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A morte de Dito e o papel da fantasia

Capítulo 3. Leituras de Miguilim: o adolescer

3.2 A narrativa: marcas de indefinição do narrador, do espaço e do tempo

3.2.6 A morte de Dito e o papel da fantasia

A fantasia é o reino intermediário que se inseriu entre a vida segundo o princípio do prazer e a vida segundo o princípio da realidade. Freud (1900)

Uma das imagens centrais da narrativa, em que podemos observar a passagem da infância para a vida adulta em Miguilim, é a cena da morte de Dito e, em seguida, o enterro das coisas do irmão e a destruição de seus próprios brinquedos.

Nos pensamentos de Miguilim relatados pelo narrador podemos perceber o quão o menino está identificado com o irmão: “Até as coisas que ele pensava, precisava de contar ao Dito, para o Dito reproduzir, com aquela força séria, confirmada, para então ele acreditar mesmo que era verdade. De donde o Dito tirava aquilo?”

Como podemos ver, Dito ocupa o lugar do que sabe e representa, para Miguilim, um ideal. “O que ele tinha pensado, agora, era que devia copiar de ser igual como o Dito. Mas não sabia imitar o Dito, não tinha poder”. Além disso, o irmão é, a seus olhos, o filho “preferido” do pai: “Mas, de noite, em casa, mesmo na frente de Miguilim, Pai disse a Mãe que ele não prestava, que menino bom era o Dito, que Deus tinha levado para si, era muito melhor tivesse levado Miguilim em vez d’o Dito”34.

É na figura do Dito, colocado na posição de objeto de amor, e não na da mãe, que Miguilim se espelha. É na imagem de Dito, remontada à imagem de Expedito, que Miguilim pode ver uma imagem construída: dos fragmentos de si “embebidos” na melancolia da mãe, a imagem de Dito consegue trazer alguma ordem. É ao lado do irmão que o medo da morte, o medo do pai e a tristeza poderão se apaziguar. É o Dito que trará alguma organização interna ao menino.

Se a palavra “Dito” remete à palavra “expedito”, que significa “desembaraçado”, “ativo”, “diligente”, remete também ao santo católico, popularmente considerado o santo das causas justas e urgentes, protetor dos militares, estudantes, jovens e viajantes (Azevedo, 1963). Dito, ao morrer, às vésperas do nascimento de Cristo, remete às características cristãs de santidade e renascimento. Por fim, a palavra “dito”, particípio passado do verbo dizer, faz

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Em Buriti (Rosa, 2006a), Miguel retoma os motivos para a morte do irmão: “Dito, irmãozinho de Miguel, tão menino morto, entendia os cálculos da vida, sem precisar de procura. Por isso morrera? Viver tinha de ser um seguimento muito confuso” (p. 666).

referência ao verbo ditar (“Eu dito”) e remete também à “palavra pronunciada”: nesse caso, o “dito” se refere a algo do Real que pôde ser simbolizado.

Ao longo de sua doença, Miguilim procura acolher o irmão contando estórias: “contava, sem carecer de esforço, estórias compridas, que ninguém nunca tinha sabido, não esbarrava de contar, estava tão alegre nervoso, aquilo para ele era o entendimento maior”.

Nessas estórias, Miguilim reintegra suas vivências. É curioso, por exemplo, que muitos animais presentes no presépio apareçam também ali nas estórias: “boi, leão, elefante, águia, urso, camelo, pavão – toda qualidade de bichos que nem tinha deles ali no Mutúm nem nos Gerais”.

Até a morte de Dito, são frequentes em Miguilim construções fantasmáticas como essas. É por meio das estórias que Miguilim liberta-se da fúria castradora do pai, da dor da morte da cachorra, da possível morte do irmão, da tristeza que vê pelos olhos da mãe, e prioriza, assim, o princípio do prazer sobre o de realidade. Na perspectiva lacaniana, podemos dizer que, diante da impossibilidade de abarcar o Real – o inapreensível, o sem-palavras que Miguilim intui –, ele procura uma significação para essa falta e cria fantasias para preenchê- la.

