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Joana e Camilo: portadores de estórias

Capítulo 4. Leituras de Manuelzão: o envelhecer

4.7 Joana e Camilo: portadores de estórias

A mulher tece o enredo que relativiza o mundo “real”, velha função das contadoras, agora renovada. Cleusa Passos (2000)

Se Leonísia ocupa o lugar de um ideal, tendo por modelo a mãe de Manuelzão, a contadora de estórias Joana Xaviel ocupa posição oposta: ela não é “a mulher idealizada”, modelo sertanejo de esposa e mãe, mas o próprio poder da sedução: seduz graças ao poder de provocar o impulso sexual e ao poder de suas narrativas, que suspendem temporariamente as relações entre o sujeito e a lei. Nos dois casos, o efeito produzido em Manuelzão é o de tirar o “controle de si”, “amolecê-lo” e mergulhá-lo no mundo do imaginário e da tentação:

Quando agarrava a falar as estórias, desde o alumeio da lamparina, a gente recebia um desavisado de ilusão, ela se remoçando beleza, aos repentes, um endemômio de jeito por formosura (p. 140).

A luz, tão evidente em situações em que Camilo está presente, aqui tem nova função: mascarar. Joana, dissimulada em seu viver, “se fingia em todo passo, muito mentia, tramava, adulava”. “A mãe de Manuelzão achava que ela tivesse a boca abençoada. Mel, mas mel de marimbondo.” Daí o motivo de suas estórias, carregadas de “amarugem e docice”, causarem ao mesmo tempo atração e repulsa.

Da figura ambígua de Joana, salientamos ainda sua má fama: diziam que “não era querida nas casas”, “que costumava pedir esmola”, “que era mexeriqueira”, “que furtava”, “que causava ruindades” e que teria um caso com o velho Camilo. É uma personagem contrária a todas as figuras sertanejas de mulher, pois tem a coragem de sustentar “negativas”: não é mãe, não é dona de casa, nem tem casa, aliás e vive à deriva “por essas chapadas, por aí, sem dono, em cafuas”. Está à margem, em suma. Embora Manuelzão também revele

restrições ao modo de vida de Joana, ele está agora enredado por suas estórias. Além disso, sua mãe, dona Quilina, também endossava o valor da moça:

Por que havia de ser que logo as pessoas cordatas, tão quietas, como a mãe de Manuelzão ou como o velho Camilo, é que davam de engraçar com gente solta assim, que nem Joana Xaviel? (p. 139).

Noutro momento, o narrador relata: “A mãe de Manuelzão também [a] apreciava. Só pelo desejo dela, foi que se deixou a Joana Xaviel vir, de tempos em tempos, contar”. Mais uma vez, Manuelzão parece ver pelos olhos da mãe.

No sobrenome de Joana vemos, também, outro deslizamento: o eco Xaviel/Manuel insinua, na rede significante, o envolvimento das personagens num desejo inapreensível e pouco verbalizado.

Mediada pela voz do narrador em discurso indireto, Joana relata, após ouvir as quadras populares cantadas por Camilo, um trecho da estória da Donzela Guerreira25. Nesse

momento, como já dissemos, são as mulheres que estão sentadas na cozinha contando estórias e os únicos representantes masculinos são Manuelzão e Camilo, em posições distantes.

Ao narrar uma estória de boi – Destemida e a vaca Cumbuquinha –, a personagem subverte a conhecida estória do fazendeiro rico que confia sua vaca de estimação a um vaqueiro.

A estória da “Destemida” é baseada em tradições orais26. No livro Puras misturas, Sandra Vasconcelos (1997) explora em profundidade as relações entre a estória narrada por Joana e Camilo e as estórias da tradição oral cujo núcleo temático é o boi. Em sua pesquisa, a

25 Em geral, nas histórias de vaqueiros, retrata-se a luta do homem para domar o animal. Segundo Câmara Cascudo (s.d.), há uma série de contos populares, nos quais um vaqueiro mata um boi a pedido de sua mulher. A destemida e a vaca Cumbuquinha, narrada por Joana Xaviel, trata da morte do boi pelo vaqueiro, a pedido da mulher, enquanto a Décima do boi e do cavalo, recitada pelo velho Camilo, também relata a história da captura de um boi por um vaqueiro.

