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Capítulo 4. Leituras de Manuelzão: o envelhecer

4.5 O desejo em curso

Ser dono definitivo de mim, era o que eu queria, queria. Guimarães Rosa (1965)

A visão da capela e da casa e a chegada das mulheres remetem Manuelzão a outra reminiscência: o riacho seco. Numa noite, um ano e meio antes do momento da narração da lembrança, sem que ninguém esperasse, o riachinho, que corria atrás da casa, secara. A

poderia ocupar o lugar do pai tirânico, assegurando, assim, o vínculo de fraternidade primeiro entre os seres humanos. Nessa narrativa, o desejo de matar o pai significa o desejo de matar a imposição tirânica da realidade (e do outro), da qual o sujeito está excluído. “Ao matar o pai, o sujeito cria condições para existir, mas só pode fazê-lo com a mediação do outro, simbolizado pelo totem: o sujeito só existe porque o pai simbólico (no caso, o totem) existe.” (Mehoudar, 2006).

vivacidade da narração é forte e provoca recordações ainda anteriores. O que tal lembrança sugere?

De acordo com Vasconcelos (1997, p. 31), o episódio do riacho seco antecipa o destino de Manuelzão, pois é a partir dali, da fonte que seca, que ele se perguntará sobre seu viver. Para a autora, o riachinho é símbolo da condição existencial da personagem, que se encaminha para a morte.

De uma perspectiva psicanalítica, entretanto, a experiência do riacho não só figurativiza o percurso da vida da personagem, mas é também ali que se dá a revivescência da experiência de perda, de morte, que será reativada quando Manuelzão se põe a refletir sobre sua velhice e a proximidade de um fim, “espécie de começo de terminar.” A fluidez do riacho foi estancada, assim como a vida de Manuelzão, que agora, na festa, para de fluir para imergir em suas reflexões, mas não podemos deixar de observar que, no momento em que o rio seca, Manuelzão coloca os pés na terra úmida e tenta, em vão, reter a água. Como bem lembrou Lima (2001, p. 51), muito provavelmente a construção da casa acelerou o processo de extinção do riacho. As pegadas de Manuelzão no rio, que desaparecerão agora que está seco, parecem mostrar que ele ali não pode deixar seus pés, assentar sua marca, estabelecer-se definitivamente.

O riacho, reiteradamente mencionado ao longo da narrativa, sugere inúmeras associações. Dentre elas: no início, fluição, som e movimento, como nos movimentos de preparação da festa e daqueles que de algum modo representam vida. Em seguida, silêncio e vazio: “cada um sentiu, de repente, no coração, o estalo do silenciozinho que ele fez, a pontuda falta da toada, do barulhino” e, sugerindo o morto, o deserto e o vazio, “saíram com luz, para espiar o que não havia”.

Como na narrativa da festa, o tempo é indeterminado nas lembranças acerca do riachinho, conforme mostrou Vasconcelos (1997, p. 60) – “dantes”, “no meio duma noite indo para a madrugada”. O riacho é descrito por palavras como “xexé,”21 “regojêio”, “suazinha algazarra”, “fluviol”, “regato”, “riachinho”, “boquinha”, “lagrimal”, “menino sozinho”, “solambendo”, “cocegueando”, termos que expressam intensa carga afetiva e que o personificam. O riacho tinha voz de menino (“suazinha algazarra”, “silenciozinho”, “chio”), a aparência de menino (“menino”, “boquinha”, “lagrimal”) e se metaforiza como símbolo de uma “infância” carregada de sons e algazarra – que, num instante, se calam: “Era como se um

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Em carta a Bizzari (1981, p.31): “Xexe – ouvi, no sertão. Deve ser onomatopaico, mas com sentido afetivo, carinhoso. Exíguo, sim. Ou, mais ou menos: estreito, gentil, garrido. Snelleto?”

menino sozinho tivesse morrido”. A falta que atormenta Manuelzão evoca a morte de um menino. A “morte” de um menino e a “morte” do riacho nos faz lembrar as dores de Miguilim pela perda do menino-irmão Dito: as perdas – os sentimentos de dor e de falta – constituem um mesmo universo para os dois protagonistas.

O fim do fluxo das águas sugere, pois, o parado, o morto, e corresponde ao que Manuelzão sente na festa com o desconforto da espera e do vazio que se espraia. São muitas as menções ao episódio do riacho ao longo da narrativa:

Ou era: assim, às vezes, a gente acordava, no meio da noite, perdido o sono, parecia estar escutando outra vez o riachinho, cantar em grota abaixo, de checheio. Não era. Mas era mais do que quando a gente se alembrava da mãe; porque, para se lembrar do riachinho, não era preciso ocasião, nem motivos, nem conversa. E porque a gente não se esquecia – d’ele sendo como sempre (p. 151).

