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A imagem de si, a constatação da falta e o desejo da mãe

Capítulo 4. Leituras de Manuelzão: o envelhecer

4.3 A imagem de si, a constatação da falta e o desejo da mãe

quem mói no asp’ro, não fantasêia Guimarães Rosa (1965)

Embora haja o desejo de “inscrever seu nome” no lugar, a força que o move é a ânsia de concretizar o desejo da mãe: “Manuelzão queria uma festa forte, a primeira missa. […] O principal da ideia da capelinha então tinha sido de sua mãe. Mas ele cumprira. E ele inventara a festa, depois” (p. 116).

O fluxo normal de sua vida de vaqueiro é, então, interrompido e se iniciam os preparativos. Manuelzão começa a se sentir incomodado com o modo invasivo de as mulheres virem se achegando, “surgidas quase de repente de toda parte, muitas ele nem conhecia”, sentindo que poderia ser “posto de lado”. Via-se “mestre” entre os homens, nas tarefas de “roçar”, “torar” e “carrear o materiame, fincar os esteios, levantar os oitões, e terminar”, mas as mulheres lhe apontavam o que faltava, em voz de “comandar mil bois”: “Falta uma pia de água benta…”.

Do mesmo modo, Manuelzão estranha “as prendas que o povo aportava, para oferecerem à sua Nossa-Senhora da capela. Eles eram espantantes”. Refletindo sobre o significado das oferendas, ele desconfia da intenção dos presentes, ainda que, não obstante, sua animação “o levava, crescente”.

Dos presentes, observamos tratar-se de objetos desvinculados de sua história, que, no entanto, serão colocados em leilão a fim de arrecadar dinheiro para comprar o sino da capela, adquirindo um novo valor “fora de sua serventia trivial”. Como metonímias, os cacos desordenados de várias histórias pessoais, adquirem um novo sentido ao comporem uma história coletiva.

Chega também o padre, a cavalo, de Pirapora. Era um padre estrangeiro, frei Petroaldo, “alimpado e louro, em polâinas e culotes debaixo do guarda-pó, com o cálice e os paramentos nos alforges”. A imagem do padre é curiosa:

não apresentava um encoberto de ser, nenhum ar de prestígios e penitências, que a gente estremecesse. Era um padre com sanguínea saúde, diabo de moço, muito prático em todos os atos, de certo já acostumado com essas andadas no sertão, e que tudo fazia como por firme ofício ─ somente indagava quantas crianças havia de ter ali, de bom batizar, quantos homens e mulheres morando em par, para irem logo no sacramento ─ e diligenciava de não perder tempo nenhum; o mais seria depois. Para ele o povo minúcio olhava; constantemente estavam se lembrando de Deus (p. 124).

Trata-se de um padre sem prestígio, sem outra significação além da que todos podem ver: “não há o encoberto”. Com o representante da igreja, portanto, Manuelzão não poderá contar como Outro do seu diálogo interior.

Pela voz do narrador ficamos sabendo que Manuelzão “nunca dera uma festa”. Ele “nunca tinha parado”, “não tinha descansado os gênios, seguira um movimento só”. Agora, entretanto, ele espera “alguma coisa”. A chegada das mulheres, que lhe apontam “a falta”, provoca muita ansiedade: até o momento, da altura de seu cavalo, estivera “ali à porta”, “público como uma árvore, em sua definitiva ostentação”. Essa “ostentação” ou “orgulho de ser” ficara marcada também pelo fato de ele ocupar o lugar de Federico Freyre, o dono legítimo das terras (que todavia não aparece): “Manuelzão valia como único dono visível, ali o respeitavam”. Seu desejo verbalizado “na boa mira de um sonho consentido” era ver-se “homem em poder e rico, com suas apanhadas posses”.

A imagem que Manuelzão tem de si nesse momento é “agigantada” e ele parece estar de “posse” do seu desejo, pois ali, pela primeira vez, “todos enchiam a boca com seu nome: de Manuelzão. Sabiam dele”. Entretanto, trata-se de uma imagem ilusória, pois ele está ciente da sua situação de interino. A mãe, contudo, “pensara até que ele fosse dono todo”. Manuel, mesmo sabendo do engodo de um viver que não é o seu, prefere “ver” a mãe feliz. De certo modo, ele próprio deixa-se levar pela ilusão, pelo menos durante a preparação da festa: “Por tudo, mesmo sem precisão, ele não saía de cima do cavalo” (p. 114).

Nesse momento, portanto, além de estar realizando o desejo da mãe, Manuelzão está também se identificando com o dono das terras, Federico Freyre, que, mesmo ausente (ele se faz lembrar apenas através da carta, um discurso), seu fantasma institui a lei: é de Freyre que emanam as ordens que o empregado Manuelzão deve seguir, assim como todos os convidados sob sua “tutela”. Poderíamos dizer que aqui a imagem de Federico corporifica a lei, a metáfora paterna, o “pai” da horda descrito por Freud. Suas palavras concretizam a sua presença através de um nome (a carta) e nos situam em pleno terreno do Simbólico, da pura virtualidade.

Que outros significados, além da ânsia de realizar o desejo da mãe e de ter seu nome reconhecido pela comunidade, podem ser atribuídos ao “desejo de festa”? Manuelzão, que agora estava “perto de sessenta anos” e “alcançara aquele patamar meio confortado”, percebe- se numa “espécie de começo de metade de terminar” e depreendemos aqui o motivo que flui da ânsia aparente de realizar o desejo da mãe: ele tem consciência da passagem do tempo e procura “o encoberto do ser” que, como veremos, irá vislumbrar ao identificar-se com as figuras de Camilo e Urugem.

A dor de viver (o sentimento de falta) aparece aqui não só como a dor da

pobreza/carência, que não sabe bem nomear (“desde o começo Manuelzão conheceu que para

fundar lugar, lhe faltava o necessário de alguma espécie. Sentiu-o vagamente”.), mas igualmente a dor da falta de reconhecimento, a falta do olhar do outro. Para não falar que o reconhecimento de sua debilidade física também contribui para a “desintegração”, ainda que passageira, da imagem de si mesmo:

De todo não queria parar, não quereria suspeitar em sua natureza própria um anúncio de desando, o desmancho, no ferro do Corpo (p. 120).

A festa parece assinalar uma parada no fluxo da vida cotidiana e instaura um momento de “reavaliação”, um caminho para a elaboração interior. O “clima opressivo” que perturba

Manuelzão durante a preparação ilustra o incômodo que Antonio Candido (2000, p. 132) menciona fazer parte de muitos ritos de passagem. Para Candido, tal expectativa antecede o ingresso numa nova ordem, o advento de uma transformação, e ele nos lembra que muitos ritos de passagem comportam a atribuição de um nome (o batismo e a crisma, por exemplo). Temos aqui, pois, um paralelo curioso: Miguilim “confirma” seu nome depois da crisma; Manuelzão, depois da missa de fundação da Samarra. A festa, então, funciona como ritual para a entrada em nova fase.

Começamos assim a penetrar no mundo dos valores do vaqueiro Manuelzão, para quem o trabalho é imperativo. Talvez por isso, desfrutar a festa, índice de prazer, causa-lhe tanto desconforto. Por ora, no entanto, somos levados a suspender a indagação: De que modo ele trabalha o princípio de realidade e o princípio do prazer, conflitos tão estudados por Freud? Diante de tais forças, por que Manuelzão se vê como um estranho?