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Corolário da batalha de La Lys

O imediato pós-batalha gerou – como, aliás, tinha de e deveria gerar – um clima de anti- derrota em Portugal. La Lys tornou-se na razão de exaltação dos heróis. Durante anos, a 9 de Abril, faziam-se dois minutos de silêncio em todo o país, recordando o sacrifício dos soldados portugueses. Houve como que uma sacralização desse dia doloroso. Ele passou a adornar o panteão das glórias nacionais de tal modo que, de uma derrota, se transmutou numa quase vitória. Os combatentes apegaram-se à data e reviram nela todos os seus sa- crifícios. Esqueceu-se a relutância de ir para a guerra, porque a guerra fez esquecer como o soldado anónimo nela se tinha comportado. Importante era ter estado na guerra. E isto entrou no imaginário da época – anos vinte e trinta do século XX – e por lá ficou. Mas, ao mesmo tempo, cresceu, nas famílias, um outro culto: o do padecimento dos seus soldados. Soldados mortos, estropiados, antigos prisioneiros, gaseados ou simplesmente sacrifica- dos. É desse relicário de memórias que, neste centenário, se estão a arrancar depoimentos para, quiçá, relatar uma outra História bem diferente da História política e diplomática, que temos vindo a explorar ao longo de anos, graças a estudos cuidados e apurados. Mas, ao menos, que uma não deturpe a outra!

Este imaginário pós-batalha acabou por ir morrendo nos anos da 2.ª Guerra Mundial e nos que se lhe seguiram até ser suplantado pela guerra colonial. E não se tratou de um acaso, mas de uma manobra bem feita pelo Estado Novo. Salazar nunca poderia ser o herói da suposta neutralidade por ele alcançada para defesa e tranquilidade dos Portugueses se subsistisse a saga da beligerância na Grande Guerra. Foi este fenómeno que se não conse- guiu resolver e evidenciar nas comemorações do primeiro centenário desse acontecimento mundial. Era preciso pôr de lado as lamúrias dos combatentes e desmascarar a política que abafou a beligerância na Grande Guerra. Havia que a explicar, evidenciando o quanto foi distorcida a História da 1.ª República pela História do Estado Novo, porque uma é con- sequência da outra e, cada uma, procura a glória da sua História, quando, afinal, não tem

que haver glória, mas sim realidade e verdade explicada melhor do que ela foi apreendida por aqueles que viveram os factos.

Mas a Grande Guerra teve consequências efectivamente profundas no estado sanitário dos Portugueses. Teve, porque de França – e também de Moçambique – vieram estropia- dos, inválidos – 5738 homens incapazes de angariar meios de subsistência –, doentes com males crónicos e, um dos mais notáveis – que foi erradamente identificado como efeito dos gases – desconhecido, então, o stress pós-traumático. Quase todas as famílias em Portugal tiveram um combatente que veio a sofrer, em termos de saúde, de alguma forma, os efeitos da ida a França.

Culturalmente, teremos várias vertentes a explorar. Comecemos pelas mais populares e menos eruditas.

Entraram no falar português algumas palavras trazidas pelos soldados: estaminé (esta-

minet), ir aos arames e, mais vulgares, sem alteração, madame, mademoiselle, fiancé e

algumas outras que já se perderam.

Fizeram-se canções, peças de teato de revista e, até, alguns dramas, mas foi no âmbito memorialista que a literatura mais recolheu informações da guerra e da batalha de La Lys. Não foram só oficiais a escrever; também fizeram diários de campanha alguns sargentos e praças. No fundo, cada qual descreveu o que sentiu da forma como encarou a campa- nha. Os casos de exaltação vieram de homens com experiência literária, tais como Jaime Cortesão e Augusto Casimiro; mas, em termos de prática diarista, sobressai, agora – por ter vindo a público neste centenário –, o Diário de Campanha do general Tamagnini de Abreu e Silva (BORGES; MARQUES; DIAS, 2018) onde se podem ler as considerações do comandante do CEP e, com imparcialidade, perceber o quanto lhe faltava de capacidade de

manobra para lidar com a oficialidade sem ser na base da disciplina cega e da obediência

sem reticências; era um militar de linha e jamais um oficial de alta graduação. No coman- do, tinha a postura do capitão ou, no máximo, do major, que determina como quer, mas não é capaz de discernir para além da ordem. Também ele se lamenta da pouca sorte que teve e de incompreensões dos responsáveis de Lisboa, mostrando toda a sua incapacidade para lidar com situações burocráticas e humanas complexas quando há em jogo interesses contraditórios. O nível de lamentos e a qualidade de escrita é que o distingue dos diários de alguns soldados mais letrados.