Se, num primeiro momento, Miguilim ouvia muitas estórias (da Moça e da Bicha- Fera, do Papagaio Dourado que era Príncipe, do Rei dos Peixes, da Gata Borralheira, do Rei do Mato), noutro, passa a criá-las (“uma do Boi que queria ensinar um segredo ao Vaqueiro, outra do Cachorrinho que em casa nenhuma não deixavam que ele morasse, andava de vereda em vereda, pedindo perdão”), mesclando dados de sua experiência: a imagem do cachorrinho “sem casa”, “pedindo perdão”, condensa, de um lado, sua cachorrinha Pingo-de-Ouro, que vaga pelo sertão com os tropeiros; de outro, ele mesmo, que se sente um “estranho” em sua casa – “se achava diferente de todos” –, carregado de uma culpa que não sabe verbalizar, por uma falta que desconhece, mas da qual merece “perdão”.

Como aponta Passarelli (2007), Miguilim percebe intuitivamente a função “protetora” da ficção. Aos poucos, conforme seus sofrimentos se aguçam e o menino entra em contato com a possível morte do irmão, tais construções se enfraquecem: “– Miguilim, e você não contou a estória da Cuca Pingo-de-Ouro… – Mas eu não posso, Dito, mesmo não posso! Eu gosto demais dela, estes dias todos… Como é que podia inventar a estória? Miguilim soluçava”.

Diante do sofrimento da perda, Miguilim está mudo, sem estórias para contar. Futuramente, após a morte do pai e a partida da vó Izidra, “o tempo de doer” parecerá ter passado e o seu gosto pela imagem poética retornará. Sem os dois censores, Miguilim poderia

dar vazão a suas criações. No entanto, não consegue efetivá-la. Há o desejo, mas a experiência e o contato com a angústia deixam marcas. São novos lutos a realizar.

A dor de Miguilim é vivida no próprio corpo: ele quer guardar as roupas e alpercatinhas do outro e adoece da morte do irmão. Seu desejo era que houvesse “algum sinal do Dito morto ainda no Dito vivo, ou do Dito vivo mesmo no Dito morto”. O significante Dito representa para ele um sujeito: “Miguilim tinha sido arrancado de uma porção de coisas, e estava no mesmo lugar”.

Relembrar a mãe falando sobre Dito, enquanto acariciava e lavava seu pé, é uma maneira de tê-lo vivo. Também por esse motivo, gosta de ouvir as pessoas falando do irmão: “E precisava de perguntar a outras pessoas – o que pensavam do Dito, o que achavam dele, de tudo por junto; e de que coisas acontecidas se lembravam mais”. É no ato de rememorar que Miguilim irá recuperando as forças e retornando ao Simbólico: “Só de se lembrar, Miguilim ia levantando a cabeça e respirando mais, já começava a ficar animoso”. Se o Real é ininteligível sem o fantástico, agora podemos confirmar que é pela via da fantasia que o sujeito tece tramas que lhe permitem suportar o Real.

Na tentativa de terem “algum sinal do Dito”, Miguilim e Mãitina se reúnem para enterrar as coisinhas dele e fazem a elaboração do luto. A tentativa de rever o irmão e o confronto com a falta vinculam-se à passagem de Miguilim para a idade adulta. Posteriormente, quando o Pai quebra seus brinquedos e ele próprio termina por destruí-los, teremos outras marcas dessa passagem.

Após a cerimônia, Miguilim deixa de buscar o Dito vivo nas coisas do Dito morto, pois este viverá no Simbólico, nas palavras, e no Imaginário, atuando nas lembranças. A cena se completa quando, finalmente, Papaco-o-Paco grita: “– Dito, Expedito! Dito, Expedito!” (p. 107), momento único em que o papagaio finalmente expressa o nome do irmão.

Por fim, vale reforçar que a morte de Dito foi próxima ao Natal. A palavra Natal traz carga significativa intensa, pois remete à imagem da ressurreição, ao eterno retorno, aos contos de fada. O tema do renascimento parece mostrar a Miguilim que é possível superar as angústias que operam na constituição de todo sujeito.