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Capítulo 3. Leituras de Miguilim: o adolescer

3.1.1 Brinquedos e brincadeiras

Sempre que estiver em dúvida, jogue o sentido da frase para cima, o mais alto possível. Quase em cada frase o ‘sovrassenso’ é avante – solução poética ou metafísica. O terra-a-terra serve só como pretexto. Guimarães Rosa (2003)

Mencionadas as condições socioeconômicas da personagem, passemos para as marcas da infância nas atividades que Miguilim realiza em seu cotidiano. Não esqueçamos que, na configuração do sujeito, os processos de desenvolvimento e transformação do aparelho psíquico operam na interface entre a cultura e as exigências pulsionais do menino. A intenção aqui é delinear o modo pelo qual brinquedos e brincadeiras, tão importantes para a constituição da subjetividade da criança, fazem parte de sua vida.

Embora no dia-a-dia Miguilim e os irmãos realizem várias atividades conjuntas com a família, “cada um lidando em suas miúdas obrigações, no usozinho” (as crianças ajudam debulhando milho, recolhendo gravetos para o fogo, acompanhando vaqueiros no pasto), é a existência lúdica que prepondera: os elementos mais presentes na narrativa são os brinquedos construídos a partir de materiais fornecidos pela natureza e as brincadeiras associadas à interação com os animais da fauna local (as crianças brincam com os cachorros, pegam vagalumes, divertem-se com os animais no pasto etc.). Miguilim, por exemplo, gostava de observar o caminho das formigas2 e “via as formiguinhas entrando e saindo e trançando, os caramujinhos rodeando as folhas, no sol e na sombra”. Com o irmão Dito, brincava de “derrubar, acertando com uma ferradura velha, de distância” e construía brinquedos: um brinquedo de rodinha-d’água, alçapões de pegar passarinhos, coisas guardadas: “os tentos de olho-de-boi e maria-preta, a pedra de cristal preto, uma carretilha de cisterna, um besouro verde com chifres, outro grande, dourado, uma folha de mica tigrada, a garrafinha vazia, o couro de cobra-pinima, a caixinha de madeira de cedro, a tesourinha quebrada, os carretéis, a caixa de papelão, os barbantes, o pedaço de chumbo, e outras coisas, que nem quis espiar” (p. 98).

Outras atividades lúdicas também podem ser elencadas: Chica brinca com bonecas fabricadas com palha de milho: “vinha passando, com a boneca – nem era boneca, era uma mandioquinha enrolada nos trapos, dizia que era filhinha dela, punha até nome, abraçava, beijava, dava de mamar”; Dito constrói seu brinquedo: “O Dito, por uma aguinha branca como nem que ele não se importava. Saiu brincando de carrinho-de-boi, com os sabucos. Um sabuco roxo era boi roxo, outros o Dito pedia à Rosa para no fogo tostar, viraram sendo boizinhos amarelos, pretos, pintados de preto-e-branco. Era o brinquedo mais bonito de todos.”; os meninos brincam com cavalinho de pau e pega-pega: “Tomezinho e o Dito corriam, no pátio, cada um com uma vara de pau, eram cavalinhos que tinham até nomes dados.”

Há brincadeiras de roda, como as sugeridas por Chica, e, apesar do meio essencialmente ágrafo, Miguilim entra em contato com estórias da literatura infantil: além de João e Maria, Miguilim ouve estórias de Siàrlinda, como a “da Moça e da Bicha-Fera, do Papagaio Dourado que era um Príncipe, do Rei dos Peixes, da Gata Borralheira, do Rei do Mato. [Siàrlinda] contou estórias de sombração, que eram as melhores, para se estremecer.”

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Guimarães Rosa, segundo descreve o tio Vicente Guimarães, também gostava dessa brincadeira (Guimarães, 2006).

Como vimos, a infância de Miguilim foi claramente carregada de atividades lúdicas. Sabemos que, por meio delas, especialmente “imitando em seus jogos aquilo que conhecem da vida dos mais velhos” (Freud, 1908, p. 137), as crianças podem elaborar seu desenvolvimento afetivo, intelectual e social3. Em Escritores criativos e devaneios (1907), Freud, compara a capacidade de criação literária do escritor adulto com o brincar da criança: ao brincar, a criança cria um mundo próprio e ajusta, conforme seus desejos, os elementos de seu mundo interno à realidade concreta.

Ao crescer, as pessoas param de brincar e parecem renunciar ao prazer que obtinham do brincar. Contudo, quem compreende a mente humana sabe que nada é tão difícil para o homem quanto abdicar de um prazer que já experimentou. Na realidade, nunca renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra. O que parece ser uma renúncia é, na verdade, a formação de um subtituto ou sub-rogado. Da mesma forma, a criança em crescimento, quando para de brincar, só abdica do elo com os objetos reais; em vez de brincar, ela agora fantasia. Constrói castelos no ar e cria o que chamamos de devaneios. (Freud, 1907, p. 136).