Se é certo que este tipo de influência cultural afectou ou teve efeitos sobre quem sabia ler e compreender o que lia, não é menos verdade que a simples convivência com estrangeiros – militares britânicos e civis franceses – também exerceu modificações nos nossos solda- dos, sargentos e oficiais, saídos de uma cultura fechada, obscurantista, clerical e avessa à modernidade, pois, projectados para uma sociedade habituada a comportamentos liberais, onde o indivíduo se sentia mais livre e menos culpado dos seus actos, isso terá aberto novas perspectivas aos nossos expedicionários. Perspectivas, é certo, que não terão frutificado nos ambientes rurais onde voltaram, mas que terão criado algumas raízes entre os que re- tornaram ou se fixaram nas cidades mais evoluídas.

Politicamente, La Lys e a campanha militar em França foram de importância capital na evolução dos acontecimentos em Portugal. Os oficiais e sargentos perceberam que traziam uma mais-valia extraordinária, pois haviam corrido riscos para satisfazer um objectivo

político e, assim, pensavam, era-lhes permitido intervir na gestão do país. E intervieram, por mais de uma vez. A derradeira foi comandada pelo mesmo general que comandou a 2.ª divisão portuguesa em La Lys e deu origem a uma ditadura ultraconservadora com duração de mais de quarenta anos. Contudo, para se perceber melhor essa tendência para a inter- venção política, é necessário ir mais além do que o golpe de estado de 28 de Maio de 1926. Com efeito, Salazar, no começo da década de trinta do século passado, soube manobrar convenientemente com os oficiais militares que sobraram da Grande Guerra, afastando uns, os mais irredutíveis defensores da 1.ª República, ou absorvendo outros para a causa do Estado Novo, através de prebendas ou altos cargos em empresas onde o Estado tinha acções ou era mesmo o único proprietário. Esta habilidade em lidar com tal tipo de ofi- ciais constituiu, ao cabo e ao resto, um exercício político para ambas as partes: Salazar e os beneficiados, pois, houve sempre uma cedência que foi jogada de parte a parte: os antigos combatentes não interferiam na condução política e o Presidente do Conselho de Ministros não reduzia os benefícios nem incomodava as memórias dos militares. Pode dizer-se que esta influência durou até ao começo da 2.ª Guerra Mundial, data em que ou já tinha mor- rido a maior parte destes oficiais antigos combatentes ou já estavam velhos demais para fazerem correr qualquer risco a nova situação política.

Como acabámos de mostrar, a sombra de La Lys e dos combatentes da Flandres esten- deu-se, temporalmente e em termos políticos, por mais de duas décadas. E tudo sempre à custa da prática de uma política de defesa de princípios monolíticos e obscurantistas. Foi este Exército que serviu de pilar e deu apoio à ditadura. Curiosamente, o Exército e a oficialidade nascidos do Estado Novo, quando Salazar entendeu que a questão colonial se resolveria pela força das armas, em Abril de 1961, começou por tentar afastar o ditador, procurando uma solução diferente daquela que lhe era imposta (VALENÇA, 1976); treze anos mais tarde, o Exército nascido da guerra colonial, já sem compromissos com qualquer outra guerra, derrubou a ditadura intitula Estado Novo e fez surgir o reencontro histórico com os ideais de democracia, liberdade e modernidade da 1.ª República.

Concluímos, assim, que o ciclo iniciado com o Governo Provisório da 1.ª República e in- centivado pela beligerância, na Grande Guerra, só se fechou com um golpe militar efecti- vado muitos anos mais tarde, tendo tido um largo interregno – em quase tudo, semelhante à cultura monárquica – entre 1926 e 1974.

Referências

Cortesão, Jaime (1916). Cartilha do Povo: 1.º Encontro. Portugal e a Guerra. Porto: Renas- cença Portuguesa.

Fraga, Luís Alves de (2003). Guerra & Marginalidade: Os comportamentos das tropas

portuguesas em França: 1917 – 1918. Lisboa: Prefácio.

Fraga, Luís Alves de (2010). Do Intervencionismo ao Sidonismo: Os dois segmentos da

política de guerra na 1.ª República: 1916-1918. Coimbra: Imprensa da Universidade.

Fraga, Luís Alves de (2012). O Fim da Ambiguidade: A Estratégia Nacional Portuguesa de

1914 a 1916. Lisboa: Universidade Autónoma de Lisboa.

Borges, João Vieira; Marques, Isabel Pestana; Dias, Eurico Gomes (orgs.) (2018). Diário de

Campanha: General Fernando Tamagnini: Comandante do CEP. Lisboa: Comissão Portu-

guesa de História Militar.

Valença, Fernando (1976). As Forças Armadas e as Crises Nacionais: A Abrilada de 1961. Lisboa: Publicações Europa-América.

The Battle of La Lys: legal, political