• Nenhum resultado encontrado

A Constituição da Organização Internacional do Trabalho

A Organização Internacional do Trabalho nascia também com o fim da guerra e com os tratados de paz, dada a inclusão da sua Constituição nos mesmos (Yale Law School, 2018b). No aparelho institucional então desenhado, a OIT configurava-se como uma agência da Sociedade das Nações. Será porventura interessante salientar que lhe sobreviveu, tendo

16 ARTICLE 23: Subject to and in accordance with the provisions of international conventions existing or here-

after to be agreed upon, the Members of the League: a) will endeavour to secure and maintain fair and humane conditions of labour for men, women, and children, both in their own countries and in all countries to which their commercial and industrial relations extend, and for that purpose will establish and maintain the necessary inter- national organisations; b) undertake to secure just treatment of the native inhabitants of territories under their control; c) will entrust the League with the general supervision over the execution of agreements with regard to the traffic in women and children, and the traffic in opium and other dangerous drugs; d) will entrust the League with the general supervision of the trade in arms and ammunition with the countries in which the control of this traffic is necessary in the common interest; e) will make provision to secure and maintain freedom of communi- cations and of transit and equitable treatment for the commerce of all Members of the League. In this connection, the special necessities of the regions devastated during the war of 1914-1918 shall be borne in mind; f) will endeav- our to take steps in matters of international concern for the prevention and control of disease. (Treaty of Versailles,

chegado ao presente como a agência internacional global cujo foco são as questões laborais (Campos et al., 2011; Hurd, 2014).

As questões do trabalho, ou mais latamente a ‘questão social’, percorrem a segunda me- tade do século XIX, na turbulência dos radicalismos socialistas, mas também na sua pro- gressiva entrada nos sistemas políticos da época, por via eleitoral, à sombra das versões reformistas do socialismo e, por via legal, à custa da progressiva incorporação das reivin- dicações laborais, fruto das campanhas operárias e da ‘advocacia’ de algumas figuras de proa, como Robert Owen, Daniel Legrand, o casal Webb, ou J. Jaurès, entre outros (Free- den, 1996; ILO, 2018).

Também neste âmbito as conferências intergovernamentais de 1890, 1897 e 1900 haviam aberto caminho para a criação da Organização e delas resultara a Associação Internacional para a Legislação Laboral, sediada em Basileia (Campos et al., 2011; ILO, 2018). A cons- ciência da dimensão internacional dos problemas laborais e da necessidade de cooperação internacional, num quadro institucional e legal próprio, estavam pois já presentes.

Na raíz do processo de criação da OIT terá estado esse histórico do final do século XIX e início do século XX, interrompido apenas pelo hiato da guerra, mas presente na mente dos estadistas (Winter, 2014). Também lhe não foi alheia a revolução russa de outubro de 1917, cujo radicalismo convidava a atitudes preventivas, por parte dos Estados europeus (Arms- trong, Lloyd e Redmond, 2004; Campos et al., 2011).

A Constituição da OIT fez-se assim um documento de monta da reconstrução do pós- guerra, na concepção que venceu nas negociações de Paris. Por essa razão, chama a atenção dos analistas para a consciência de então do quanto as questões socio-económicas se en- trosavam com as político-securitárias. Tal leitura reforça o meu argumento inicial de que, tímida embora, despontava a consciência de que a paz se constrói a partir de dentro e de modo estrutural. Mais acresce que, num mundo já de extensa relação comercial interna- cional, o quadro legislativo do trabalho se impunha como algo de transnacional, embora a máquina conservadora dos sistemas políticos de então reservasse a essa dimensão apenas um pequeno poder de orientação, ainda assim persistente, como a OIT o viria a revelar.