Para elaborar a passagem da infância para a vida adulta em Miguilim, veremos adiante o importante papel da criação de estórias e a cessação paulatina da descrição de atividades propriamente lúdicas, como o jogo. Por ora, vale reforçar que, na ausência de escola, as formas de aprendizagem são o brincar espontâneo e as atividades de cooperação com os adultos. Balizadas pela cultura da comunidade, as crianças devem obedecer aos mais velhos e, para que submetam-se às regras, é comum que sofram castigos ou intimidações orais que envolvem elementos mágicos cruéis e aterradores. As ameaças da avó Izidra ou de Mãitina quanto à presença do demônio e à existência do inferno são exemplos desse tipo de coerção. “Mãitina disse que tudo que há que acontece é feitiço…”

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Para Winnicott (1975, p.79), “É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou adulto fruem sua liberdade de criação”.

Em Miguilim, vemos coexistir dois níveis de elaboração, talvez reflexos da maturidade imposta pelo mundo do trabalho e pela não-categorização da infância como fase específica. Ao longo da narrativa, ressalta-se a maneira pela qual Miguilim traz, de um lado, os pensamentos mágicos típicos de uma criança e, de outro, as reflexões de denso substrato simbólico que caracterizam o pensamento hipotético-dedutivo do adulto, debatendo-se com questões dilacerantes sobre o bem e o mal, a vida e a morte e a adequação da sua conduta perante as questões que se coloca sobre a vida. Esses planos compõem um movimento de tensão entre o dentro e o fora, um jogo que espelha as vicissitudes do crescer e mostra as distinções pouco nítidas entre sujeito e objeto, menino e mundo.

Do pensamento mágico, poderíamos salientar a leitura que Miguilim faz dos elementos da natureza e de alguns fatos vividos em família – como seu temor de que, ao ter as letras ensinadas por seo Deográcias, adquiriria as características “desagradáveis” do mestre. Teorias desse tipo nascem da consonância entre suas crenças internas e aquelas adquiridas sob influência da comunidade. O medo da morte, por exemplo, é dominado pelas crenças no Juízo Final, na salvação, na reencarnação, ou na ida ao céu ou ao inferno – marcas do Imaginário que impregnam a visão de mundo de comunidades pequenas como a do Mutúm. Miguilim recebe do meio uma variedade incrível de crenças e superstições, que redefinem seus medos. 4

Vale também mencionar o medo que o garoto tinha de que à noite alguém viesse puxar seus pés ou de que algumas estórias pudessem se concretizar: “Entre chuva e outra, o arco-da- velha aparecia bonito, bebedor; quem atravessasse debaixo dele – fú! menino virava menina, menina virava menino: será que depois desvirava?”. Ou ainda: “Se não cortassem [a árvore], era tanto perigo, de agouro, ela crescia solerte, de repente uma noite despassava mais alta do que o telhado, então alguém da família tinha de morrer, então era que ele Miguilim morria” (p. 39).

Miguilim, aos oito anos, está deixando de lado uma estrutura de pensar infantil, concreta, para apresentar processos mais maduros de simbolização, abstração e reversibilidade do pensamento. A recorrência de sua preocupação com o sentido do mal, por exemplo, sugere apurada sensibilidade, carregada de inflexões metacognitivas e linguísticas.

4 Freud, em Totem e tabu (1912), afirma que tais influências são fundantes, pois “nenhuma geração possui a capacidade de ocultar à que a sucede processos psíquicos de certa importância. A psicanálise nos tem ensinado, de fato, que o homem possui em sua atividade espiritual inconsciente um aparelho que lhe permite interpretar as reações dos demais; isto é, retificar e corrigir as deformações que seus semelhantes imprimem à expressão de seus impulsos afetivos. Graças a essa compreensão inconsciente de todos os costumes, cerimônias e prescrições, a atitude primitiva em relação ao pai permaneceu e talvez tenha sido como as gerações posteriores puderam assimilar a herança afetiva das que a precederam”. (Freud, 1912).

A morte – como a do irmão Dito, a do pai e até o medo da sua própria – parece ser o significante escolhido para representar essa passagem. Ela é o fio condutor de suas reflexões, da luta entre os aspectos pulsionais do indivíduo e as exigências sociais de seu meio: “– Mãe, o que a gente faz, se é mal, se é bem, ver quando é que a gente sabe?” “– Ah, meu filhinho, tudo o que a gente acha muito bom mesmo fazer, se gosta demais, então já pode saber que é malfeito…” (p. 54).

O que é relevante no trabalho freudiano para auxiliar o entendimento do processo de configuração do sujeito em Miguilim? Segundo Freud, todo ser humano é mobilizado pela necessidade de construir sua identidade e de inserir-se socialmente. Tal movimento ocorre por meio de vários processos de identificação e se, de um lado, representa um laço afetivo importante, de outro, é uma realização do eu com vistas a atender ao desejo pulsional (ao transformar-se em objeto de desejo, o sujeito identificado permite ao indivíduo representar para si o desejo). Desse modo, e com ajuda de outros referenciais teóricos da psicanálise, poderemos buscar, no texto, marcas de aspectos da vida pulsional do menino: certos mecanismos defensivos do eu, do luto, da reelaboração de conflitos edípicos e narcísicos; algumas de suas escolhas objetais; e certas marcas simbólicas de seus desejos – aproximando- nos, assim, da elaboração edípica do seu adolescer.

Mesmo que em outro contexto, talvez possamos pensar Miguilim num movimento que se aproxima de Riobaldo: o de tentar manipular o mal para atingir o bem5: só depois de um longo período de sofrimento é que esse embate parecerá sossegar e trazer um quê de alegria e superação do medo que tanto atormenta Miguilim. Vamos ao texto.