26 Segundo Nascimento (1986, p.195), “os mais antigos versos de nossa poesia popular são justamente aqueles que descrevem cenas e episódios da pecuária. São poemas que cantam a fama do boi que, finalmente dominado e trazido ao curral, só o foi após grande trabalho, depois de reduzir a glória e de humilhar muitos vaqueiros. Nas regiões em que a pecuária foi atividade fundamental, esses poemas foram cantados e recriados, seja pela tradição oral, seja pela tradição escrita: Nordeste, Goiás, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, como indicam as numerosas versões das quais dispomos. Sua recriação e glosa continua na voz dos poetas populares e nas obras de ficção, que lhes ampliam as dimensões, dão nova fabulação, mas conservam o núcleo temático de origem: a cultura pecuária e a vida do vaqueiro”.

autora aponta histórias populares semelhantes – como as do Boi Surubim, Rabicho da Geralda, Vaca do Burel, Boi Espácio, por exemplo –, nas quais o eixo temático fala da luta do boi com um vaqueiro (ou vaqueiros) que ambiciona mostrar sua coragem e habilidade derrubando o animal que, por sua vez, foge e se defende na tentativa de manter-se livre.

Segundo Câmara Cascudo, há uma série de contos populares nos quais um vaqueiro mata um boi a pedido de sua mulher, e que podem ser vistos como vertentes temáticas de onde se origina a Destemida e a vaca Cumbuquinha27. Já a Décima do boi e do cavalo, recitada pelo velho Camilo, relata a estória da captura de um boi mítico por um valente vaqueiro28.

Voltemos à estória: um homem rico havia doado sua maior fazenda a um vaqueiro, para que ele tomasse conta. Pedira também ao vaqueiro que ele cuidasse de uma vaquinha de estimação chamada Cumbuquinha. Entretanto, a mulher desse vaqueiro, chamada A Destemida, exigiu que o marido matasse a vaca para comê-la. A Destemida “tinha o relógio de não ter nenhuma piedade. Não atendia, por mais prazer. O vaqueiro pobre matou a Cumbuquinha... (p. 138)”.

Na versão de Joana Xaviel, o vaqueiro, além de matar a vaca, mente para o patrão, dizendo que o animal caíra de um barranco e deixando-se influenciar por sua mulher, personagem colocada na posição de autora e transgressora. Ela é Destemida; o vaqueiro, seu servo. Ela planeja a morte da vaca, o roubo, o assassinato da mãe do vaqueiro e o incêndio da fazenda.

A narrativa de Joana cria um incômodo na audiência, que, inconformada, deseja outro final:

27 As estórias Boi Cardil, Boi Rabil, Quirino, Vaqueiro do rei e Boi Leição são alguns exemplos. 28 Para Vasconcelos (1997, p.112), afastando-se do tema clássico dos romances do boi, centrado na

façanha de perseguir e prender o animal fujão, a história da Destemida e a vaca Cumbuquinha pode ser agrupada ao outro núcleo de narrativas, de origem muito antiga, cujo paradigma é a Estória do vaqueiro que não mentia, também conhecida como Estória do boi Leição, ou Quirino, Vaqueiro Rei. Seja em sua versão como conto popular, seja como tema do entremeio de Reisado e Bumba- meu-boi, o Vaqueiro que não mentia circulou em diferentes regiões do país e seu motivo central pode ser rastreado até suas origens européias, especialmente peninsulares. De modo geral, o enredo comum às diferentes versões da Estória do vaqueiro que não mentia traz a figura de um fazendeiro que tem um boi de estimação e de um vaqueiro leal e avesso à mentira; um compadre seu vizinho aposta que o vaqueiro pode ceder à mentira; o vizinho do fazendeiro envia a sua filha para seduzir o vaqueiro e fazê-lo matar o boi para comer de sua carne; o vaqueiro deixa-se levar pelos pedidos da mulher e mata o boi; o vaqueiro mente para justificar a morte do boi; não conseguindo manter a mentira, confessa a verdade ao fazendeiro e o seu vizinho perde a aposta. Por fim, o fazendeiro recompensa o vaqueiro, que se casa com a moça.