Onde era que o riachinho estava, agora? A gente queria o ser do riachinho, para água, de verdade; e ele se fora. Desconfiava da morte (p. 152).

Havia de ser abençoado a gente viver ainda muitos anos, residindo, um dia tornar a escutar, ladeira abaixo, o sissipe do riachinho (p. 187).

Curiosamente, porém, se de um lado temos a morte do riacho, de outro temos, no mesmo relato do episódio, o aparecimento da estrela d’alva, conhecida por ser um planeta que pode ser visto tanto pela manhã quanto à tarde. Graças à sua intensa luminosidade, podemos pensar, metaforicamente, em sua capacidade de traspassar a escuridão, abrir luzes ao inconsciente. A estrela d’alva aqui pode significar o anúncio de um novo princípio.

Se o episódio do riacho seco representa o destino de Manuelzão, notamos que o caminho deste não será, como querem muitos comentadores, o de figurativizar o caminho da personagem para a morte. A associação do nome “Manuel Jesus” com a estória bíblica de Cristo desenha uma teia que sugere a ressurreição. Desse modo, a noção de morte que parecia ir se configurando dá espaço para a vida, para o recomeço. A estória do velho Camilo, no final da narrativa, “religará” novamente o rio, conforme veremos. Por ora vale relembrar a menção final:

Sério não sendo: mais só estados passageiros, dúvida de saúde. Por freio em si mesmo. Onde era que o riachinho estava, agora? A gente queria o ser do

riachinho, para água, de verdade; e ele se fora. Desconfiava da morte. Mas ia sair com a boiada (p. 152).

Do episódio do riacho seco, vale destacar ainda o traçado deixado na terra pelo rio:

Restavam as duas filas de pequenas árvores, se trançando por cima da deixa do riacho, formando escuro um tubo fundo, onde as porcas iam parir seus leitões e as guinés punham ovos. Não se podia derrubar aquela linha de mato, porque, um dia quem sabe, o riachinho podia voltar, sua vala ficava à espera, protegida (p. 120).

Mesmo seco, o riacho deixa sua marca, permanece como traço. Trata-se agora não mais de um rio e sim de uma cova onde se guardam ovos, embriões e filhotes, e se faz o desenho de um útero acolhedor, mesmo que vez ou outra usurpado por algum animal carnívoro. O rio seco, que agora serve de útero aos filhotes, figura um período de latência que, depois do ritual da festa, de algum modo frutificará. Este “tubo fundo” que Manuelzão quer preservar mostra a esperança em um futuro “Não se podia derrubar aquela linha de mato, porque, um dia quem sabe, o riachinho podia voltar, sua vala ficava à espera, protegida”. Ao conservar o leito seco, a memória do rio se mantém e metaforiza a esperança da fluição do fio d’água.

Se a casa é contígua ao riachinho (que, depois de seco, se parecerá com “escuro um tubo fundo”, um útero), podemos observar a relação casa-riacho-seco e a mãe-morta, de um lado, e a imagem espelhada de Leonísia, mulher jovem e fértil, bela como uma “fonte d’água”, de outro.

*

Refazendo o caminho narrativo até aqui, vimos que, no começo, após o estranhamento com a chegada das mulheres, a festa funciona como uma passagem: se até agora Manuelzão era senhor de si, o “quase-dono” que nunca para de trabalhar, que ocupa a posição de mando e ordem – “vigiava”, “mestreara”, “comandar”, “o mais forte”, “o governo do mundo dali” –, aos poucos ele deixa seu pensamento mais “solto” ao informe, à desordem, ao imprevisto e ao movimento. Se, no começo, a festa “cansava um pouco. Embaraçava. O povo trançando feito gado em pastos novos”, aos poucos o evento o põe em movimento, suscitando reflexões:

“Será que a vida da gente assenta bem com festa?” (p. 164); “Até para fazer festa, a gente carece de estar acostumado” (p. 146).

Ao mesmo tempo em que a festa o coloca ainda mais em contato com a falta – “a festa como que se desmanchava desde as cabeceiras, alguma coisa, muito miúda, devia de estar faltando” (p. 163) –, ela o faz ver que já não precisava mais ocupar a posição de mando: “Mas, de agora, por tudo, ele não queria mais mandar no governamento dela, sua razão. A lá era ele mordomo de festa?! Nenhum algum. Ora, mais, queria era apreciar aquilo, agora solto livre assim no meio, um, nem não fosse o dono... (p. 153). Ele sente inicialmente que “a música derretia o demorado das realidades” e “amolecia a sustância de um homem para as lidas” (p. 172) e não consegue relaxar completamente: “Mas, ele, Manuelzão, não. Não conseguia” (p. 175). O “amolecimento” só virá com a audição das estórias.