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A Carta da Sociedade das Nações

O equilíbrio de forças entre os Estados não é uma invenção da conferência de Paris. O do- brar da guerra e o negociar da paz haviam estabelecido reequilíbrios, ainda que temporá- rios, inúmeras vezes, nos séculos antecedentes. Ressaltam desse cenário a paz da Vestefália (1648), arcana fundadora da ordem internacional clássica, no longínquo século XVII; a paz de Utreque (1713); a paz de Viena (1815), fundadora do ‘concerto das Nações’ e sua balança de poder, equilibrador das relações entre Estados e garante da paz na Europa, nas décadas subsequentes (Campos et al., 2011; Holsti, 1991). Todavia, nenhum desses tratados alguma vez se deslocara do paradigma da guerra, isto é, da consideração da guerra como ‘vocação’ do Estado, actividade normal e até necessária, inscrita no âmago da sua própria existência.

Desse ponto de vista, a paz era um intervalo necessário, mas não um estado permanente a garantir (Holsti, 1991).

Por outro lado, o século XIX contribuíra ainda para o enquadramento normativo da guerra, através das convenções de Haia (de 1899 e 1907) – sem que a guerra fosse abomi- nada, era por essa via enquadrada e restrita, nos seus meios e nos seus alvos (Armstrong, Lloyd e Redmond, 2004).

Já a política de alianças entre Estados, que poderá ter reforçado o efeito equilibrador durante algum tempo, veio afinal a revelar-se perversa, no quadro da I Guerra Mundial, arrastando para o conflito toda uma rede de partes assim associadas (Armstrong, Lloyd e Redmond, 2004; Campos et al., 2011). A paz armada, estratégia preventiva clássica dos Estados, deflagrava num conflito ‘total’, extensivamente devastador e, por isso mesmo, assustador para a humanidade.

Na preparação das negociações de paz, destaca-se o papel do presidente americano, Woodrow Wilson, cuja lista de prioridades para a negociação ficou sobejamente conhecida como os ‘catorze pontos’ (Armstrong, Lloyd e Redmond, 2004; Campos et al., 2011). Sen- do heterogénea (da redefinição territorial aos caboucos dum novo sistema internacional) cabe, no âmbito deste texto, salientar os pontos 1 e 14, em que o Presidente enunciava a necessidade, respectivamente, de:

(1) Pactos de paz de livre adesão dos estados, após os quais não haverá en- tendimentos internacionais privados, progredindo a diplomacia de forma aberta e pública; (…)

(14) uma associação das nações sob pactos específicos, com o propósito de assegurar garantias mútuas de independência política e integridade territo- rial a estados grandes e pequenos15.

Wilson ficava assim conhecido por ter trazido às negociações uma perspectiva do sistema internacional de raíz idealista (por oposição à realista) e por ter por isso convidado à re- construção com base na tecitura da cooperação internacional entre os Estados. A sequência do processo não permitiu ao presidente americano consolidar integralmente o seu projec- to, nomeadamente pela oposição interna, expressa na rejeição da ratificação do tratado de Versalhes no Senado dos EUA. No entanto, as ideias lançadas a debate haviam ainda assim sido incorporadas na minuta da proposta anglo-saxónica (proposta Hurst-Miller) à con- ferência de Paris, pelo que o plano da criação da Sociedade das Nações acabou por vencer e por ser incorporado no tratado de Versalhes, logo à parte I do mesmo (Armstrong, Lloyd e Redmond, 2004; Campos et al., 2011).

Há, pois, que salientar, para lá do facto singular da introdução do Pacto no Tratado, uma série de conteúdos de suma importância que apontam à renovação e restruturação do sis- tema internacional, conforme se detalha abaixo, a partir do texto da Carta (Treaty of Ver- sailles, 1919).

15 Traduzido de: I. Open covenants of peace, openly arrived at, after which there shall be no private international

understandings of any kind, but diplomacy shall proceed always frankly and in the public view. / XIV. A general association of nations must be formed under specific covenants for the purpose of affording mutual guarantees of political independence and territorial integrity to great and small states alike (Yale Law School, 2008a: s.p.).

A Liga inicia-se com quarenta e dois Estados membros, mas o seu preâmbulo consagra- -a como organização aberta à aceitação de futuros membros, desde que estejam estes na disposição de se conformarem às regras instituídas no Pacto e que sejam aceites por uma maioria de dois terços dos membros da Assembleia (Campos et al., 2011). Os órgãos de go- verno da Organização são justamente a Assembleia dos representantes de todos os Estados membros; o Conselho, um órgão mais restrito que comporta representantes permanentes das principais potências aliadas e representantes rotativos, escolhidos na Assembleia; e um Secretariado permanente que coadjuva os anteriores (vide artigos 2º, 3º e 4º).