Todos que ouviam, estranhavam muito: estória desigual das outras, danada de diversa. Mas essa estória estava errada, não era toda! Ah, ela tinha de ter outra parte – faltava a segunda parte? A Joana Xaviel dizia que não, que era assim que sabia, não havia doutra maneira. Mentira dela? A ver que sabia o resto, mas se esquecendo, escondendo (p. 139).

A reação de Joana é desestabilizadora, visto que ela poderia ter sido levada pela postura dos ouvintes a contar a estória tal qual conhecia na tradição. No entanto, ela sustenta a sua posição, não denega o desejo, e reforça sua versão: a mulher consegue matar a vaca, comer a vaca e ainda se sai bem, subvertendo a ordem, a lei. Joana sustenta o que diz e marca seu perfil de pessoa “dura”, “brava”, como relata Manuelzão. Além disso, ao abrir para o ouvinte a possibilidade de “completar a história” a seu modo, fazendo triunfar o mal, o roubo, a morte, abre-lhe também a possibilidade de entrar em contato com as sombras de si mesmo. Reestruturando o conhecido, Joana insere o “diferente”, a “alteridade” que traz a todos estranhamento, desarticula a história velha conhecida, traz o “avesso da vida”, nas palavras de Passos (2000, p. 49), e repete um procedimento de recriação da tradição frequente nas obras do autor29. A autora explica ainda que o desejo de “a Destemida” vai além da carne da Cumbuquinha, mas se desloca para poder e riqueza. Ela recusa a Lei, o mal se instaura, e ela ainda “se livra de qualquer punição, obtendo vantagens, ‘às triunfâncias’” (2000, p. 179).

Tanto Manuelzão, inconformado com a versão de Joana, quanto ela própria, são atravessados pela narrativa sem o saber: Manuelzão não percebe que sua indignação nasce não só por se tratar de um “desvio da lei e da tradição”, mas porque se sente atingido quando vê uma mulher agindo em “nome do desejo” que ele tanto denega; Joana, por sua vez, também não vê que ela mesma, em sua vida marginal, também é “destemida”, também devora estórias sem permissão e as transforma, do mesmo modo que a personagem da estória, que violentamente come a carne da vaca que não lhe pertence.

O que significam tais estórias? Por ora, vale reforçar o “princípio de desmancho e recriação”, apontado por Vasconcelos, que orienta o trabalho de construção narrativa das estórias de Guimarães Rosa e das criadas por suas personagens. Se Leonísia configura a nostalgia e o desejo da mãe perdida, ao mesmo tempo em que enseja ódio e rivalidade com Adelço, Joana parece representar o feminino sedutor com o terrível lado castrador. É um

29

Para aprofundar a questão sobre o desmanche de narrativas populares, o “desenredar”, ver capítulo “No não perdido: entre fadas, donzelas e meretrizes” (Passos, 2000).

elemento de sedução e de violação da ordem: portadora da fala e do falo, portanto. Ela encena o mistério da sexualidade ao mesmo tempo em que dá voz às aflições do anfitrião, marcas do recalcado, que está em busca de si-mesmo. Daí podermos compreender a posição de Manuelzão na cozinha: o enfeitiçamento e a embriaguez da personagem são metonimicamente representados por esse estado de privação da visão.