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Chegada ao Mutúm e o retorno de reminiscências

Capítulo 3. Leituras de Miguilim: o adolescer

3.2 A narrativa: marcas de indefinição do narrador, do espaço e do tempo

3.2.1 Chegada ao Mutúm e o retorno de reminiscências

O homem do Sertão se retira na memória e tenta laboriosamente construir a sabedoria sobre a experiência vivida, porfiando, num esforço comovedor, em descobrir a lógica das coisas e dos sentimentos. Antonio Candido (2000)

A narração começa com a cena em que Miguilim volta com tio Terêz de uma viagem que fez ao Sucurijú para ser crismado. A crisma, sacramento de confirmação do batismo, deve ser realizada por um bispo e é o momento em que se confirma o nome.

Não nos deteremos num aspecto já muito trabalhado pela crítica, que é a importância dos nomes próprios nos textos do autor (Machado, 2003). Entretanto, vale ressaltar a ausência do sobrenome na apresentação de Miguilim. Não há linhagem, um pertencimento direto a um pai, mas em seu nome reverbera o sobrenome da mãe: Cessim. O sufixo –im, que indica diminutivo carregado de afetividade, serve tanto para o feminino quanto para o masculino e expressa algo que nos é familiar. Seria possível estabelecer alguma dúvida quanto a sua paternidade, como querem alguns comentadores? Tal hipótese não se sustenta textualmente. Embora se destaquem as descrições físicas da mãe, em consonância com as suas, não podemos esquecer de que a sensibilidade delicada do menino e sua perspectiva de mundo estão totalmente identificadas com a mãe. Daí ver-se mais parecido com ela.

Chama ainda a atenção o modo pelo qual a doçura do sufixo reforça características da infância, de algo pequenino e frágil, ao mesmo tempo em que ecoam as rimas que reverberam na sucessão de significantes terminados em im: pertim, sim, fim, assim, jardim, mim, Cessim, ruim, Julim, bruxotim, sozim, Caim, direitim, durim e xadrezim, entre muitas outras ocorrências. Tais vocábulos alinhavam e dão o tom sugestivo dessa fase infantil, como acontece com o uso de hipocorísticos e apelidos. O aproveitamento desses efeitos irá adquirindo sentido ao longo da leitura.

Observemos também que, se Miguilim é apresentado como “um Miguilim”, o irmão Dito, que também aparece sem sobrenome, é referido pelo narrador sempre como “o Dito”, aquele que deixou marcas profundas no irmão pelas palavras que disse (vale lembrar que Dito é o único irmão citado por Miguel em Buriti). Tal apresentação revela-nos mais uma marca: o espaço, o tempo e o uso do artigo indefinido dão pistas da opacidade da subjetividade do menino.

Afora as palavras presentes no texto, o nome Miguilim remete a outros significantes.

Miguilim é a forma infantilizada do nome Miguel. Miguilim é o pequeno, o frágil, a nota

musical mi. E remete também a mio, mim, me, eu; ou a miguim, de origem indígena, que quer dizer “príncipe”, mini, pequeno, mirim, miúdo. Miguilim adulto chama-se Miguel, nome de um arcanjo, “aquele que é como Deus”, ou ainda, em hebraico, “ninguém é como Deus”. Como todo anjo, remete a mensageiro (Houaiss, 2001). Se, para Rosa, a escolha do nome é extremamente significativa, para Freud não era diferente: em Totem e tabu (1974), diz: “O nome de um homem é um componente principal de sua personalidade, talvez uma parte de sua alma” (p. 138). “Os povos ‘primitivos, os selvagens modernos e até as civilizações contemporâneas’ não encaram os nomes como algo indiferente e convencional, e sim como significativos e essenciais” (p. 104).

Retomando o fio narrativo, é a família de Miguilim, nuclear e central, que rege esse Mutúm. Curiosamente, sua família é uma das poucas de estrutura estável em Corpo de baile8 e, tal como muitas famílias sertanejas, é regida por um código bastante fechado, que regula as relações de parentesco, a hierarquia patriacal e a religiosidade. As condições de vida se espelham em seus integrantes. Pai, mãe, tio e cinco irmãos aparecem como o núcleo dos acontecimentos, seguidos pela negra Mãitina e pela avó. Descreve-se aqui a posição dos lugares: a família é o centro, assim como, para Freud, é a fonte da estruturação psíquica primordial.

No início, pois, Miguilim viaja com o tio porque não há, na região, um bispo que possa crismá-lo. Com essa cena, ficamos sabendo que tanto a confirmação da entrada de Miguilim no mundo cristão quanto sua primeira saída do Mutúm ocorrem pelas mãos do tio. O caminho, seco, árido e isolado mostra o Mutúm como um lugar distante da cidade. A sensação de sufocamento e de angústia do menino durante o percurso é aliviada pela proteção e cuidado do tio.

Para a psicanálise, a Lei do Pai, exercida pelo pai concreto ou por quem ocupe esse lugar, é fundamental como referência para a internalização de valores, normas e interdições estruturadoras do desenvolvimento psíquico infantil. Bernardo Caz, pai de Miguilim, desde o início, não se coloca nem como referência nem como interlocutor para o filho9. Saltam aos

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Roncari (2001) aponta esse fato como uma exceção no sertão: as adversidades do meio gerador de mobilidade não condiziriam com a estabilidade exigida pela organização familiar.

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O pai é agricultor. Segundo Soares (2002, p. 105), seu nome remete à revolta popular ocorrida em Braga, no século XIX, a “Maria Bernarda”. O termo abreviado, “bernarda”, acabou por estender seu campo semântico, passando a significar revolta popular e desordem em geral (Ferreira, 1986).

olhos a falta de afetividade, o medo, a precariedade de uma relação tão fundante para a entrada do sujeito no mundo da sociedade e da linguagem. Daí a falta de identificação com o pai, que justifica, também, o fato de não se ver “parecido” com ele. Nesse cenário de indeterminação, quais seriam os processos de identificação centrais na construção da subjetividade do menino? Em outras palavras, como acontecem as construções subjetivas que a personagem faz em seu contato com a alteridade?