• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 4. Leituras de Manuelzão: o envelhecer

4.11 Os rios do discurso

Só na foz do rio é que se ouvem os murmúrios de todas as fontes. Guimarães Rosa (2001a)

Ao longo da narrativa, pudemos observar a estreita relação do Velho Camilo com as águas: não são poucos os momentos em que ele é visto carregando água para as mulheres,

servindo-as e colocando-se no papel daquele que rega, que faz brotar. É indicativo, por exemplo, que ao fim de sua narrativa haja lágrimas nos olhos das mulheres. Metonimicamente, poderíamos pensar na religação, via Simbólico, do fluxo do rio.

Durante a narrativa de Camilo, Manuelzão se vê identificado com o grupo, que produz nele sentimentos de pertença e referência. Ele não está mais “longe”, como na procissão, nem “fora”, como durante a estória de Joana. Ao contrário do que ocorre em muitos processos de envelhecimento, a ferida e a carência narcísicas de Manuelzão (o não olhar da mãe, a não posse da família e da terra) vão “cicatrizando” à medida que as estórias lhe permitem articular as pulsões e realinhar a castração simbólica. Diante das “dores no pé”, por exemplo, Manuelzão é obrigado a ouvir e perceber os limites de seu corpo. Tal fato pode tê-lo sensibilizado para outras questões – por exemplo, sua insignificância pessoal diante do fluxo da vida, desestabilizando sua onipotência, figurativizada por sua posição “de cima do cavalo” no início da festa – talvez fazendo nascer uma abertura de comunhão com as narrativas. Em termos psicanalíticos, poderíamos dizer que, depois do esvaziamento libidinal dos investimentos objetais de cunho mais narcísico (a ligação com a mãe, por exemplo), ocorreu um reencaminhamento sublimatório: as forças pulsionais parecem livres para se realocar em direção ao coletivo e à natureza, e para elaborarem de modo mais sereno a aproximação da velhice.

Sob esta ótica, Manuelzão mostra a força do princípio do prazer: a organização da festa e a audição das estórias parecem ser uma maneira de fazer fluir as águas paradas, figurativizadas pelo riachinho que seca e que é a fonte, não só da vida, mas também da memória do povo e das estórias, restituindo-lhe o amor próprio e a autoestima.

As palavras finais da narrativa, carregadas de alegria, reforçam essa idéia: “Cantar e brincar, hoje é festa – dansação. Chega o dia de declarar! A festa é pra se consumir – mas para depois se lembrar.”

Nas palavras de Candido:

Renunciando aos altos poderes que o elevaram por um instante acima da própria estatura, o homem do Sertão se retira na memória e tenta laboriosamente construir a sabedoria sobre a experiência vivida, porfiando, num esforço comovedor, em descobrir a lógica das coisas e dos sentimentos. “E me inventei neste gosto, de especular idéias”. Desliza, então, entre o real e o fantástico, misturados na prodigiosa invenção de Guimarães Rosa como lei da narrativa. E nós podemos ver que o real é ininteligível sem o

fantástico, e que ao mesmo tempo este é o caminho para o real. (Candido, 2000, p. 139).

O erro, a culpa: revivendo conflitos

Reperdida a relembrança, a representação de tudo se desordena: é uma ponte, ponte, – mas que, a certa hora, se acabou, parece’que. Luta-se com memória. Guimarães Rosa (1967c)

Há ainda duas interessantes menções a um possível “erro”, que poderiam ser lidas como “causas” do “rio que seca”, do estancamento das águas. Na primeira citação, o erro parece fazer referência à escolha da Samarra como lugar para Manuelzão se estabelecer:

Todavia, num senão, o situado escolhido não dera ponto. Por tanto, podia merecer nome outro: o de “Seco Riacho”, que o velho Camilo falou. O velho Camilo tivesse ideia para esse falar, era duvidoso; e alguém acusara por ele. Mas Manuelzão sabia, o inventante tinha sido mesmo o Adelço, que censurava, que escarnecia. Por conta de um erro. E de quem tinha sido o erro? Mas que podia acontecer a qualquer um mestre de mais sertão, pessoa perita nas solidões e tudo (p. 114).

Depois, acerca do seu filho Adelço: “Desgosto... Como ter um remédio que curasse um erro, mudasse a natureza das pessoas? (p. 142)”. Ou ainda, quando diz: “Parece que eu vivo, vivo, e estou inocente. Faço e faço, mas não tem outro jeito: não vivo encalcado, parece que estou num erro... Ou que tudo que eu faço é copiado ou fingimento, eu tenho vergonha, depois…” (p. 187).

A que erro Manuelzão se refere? Ao amor dele por Leonísia? Ao fato de ter trazido o casal para morar com ele? Ao fato de ter tido um filho como Adelço, de um caso fortuito? Não podemos precisar, mas diante da presença desse “erro”, motor das angústias do presente, nós, leitores, sentimos ecos da estória de Miguilim, na qual a presença de um erro também parece ser a origem de angústias futuras: “No começo de tudo, tinha um erro – Miguilim conhecia, pouco entendendo” (p. 13).

Vemos aqui a associação entre a intuição da existência de um erro e o sentimento da culpa, reeditando, com outras roupagens, a vivência do Édipo, uma vez que Leonísia está colocada no lugar de mãe e o seu amor é interdito. Os ecos do mito, cujo nome significa “pé inchado”, aparecem reiteradamente nas muitas menções ao machucado no pé de Manuelzão: “estava com um machucão num pé” (p. 114); “Chegado na beirada, Manuelzão entrou, ainda molhou os pés, no fresco lameal” (p. 119); “Manuelzão se esquecia do pé doente” (p. 124); “E Manuelzão, que o acompanhara adentro da casa, alçantes estandartes, de repente sentia a dor de uma ferroada no machucado do pé, esbarrava no instante” (p. 126), “Não embargando que ele Manuelzão fosse acolá adiante, acelerado, nem se importava que o pé doesse, mas devia de vigiar o seguimento de tudo” (p. 132); “o inflamado do pé doía um pouco, nele não esbarrassem –; carecia de estar perto do padre!” (p. 133); “Para respirar mais a solto, e descansar o pé, Manuelzão se afastava um espaço do resto do povo.” (p. 133); “Leonísia prestava gentil a caridade – mesmo com tantos cansaços do dia, ela por suas boas mãos tinha botado água na bacia, tratou do machucado no pé dele Manuelzão, sem o desdém” (p. 136).