Desse modo, no preâmbulo da sua Constituição (Rodgers et al., 2009: 249), afirma-se que a paz só poderá ser atingida por meio da justiça social; e que as condições de trabalho injustas produzem turbulência social – pelo que os dois males terão que ser expurgados, no caminho para a paz duradoura17. As soluções a encontrar foram sucessivamente enuncia-

das no preâmbulo da Constituição da OIT, de acordo com o seguinte elenco18: regulação dos

horários de trabalho (tecto máximo); regulação dos fluxos de trabalhadores e prevenção do desemprego; provisão de um salário mínimo adequado e protecção dos trabalhadores

17 Whereas the League of Nations has for its object the establishment of universal peace and such a peace can be

established only if it is based upon social justice / And whereas conditions of labour exist involving such injustice, hardship and privation to large numbers of people as to produce unrest so great that the peace and harmony of the world are imperilled (….) (Rodgers et al., 2009: p.249).

18 (…) as, for example, by the regulation of the hours of work, including the establishment of a maximum working

day and week, the regulation of the labour supply, the prevention of unemployment, the provision of an adequate living wage, the protection of the worker against sickness, disease and injury arising out of his employment, the protection of children, young persons and women, provision for old age and injury, protection of the interests of workers when employed in countries other than their own, recognition of the principle of equal remuneration for work of equal value, recognition of the principle of freedom of association, the organization of vocational and technical education and other measures; (…) (Rodgers et al., 2009: p.249).

na doença e em caso de acidente; protecção das crianças, trabalhadores jovens e mulheres; protecção na velhice; protecção dos trabalhadores migrantes; protecção da liberdade as- sociativa; reforço da educação vocacional e técnica.

No artigo 427º do Tratado, verdadeiramente programático, enunciam-se ainda os nove princípios e métodos fundamentais que as comunidades industriais deveriam procurar implementar, a saber: que o trabalho não fosse um mero produto comercial; que o direito de associação, de empregados e de empregadores, fosse respeitado; que o salário fosse tal que permitisse manter um nível de vida razoável; que a jornada de trabalho deveria ser de oito horas ou quarenta e oito semanais; que deveria haver um descanso semanal de pelo menos vinte e quatro horas; que o trabalho infantil deveria ser extinto; que o pagamento a homens e mulheres deveria ser igual para trabalho igual; que os trabalhadores, dentro de um mesmo Estado, deveriam ser tratados da mesma forma perante a lei; que deveriam ser implementados sistemas de inspecção do trabalho, neles sendo incluídas mulheres19.

Convém ainda salientar que esta Organização foi fundada com base num modelo de re- presentação nacional que extravasa o governamental – é tripartida, isto é, cada Estado se faz representar pelos seus governantes, mas também por representantes da sociedade ci- vil, no seu tecido empresarial e laboral, fugindo assim à convencionalidade da democracia representativa e trazendo para o âmago da organização a própria tensão social que almeja mediar. Segundo a Constituição da OIT, cada Estado tem quatro representantes, dois go- vernamentais e dois não-governamentais (vd. artigo 389º). Cada delegado tem direito a um voto individual, na Conferência de Representantes (vide artigo 390º). Esta e a Reparti- ção Internacional do Trabalho (normalmente conhecida como o Bureau, da versão france- sa Bureau International du Travail-BIT) constituem os órgãos de governo da Organização (vide artigo 388º). O Bureau, composto por uma espécie de Conselho Executivo é também tripartido. Compõem-no vinte e quatro membros, doze governamentais (de entre os quais oito provenientes dos Estados de “importância industrial fundamental”, nos termos do Tratado), seis representantes dos empregadores e seis representantes dos trabalhadores, estes dois últimos grupos eleitos na Conferência de Representantes (vide artigo 393º).

Do ponto de vista dos seus instrumentos legislativos, a Organização actua por duas for- mas fundamentais: emitindo recomendações, ou propondo aos Estados, para ratificação, convenções (vide artigo 405º). Pelas suas características intrínsecas, as recomendações não tinham, nem têm, um poder vinculativo. Já as convenções só o teriam, caso a caso, na sequência da opção por cada Estado de as ratificar. O mecanismo ‘brando’ de convergência dos Estados assim desenhado não conferia, nem confere hoje, à OIT uma verdadeira capa-

19 ARTICLE 427: First. The guiding principle above enunciated that labour should not be regarded merely as a

commodity or article of commerce./ Second. The right of association for all lawful purposes by the employed as well as by the employers./ Third. The payment to the employed of a wage adequate to maintain a reasonable standard of life as this is understood in their time and country./ Fourth. The adoption of an eight hours day or a forty-eight hours week as the standard to be aimed at where it has not already been attained./ Fifth. The adoption of a weekly rest of at least twenty-four hours, which should include Sunday wherever practicable./ Sixth. The abolition of child labour and the imposition of such limitations on the labour of young persons as shall permit the continuation of their education and assure their proper physical development./ Seventh. The principle that men and women should receive equal remuneration for work of equal value./ Eighth. The standard set by law in each country with respect to the conditions of labour should have due regard to the equitable economic treatment of all workers lawfully resident therein./ Ninth. Each State should make provision for a system of inspection in which women should take part, in order to ensure the enforcement of the laws and regulations for the protection of the employed. (Yale Law School, 2008b: s.p.).

cidade de coagir. Todavia, o historial da OIT tem comprovado que este mecanismo colocou nas mãos da Organização uma capacidade branda e lenta, mas persistente, de propagar um padrão internacional de boas práticas, em matérias laborais (Campos et al., 2011; Hurd, 2013).

Para se aquilatar do caminho definido pela Organização note-se que, logo em 1919, aquando da sua primeira reunião, se adoptaram seis convenções internacionais do traba- lho, a saber sobre: horários de trabalho; desemprego; protecção na maternidade e trabalho feminino nocturno; desemprego; idade mínima no trabalho e trabalho nocturno de meno- res (ILO, 2018). O facto de ela ter tido continuidade até ao presente duplamente prova a sua oportunidade, à época, e o carácter incompleto da regulação global das relações laborais, até aos nossos dias. A sua inserção no Tratado e a afirmação expressa da necessidade de prover ao bem-estar dos assalariados para a promoção da harmonia internacional provam a consciência, por parte dos negociadores, do quanto rupturas socio-económicas pode- riam afectar a paz.

Conclusão

A naturalização da guerra, isto é, a sua aceitação como um estado normal da relação entre Estados, foi um suporte clássico do sistema internacional dos Estados. A Grande Guerra representou, nesse contexto, o abismo, o paroxismo da violência e da destruição. A in- versão dessa tendência, ou, no plano normativo, a aceitação de novas pautas insinuou-se timidamente, desde o final da Guerra.

Assim, já em 1919 se preconizavam: a prevenção dos conflitos; a moratória dos conflitos em deflagração; a restrição à produção de armamento; mas, sobretudo, a acção no plano das causas estruturais dos conflitos, nomeadamente as económico-sociais capazes de cau- sar instabilidade. Acresce que se advogava que estas acções ocorressem num quadro in- ternacional e multilateral institucionalizado, dando, pois, consistência acrescida à relação cooperativa entre os Estados.

Todavia, essa mudança era dissonante, face ao paradigma vigente. Com na arte, na mú- sica, ou na pintura coeva, onde uma nova estética despontava, irritante, chocante, desa- linhada do senso comum, também a cantata da paz não tinha ainda lugar nas convenções maiores dos Estados. O século XX gastou-se, no seu desenvolvimento, por tentativa-erro, tendo assim chegado aos nossos dias um novo padrão, um emergente paradigma da paz que desloca a guerra para a condição de excepção e que normaliza as relações pacíficas. Tal trânsito não é alheio à multiplicação das democracias, como o afirma a teoria da paz liberal (Ramos, 2014), logo ao papel dos povos, no decurso da sua história. Este recuo do discurso e do paradigma da guerra não pode, todavia, ser confundido com pacifismo generalizado ou institucionalizado. Os Estados não abdicaram da guerra, mas procuram, regra geral, evitá-la. Desse modo, o número de conflitos entre Estados diminuiu substancialmente, embora tenha emergido uma nova conflitualidade intra-Estado, que corresponde sobre- tudo a situações de ruptura interna da capacidade dos aparelhos de Estado de proverem ordem política (Kaldor, 2007).

Sobre a agenda de 1919 poderá o presente perguntar-se acerca do que foi adquirido e do que falta ainda concluir. Facilmente se verifica que algumas das questões prementes

da época continuam em aberto, ou que ganharam novos contornos, nos novos contextos históricos, como é o caso das questões laborais no âmbito da globalização.

Em suma: cem anos volvidos da batalha, a paz não é, ainda, o estado normal das socieda- des, mas a pacificação é um objectivo político assumido por muitos e o discurso da guerra teve que recuar. Como a evolução histórica não é linear, esse processo por si não garante a paz futura, apenas a anuncia como um horizonte para o qual convergem vontades. Os visio- nários da paz duradoura não a puderam institucionalizar, no princípio do século passado, mas conseguiram, pelo menos, que hoje se fale dela como um horizonte que é lícito desejar.

Referências

Armstrong, D., Lloyd, L. e Redmond, J. (2004). International Organisation in World Pol-

itics. London: Palgrave.

Campos, J. et al. (2011). Organizações Internacionais. 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editora.

Encyclopaedia Britannica (2018). Paris Peace Conference. Disponível em https://www. britannica.com/event/Paris-Peace-Conference (acedido em 13.04.2018)

Graebner, N. (2014). The Versailles Treaty and its Legacy: The Failure Of The Wilsonian

Vision. Cambridge: Cambridge University Press.

Holsti, K. (1991). Peace and War: Armed Conflicts and International Order 1648-1989. Cambridge: Cambridge U.P.

Hurd, I. (2013). International Organizations: Politics, Law, Practice. Cambridge: Cam- bridge University Press.

ILO – International Labour Organization (2018). Origins and History. Disponível em:

http://www.ilo.org/global/about-the-ilo/history/lang--en/index.htm (acedido em 13.04.2018)

Kaldor, M. (2007). New & Old Wars. 2nd ed., Stanford: Stanford University Press.

Neiberg, M. (2017). The Treaty of Versailles: A Concise History. New York: Oxford Uni- versity Press.

Oral History Society (2018). Oral History Society. Disponível em http://www.ohs.org.uk/

(acedido em 13.04.2018)

Ramos, C. (2014). O jogo da paz e a democracia. In Patim, I. et al. (eds.). Literatura & Jogo

– narrativas, discursos, representações e mitos. Lisboa: Esfera do Caos, pp. 223-229.

Rodgers, G., Lee, E., Swepston, L. e Van Daele, J. (2009). The International Labour Organ-

ization and the quest for social justice, 1919-2009. Geneva: International Labour Office.

Schoenberg, A. (2010). Theory of Harmony (100th Anniversary edition). Oakland: Uni- versity of California Press.

Treaty of Versailles (1919). Treaty of Versailles [fac-simile]. Disponível em https://www. loc.gov/law/help/us-treaties/bevans/m-ust000002-0043.pdf (acedido em 13.04.2018) Winter, J. (2014). Socialism and the Challenge of War. Ideas and Politics in Britain, 1912-

18. Abingdon: Routledge.

Yale Law School (2008a). President Woodrow Wilson’s Fourteen Points. Disponível em

http://avalon.law.yale.edu/20th_century/wilson14.asp (acedido em 13.04.2018)

Yale Law School (2008b). The Versailles Treaty June 28, 1919: Part XIII. Disponível em

O gaseamento na imagem médica e na memória