Desde logo, o Pacto prefigura a constituição de uma ‘estrutura de segurança colectiva’ (a expressão não é da época) sendo responsabilidade mútua e comum a manutenção da soberania e da integridade territorial de cada Estado membro e sendo a agressão a qual- quer um deles entendida como um ato de beligerância contra todos (vide artigos 10º, 11º, 16º e 17º). Desenha-se uma estrutura multilateral de dissuasão de conflitos, procurando prevenir potenciais agressões entre Estados. Giza-se assim uma estrutura de gestão de cri- ses, que almeja prevenir escaladas e que desse modo institui um mecanismo moratório da deflagração dos conflitos, abrindo-se um processo diplomático e negocial, de inqué- rito e mediação, que envolve o Conselho e, possivelmente, a Assembleia (vide artigos 12º e 15º). Prescreve-se também a judicialização das disputas, por recurso a uma estrutura de arbitragem e resolução legal de conflitos, no plano internacional (vide artigos 13º e 14º). O Pacto não exclui o uso último da força bélica, mas procura retardá-lo e enquadrá-lo normativamente, num modelo que visa conter a guerra, privilegiando as relações pací- ficas. Preconiza-se ainda o desarmamento, limitando a produção de armas dentro de um quadro normativo comum e contrariando, desse modo, escaladas bélicas (vide artigo 8º). Definem-se, para além disso, os termos da constituição de protectorados, sobre territó- rios de ascendente colonial (vide artigo 22º), com vista à progressiva autodeterminação dos mesmos. Finalmente (vide artigo 23º), abordam-se de forma lata assuntos de carácter socio-económico, que aqui interpreto como a consideração de condicionantes estruturais da construção da paz, a saber:

Art.23. Sob reserva e em conformidade com as disposições das Convenções internacionais atualmente existentes ou que serão ulteriormente concluídas, os membros da Sociedade:

(1) esforçar-se-ão por assegurar e manter condições de trabalho equitativas e humanas para homens, mulheres e crianças, quer nos seus próprios ter- ritórios, quer em todos os países aos quais se estendam as suas relações co- merciais e industriais e, com esse fim, fundarão e manterão as organizações internacionais necessárias;

(2) comprometem-se a garantir o tratamento equitativo das populações in- dígenas dos territórios submetidos à sua administração;

(3) confiam à Sociedade a fiscalização geral dos acordos relativos ao tráfico de mulheres e crianças, ao comércio de ópio e de outras drogas nocivas; (4) confiam à Sociedade a fiscalização geral do comércio de armas e munições com aqueles países nos quais a fiscalização desse comércio é indispensável ao interesse comum;

(5) tomarão as medidas necessárias para assegurar a garantia e manutenção da liberdade de comunicações, trânsito e equitativo tratamento comercial a todos os membros da Sociedade. Neste contexto, as necessidades especiais das regiões devastadas durante a guerra de 1914 a 1918 serão tomadas em consideração;

(6) esforçar-se-ão por tomar medidas de ordem internacional para a pre- venção e o controle de doenças.16

Ou seja, o trabalho, a condição indígena, as mulheres e crianças, a saúde, mas também o tráfico de pessoas, drogas e armas e a liberdade de comunicação, trânsito e comercial são entendidos como factores a considerar para a estabilização das sociedades e, por isso, fun- ções concertadas dos Estados membros da Sociedade das Nações.

É certo que a história subsequente da Liga das Nações não endossa o seu sucesso, ei- vada como foi de insuficiências, desde logo pela não adesão dos EUA, mas também pelos múltiplos conflitos que não pôde prevenir ou mediar de forma capaz (Armstrong, Lloyd e Redmond, 2004; Graebner, 2014; Neiberg, 2017). Alguns autores apresentam mesmo pers- pectivas francamente negativas do desenrolar desse processo (Graebner, 2014), o que, por si, não invalida o argumento de que o paradigma da cooperação entre Estados esteve pre- sente, na negociação e resultados da conferência de Paris.

A prefiguração das Nações Unidas estava, de facto, já na estrutura da Sociedade das Na- ções, como bem se evidencia pelas características acima salientadas. Se o futuro próximo reservava o retorno à lógica egocêntrica dos Estados que o realismo teórico viria a con- sagrar, a evolução secular do século XX mostraria mais tarde que a Sociedade das Nações aflorara um caminho que importava palmilhar – o que viria a ser feito, após a II Guerra Mundial, no âmbito, também imperfeito, das Nações Unidas (Armstrong, Lloyd e Red- mond, 2004; Campos et al., 1999; Stirk e Weigall, 1995).