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Capítulo 4. Leituras de Manuelzão: o envelhecer

4.8 O desejo na linguagem

Pois, minhamente: o mundo era grande. Mas tudo ainda era muito maior quando a gente ouvia contada, a narração dos outros, de volta das viagens. Guimarães Rosa (1964)

Enquanto ouve as estórias, Manuelzão pensa sobre sua vida e reelabora, sem saber, seus fantasmas :

Quieto, devia de aproveitar para repensar mais os arranjos, escogitando meios. (p. 137). […] Se furtivava o sono, e no lugar dele manavam as negaças de voz daquela mulher Joana Xaviel, o urdume das estórias. As estórias – tinham amarugem e docice. A gente escutava, se esquecia de coisas que não sabia. (p. 138).

Manuelzão está insone, deitado (para que seu “machucado melhorasse”?) próximo à parede que o separa da cozinha e de onde pode ouvir as estórias de Joana. Não é curioso que Manuelzão se coloque “fora do campo do olhar” da narradora e apure os ouvidos? A cena que se reproduz aqui não evocaria a cena emblemática descrita pela psicanálise, em que o filho, insone, tenta ouvir o que se passa no quarto dos pais? O que Manuelzão quer ouvir sem ser visto? Parece que assim, longe do olhar de todos, ele se coloca longe das amarras que o encantamento de Joana lhe traz. Fato é que se deixa levar e tecer por devaneios, remetendo- nos uma vez mais aos dizeres da epígrafe (“o tear quando pega a tecer, vai até ao amanhecer…), ao já conhecido poder curativo das estórias (“Minha cabeça tá doendo, meu corpo doença tem. Quem curar minha cabeça cura meu corpo também…”), fazendo o leitor se lembrar dos poderes curativos das palavras de seu Aristeu, em Campo geral. Vale notar que Joana foi associada ao mel por dona Quilina, e seu Aristeu é descrito como “protetor das

colméias de abelhas e benfazejo curador de doenças” (Rosa, 1981, p. 39). A doçura parece ser o adjetivo que aproxima as duas personagens, embora o mel de Joana seja “de marimbondo”30.

“Quanto mais o ouvinte esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido”, escreve Walter Benjamin (1994) em seu famoso texto “O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, em que discute a questão da perda da experiência na modernidade e reflete sobre a relação dos sujeitos com o tempo, especialmente vinculada às formas históricas do trabalho. Para Benjamin, a transmissão da experiência nas formas precapitalistas de produção se dava em cenas semelhantes às que presenciamos durante a festa: um grupo reunido em torno de um narrador, cada um participando como um elo na corrente de transmissão, com modificações aqui e ali no conteúdo narrado. Segundo Benjamin, cada narrador pode deixar ali sua marca, “como a mão do oleiro na argila do vaso” (1994, p. 205). O autor relaciona o papel das narrativas à fruição de um tempo longo, distendido, lento e à transmissão da experiência que foi incorporada. Manuelzão, até o momento da festa, vivia tomado pelo fazer e pelas necessidades do corpo. A vida do fazer inibe a rememoração do passado, já que ele não é útil à ação imediata, e Manuelzão permitia- se apenas uma dimensão empobrecida da vida, “na labuta do diário se cansavam, sem tempo nenhum para miudezas (p. 121).

Se até então Manuelzão vivia assoberbado, tomado pela experiência de um tempo regido pelo fazer, “A gente mesmo, na estrada, não acostuma com as coisas, não dá tempo” (p. 131), o momento de narração das estórias configura-se como esse momento de repouso. Para Walter Benjamin, a experiência é incompatível com a sobrecarga de solicitações que ocupam a consciência.

Onde há experiência, no sentido estrito do termo, entram em conjunção, na memória, certos conteúdos do passado individual com outros do passado coletivo. Os cultos, com seus cerimoniais, suas festas, [...] produziam reiteradamente a fusão desses dois elementos na memória (p. 107).

Na linha de pensamento benjaminiamo, podemos dizer que o estado de repouso em que se encontram todos os ouvintes da festa e, em especial, Manuelzão, é condição para a

30

O mel é alimento e bebida ao mesmo tempo: é sinal de riqueza e doçura, mas se opõe ao amargor do fel. Metaforicamente, poderíamos pensar no mel como o resultado de um processo de elaboração.

irrupção de reminiscências e para a invasão involuntária da memória na consciência – que difere da pura rememoração, que é um ato mental, voluntário, de busca de lembranças (Kehl, 2009).

Desse modo, além do poder curativo, as narrativas propiciarão a Manuelzão o retorno das reminiscências, dos devaneios, a despeito de sua vontade. Segundo Vasconcelos (1997, p. 123),

a narrativa de Joana serve, portanto, de instrumento para uma espécie de tomada de consciência de Manuelzão das condições concretas de sua existência e de sua real situação de homem pobre e só. No processo de revisão de sua vida, o vaqueiro capta o sinal de que este mundo desconjuntado de que trata a história não é muito diferente de seu próprio mundo que, construído a duras penas e à custa de muito trabalho, está permanentemente ameaçado de ruir.

De fato, se víssemos apenas o modo pelo qual Manuelzão se considera parecido com o Velho Camilo, poderíamos pensar, com Vasconcelos, que ele adquire uma consciência maior da sua condição social:

A ver, ele, Manuelzão, era somenos. Possuía umas dez-e-dez vacas, uns animais de montar, uns arreios. Possuía nada. Assentasse de sair dali, com o seu, e descia as serras da miséria. Quisesse guardar as rêses, em que pasto que pôr? E, quisesse adquirir, longe, um punhadinho de alqueires, então tinha de vender primeiro as vacas para o dinheiro de comprar. Possuía? Os cotovelos! Era mesmo quase igual com o velho Camilo (p. 187).

Entretanto, a chegada do velho Camilo faz com que Manuelzão mude o seu modo de ver a vida e a importância que atribui aos velhos: agora, não só eles tinham algo em comum na pobreza, mas Manuelzão reconhecia em Camilo a sabedoria do contador de estórias e descobria em si mesmo um outro saber. Da vida nômade de boiadeiro, a parada para a festa e o machucado no pé inauguram a possibilidade de ele vislumbrar um futuro: “Somos que vamos”, diz31.

31

Discordamos de Deise Dantas Lima (2001, p. 41) quando não vê, para Manuelzão, essa possibilidade de futuro. Segundo a autora, “Manuelzão personifica tanto a sabedoria típica da