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Origens: o núcleo familiar, o espaço e o tempo

Capítulo 4. Leituras de Manuelzão: o envelhecer

4.1 Origens: o núcleo familiar, o espaço e o tempo

O núcleo familiar de Manuelzão é restrito: o protagonista, capataz do fazendeiro Federico Freyre, é apresentado como um ser migrante que, como tal, sente-se estranho, exilado, onde quer que vá7. “Pois ele até ali usara um viver sem peque nem pouso.” Até há pouco vivera só, conduzindo o gado, sem se fixar, ainda que “desde o começo Manuelzão conheceu que, para fundar lugar, lhe faltava o necessário de alguma espécie. Sentiu-o, vagamente. Só, solteirão, que ele era.” Há quatro anos vivia na Samarra, trabalhando numa “quase-fazenda”. Para viver com ele, trouxera a mãe, recentemente falecida e ali enterrada, e a família de seu filho Adelço, “natural, nascido de um curto caso”, agora já com 30 anos, casado com a Leonísia e pai de sete filhos.

Do pai, pouco sabemos: pela voz do narrador, trata-se de alguém que foi pobre, imerso no mundo do trabalho, resignado e de poucas palavras:

tinha sido roceiro, pobrezinho, no Mim, na Mata. (...) concordava de ser pobre, instruído nas resignações; ele trabalhava e se divertia olhando só para o chão, em noitinha sentava para fumar um cigarro, na porta da choupana, e cuspia muito. Tinha medo até do Céu. Morreu (p. 129).

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O sentimento de “estranheza” e a culpa pela presença de um erro aparece não só em Miguilim e Manuelzão, mas também em Riobaldo: “Feito meninos. Disso eu fiz um pensamento: que eu era muito diverso deles todos, que sim. Então, eu não era jagunço completo, estava ali no meio executando um erro. Tudo receei. Eles não pensavam” (Rosa, 1965, p.271).

A imagem desse pai é discreta, mas decisiva: é a primeira figura que aparece quando Manuelzão fala da infância.

Além da citação acima, a figura do pai só é lembrada em outros dois momentos: quando Manuelzão deseja o cavour [sobretudo preto] do senhor de Vilamão, cena em que nos deteremos adiante, e quando fala de maneira desgostosa do filho Adelço:

Mas esse Adelço saíra triste ao avô, ao pai dele Manuelzão, que lavrava rude mas só de olhos no chão, debaixo do mando de outros, relambendo sempre seu pedacinho de pobreza, privo de réstia de ambição de vontade. Desgosto... Como ter um remédio que curasse um erro, mudasse a natureza das pessoas? (p. 142).

Adelço, como o avô, é descrito como “criatura de guardadas palavras e olhares baixos”. E assemelha-se a ele também quanto a sua dedicação ao trabalho.

Às entre-vezes, semelhava ela tivesse pena do Adelço, quem sabe por ser trabalhador na tristeza. Todo moço, o Adelço condizia qualquer obrigação, na coragem acostumada (p. 134).

A mãe, mesmo falecida, se fará presença forte na vida de Manuelzão. É dela que nasce o desejo de construir a capela, na qual a celebração se inicia. Se o pai tinha “medo até do céu”, “trabalhava e se divertia olhando para o chão”, a mãe é apresentada como “senhora, enterrada lá no alto pegado à capelinha – mas a alma dela, seu entender de tudo, parava no céu”.

Não são mencionados irmãos nem outros parentes. Promitivo, rapaz de 18 anos e irmão de Leonísia, também vivia com a família e sempre acompanhava Manuelzão: “Alegre, para alegrar, mesmo pouco ajudando” (p. 164).

“IA HAVER A FESTA”8 é a frase que, grafada em caixa alta, inicia o conto. Assim como em Miguilim, a estória é narrada “num tempo sem tempo”, indeterminado, vago. O uso do futuro do pretérito reforça a ideia de algo que está “por vir” e não desempenha uma função referencial.9 A festa é contada por um narrador onisciente que, assim como em Miguilim, narra pelos olhos de Manuelzão10. De modo semelhante, o narrador também aproxima aqui o leitor dos olhos da personagem por meio do uso reiterado da expressão “a gente”: “Mesmo enquanto se festava, a gente carecia de sofrer”; “Mas a gente se afastava dali, os pastos mais de perto estavam cheios de reses”, “As estórias reluziam às vezes um simples bonito, principalmente as antigas, as já sabidas, das que a gente tem em saudades, até”.

O tempo da narrativa, além de impreciso, é marcado pelo “tempo subjetivo” da vivência interior de Manuelzão, expresso em reminiscências, pensamentos e desejos que emergem ao longo da festa. Do tempo cronológico, sabemos somente que entre a preparação, a festa e o seu fim passam-se três dias. Além disso, sabemos que a festa ocorria no mês de maio, mês das noivas e das flores, pois “agora em maio era quadra de se abrirem, o rosado e o branco, por toda beira de estrada” (p. 121). Maio tinha sido também o mês em que sentara pouso na Samarra: “Chegaram, em mês de maio, acharam, na barriga serrã, o sítio apropriado, e assentaram a sede” (p. 116). A mesma estação do ano é citada uma vez mais em justificativa para as aflições da personagem: “Aquele estado de noite de meio maio, agradável friazinha, e sufocava feito o ar antes de trovoadas, pêso pondo” (p. 188).

Assim como o tempo é vago, o espaço também se desenha pouco nítido, embora seja menos indeterminado que o Mutúm: “Naquele lugar – nem fazenda, só um reposto, um

8 Não cabe aqui explicitar os sentidos da festa. Vale apenas constatar que se trata de uma celebração que implica a interrupção da vida cotidiana (Huizinga, 2004), permitindo assim que o tempo subjetivo e o desejo aflorem. A presença de uma “festa” é recorrente em outros escritos do autor. como em A volta do marido pródigo (2001b), A hora e a vez de Augusto Matraga (2001b), A estória de Lélio e Lina (2006), entre outros.

9 A imprecisão na maneira de delimitar o tempo da narrativa parece ser um recurso importante para o autor, em sua tentativa de libertar o homem “do peso da temporalidade”. Em entrevista ao crítico alemão Günter Lorenz, Guimarães Rosa diz: “Você, meu caro Lorenz, em sua crítica ao meu livro, escreveu uma frase que me causou mais alegria que tudo quanto já se disse a meu respeito. Conforme o sentido, dizia que em Grande sertão eu havia liberado a vida, o homem, von der Last der Zeitlichkeit brefreit [Liberto do peso da temporalidade]. É exatamente isso que eu queria conseguir. Queria libertar o homem desse peso, devolver-lhe a vida em sua forma original. Legítima literatura deve ser vida” (Lorenz, 1983, p. 84).

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Para análise minuciosa sobre a construção da figura do narrador, sugerimos a leitura de Um tema em três tempos de Tieko Y. Miyazaki (1996). Nesse texto, a autora mostra que é no jogo entre narrador em terceira pessoa e narração em discurso indireto livre de Manuelzão que nós, leitores, teremos a impressão dicotômica da existência de duas vozes: de um lado, vivemos com Manuelzão; de outro, o vemos vivendo.

currais-de-gado, pobre e novo ali entre o Rio e a Serra-dos-Gerais, onde o cheiro dos bois apenas começava a corrigir o ar áspero das ervas e árvores do campo-cerrado, e, nos matos, manhã e noite, os grandes macacos roncavam como engenho-de-pau moendo” (p. 111). Por ora, sabemos que tal indefinição, ainda que bem menos acentuada que em Miguilim, pode ter um papel: a retomada da estrutura do conto de fadas, repetida também no final da estória, conforme veremos.

Para a delimitação do espaço, chamam a atenção expressões como “nem fazenda”, “só reposto”, “pobre”, um “currais-de-gado”, sugerindo um lugar “desqualificado” para uma festa. Nas descrições que seguem, a construção das frases nos faz compartilhar do “pouco” poder daquela gente – para quem o espaço, mesmo insuficiente, era razoável para a comemoração:

Mas para os poucos moradores, e assim para a gente de mais longe ao redor, vivente nas veredas e chapadas, seria bem uma festa. Na Samarra (p. 111).

A expressão “Na samarra”, separada como está pela pontuação, sugere não só uma posição de destaque, mas também de isolamento e solidão. Mas o espaço, configurado como o espaço do “nem”, do “só” e do “pobre”, um “curral de gado”, será enriquecido graças ao trabalho da memória de Manuelzão11.

11 Para a crítica que se atém à discussão sobre os aspectos regionalistas da obra de Guimarães Rosa, a imprecisão do espaço pode suscitar outros apontamentos, como propõe Adolfo Casais Monteiro (1958, p.3): “Desde o momento que a localização se torna secundária, avultam valores gerais, e em vez de pitoresco passa a haver autenticidade humana, parece-me absurda a designação, se com ela se pretende dizer que o autor exprime o caráter de uma região, pois é sempre necessário que isso aconteça: os homens vivem “nalgum” lugar, “nalgum” meio; nenhum vive sem levar consigo essa casca, e pintar situações humanas “no ar” é de todo incompatível com a expressão romanesca [...]. Desde que o humano nos faz esquecer o pitoresco, não há mais que falar em regionalismo. É o que sucede com Guimarães Rosa”.

Embora já muito comentada pelos críticos, é preciso lembrar ainda que a composição do espaço da narrativa já estava prefigurada em muitos dos diários de viagem do autor. Segundo Leonel (1985, p. 51): “O enredo, as personagens, sua fala, seus costumes, o local e a época em que se dão os fatos narrados em ‘Uma estória de amor’ saíram de A Boiada. Em relação às demais novelas e sobretudo a ‘Buriti’, pode-se provar que as paisagens em determinadas quadras do ano, certos hábitos do sertanejo e dos animais já estavam registrados em A Boiada e na ‘Grande excursão a Minas’”.

O homem e o boi

Eu só queria era penetrar na alma de um bovino! Guimarães Rosa (nas palavras do vaqueiro Mariano)

Nas anotações registradas pelo autor nas cadernetas de viagem pelo sertão de Minas Gerais (1952)12, o que mais chama a atenção é que boa parte delas diz respeito a animais, em especial à figura do boi.13 E, aqui, é necessário, para melhor compreendermos o modo de pensar do protagonista, ressaltar a importância da pecuária para o sertão e os vínculos profundos que, nesse espaço, se estabelecem entre os homens e os animais. Segundo Galvão (1972, p. 33), “a percepção dos seres naturais é parte integrante da vida, como fonte de informação, como fruir de companhia, como garantia de sobrevivência.”14 Além disso, sabemos do interesse do autor em entender a complexa estrutura mental dos vaqueiros. Nesse sentido, o boi é o traço distintivo, principal via de acesso para adentrar na visão desses homens. É com este animal que se trava não só o trabalho diário, mas o enfrentamento das forças da natureza: a maior façanha para o homem sertanejo é enfrentar o “touro bravio, a fera, a potência selvagem e hostil” (Martins Costa, 2008, p. 322).

Talvez por isso, pela extrema “simbiose” homem/natureza, o espaço da festa desenha- se como o espaço do “curral do gado”. Não são poucos os momentos em que o narrador aproxima o comportamento dos convivas ao comportamento de uma boiada:

Gente sem desordem, capazes de muito tempo calados, mesmo não tinham viso para as surpresas. Apartavam-se em grupos. Mas se reconheciam, se

12 Lidas pela pesquisadora quando em visita à exposição deste material realizada em 2007 no IEB, USP.

13 A importância da fauna para o homem sertanejo já foi bastante estudada por Antonio Candido em O

homem dos avessos (2000) e por Walnice Nogueira Galvão em As formas do falso (1972).

14 Na labuta diária, o vaqueiro adquire a capacidade de ler o comportamento dos bois. O modo mais evidente de se observar o diálogo entre eles é através do aboio, que, segundo Rosa (2001a, p.174), é um “vibrado, ondeado, lenga-longo bubúlcito, entremeando-se de repentinos chamados de garganta, que falam ao bovino como interjeição direta, ou espiralando em falsete, com plangência mourisca, melismas recurrentes e sentido totêmico de invocação”. Se vaqueiro e bois não estiverem sintonizados, explica o autor, corre-se o risco da boiada empacar extenuada ou de haver um “estouro de boiada”, um desabalo. Além disso, o contato corpo a corpo do homem com o animal cria uma imagem fusionada: cavalo e cavaleiro podem mostrar-se “um”, marca de completa identidade: “De um só couro são as rédeas, os homens, as bardas, as roupas e os animais – como num epigrama” (Rosa, 2001a, p.177).

aceitando sem estranhice, feito diversos gados, quando encurralados de repente juntos (p. 123).

O povo trançando, feito gado em pastos novos (p. 162).

Ou, ainda, quando se refere às mulheres para o “consumo do corpo”: “eram gado sem marca” (p. 145).

Não cabe desenvolver aqui toda a simbologia desse animal na estruturação psíquica do homem sertanejo, mas é importante notar que, para Manuelzão, o simples cheiro do boi comece a “corrigir o ar áspero das ervas e árvores do campo-cerrado” (p. 111), ou seja, amansa e torna suave o ato de respirar, de viver. Fiquemos atentos também ao fato de que serão as estórias de bois, contadas por Joana Xaviel e Camilo, que funcionarão como pontes importantes na elaboração do sentido da vida para Manuelzão. O embate homens/bois figurativiza um dos pilares da problemática humana estudada pela psicanálise: na eterna luta do homem “contra” seus impulsos, o boi poderia representar o que há de inato, instintivo no humano15.