna.