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FCHS/Universidade Fernando Pessoa CEPESE / FCT

Resumo: O século XX soube ser um século paradoxal: superação dos limiares técnicos, eco- nómicos e populacionais; destruição maciça, material e humana. Neste jogo a dois tempos, a I Guerra Mundial marca o ciclo da destruição; a sua superação a inversão do ciclo, mas também a tentativa de romper, estruturalmente, o papel da guerra, nas relações entre Es- tados. O ‘contrato’, eivado de circunstâncias embora, foram os tratados decorrentes da Conferência de Paris, o Tratado de Versalhes, nomeadamente. Os resultados, ainda que parcos e porventura contraditórios, abriram timidamente o palco de uma nova ordem in- ternacional: a da cooperação entre Estados e a do entendimento entre povos. No concerto das nações, introduzia-se a dissonância, o paradigma da paz duradoura. O presente artigo analisa, neste contexto, o surgimento, decorrente do Tratado, e brevemente a sequência de duas organizações internacionais em particular: a Liga das Nações e a Organização Inter- nacional do Trabalho. No palco clássico das relações internacionais de então, nenhuma das duas seria fácil de levar à cena. Todavia, quase cem anos depois, o balanço sobre a guerra e a paz, no ‘século do povo’ será porventura diferente.

Palavras-chave: Tratado de Versalhes; Organização Internacional do Trabalho; Sociedade das Nações; paradigma da paz

Abstract: The twentieth century was a paradoxical century: on one hand, it overcame te- chnical, economic and populational limits; on the other, there was material and human mass destruction. In this twofold game, World War I marks the cycle of destruction; its re-

solution represents the inversion of this cycle, but also the attempt to break down, struc-

turally, the role of war, in the relations between States. The ‘contract’, although riddled of circumstances, was the Treaty of Versailles. The results, albeit scarce and perhaps con- tradictory, have timidly opened the stage of a new international order: that of cooperation between States and that of understanding between peoples. In the concert of Nations, the dissonance was introduced: the paradigm of lasting peace. This article analyses, in this context, the emergence, arising from the Treaty, and the sequence of two particular inter- national organisations: the League of Nations and the International Labour Organisation. On the classic stage of international relations of that time neither of them would be easy to bring to the scene. However, almost a hundred years later, the balance on war and peace in the ‘People’s century’ will be eventually different.

Keywords: Treaty of Versailles; International Labor Organization; Society of Nations; pa- radigm of peace.

Introdução

A história contemporânea beneficia de um tipo de fontes que os estudos sobre outras épocas históricas não podem já utilizar – refiro-me à memória oral dos protagonistas, transmitida às gerações próximas e recuperável, como fonte, por meio da metodologia da história oral (Oral History Society, 2018). Por ter decorrido no início do século XX, assim é o caso da I Guerra Mundial e muitos de nós teremos ainda recolhido, na família, memórias dos acontecimentos infaustos que tal guerra produziu. Ao invocarmos a batalha de La Lys, assim me ocorre também invocar as memórias familiares – contribuindo para a memó- ria ‘democrática’ do século XX, pleno de contradições, de luzes e de sombras, de feitos e de malogros, de paz e de guerra, enfim. Aos olhos do historiador, todavia, uma memória que chega ao presente pela boca dos vivos será também uma memória que evidencia elos causais entre um passado recente e o presente que ora vivemos. Na minha própria casa, posicionando-me no ponto de observação do mais jovem membro, vejo bisavós, trisavós, cujo fado os carreou pelos meandros da guerra, curiosamente dos dois lados do conflito: um bisavô, mobilizado em Portugal, prestes a partir, quando os desaires da participação portuguesa o deixam afinal no aconchego do lar (preciosa oferta da sorte, dado o triste destino de tantos que partiram); um tio trisavô, na Alemanha, mobilizado pelo Império Alemão e sobrevivente também dos horrores da guerra, ícone familiar de uma cidadania cumprida no âmago dos valores nacionais (‘pro patria mori’), todavia, família mais tarde devolvida ao horror da história, quando a fidelidade cidadã já não bastou para expurgar o sangue, alegado marcador étnico da inscrição judaica. Aos olhos do historiador, uma banal e singular história como esta convoca questões maiores sobre o como e o porquê da his- tória. Aos olhos da demais ciência social, convoca interrogações prementes sobre os elos passado-presente, já que não se trata de um passado remoto, desligado de nós, do nos- so contexto e dos nossos problemas actuais, pelo contrário. Por isso, estudarmos hoje a I Guerra Mundial significa também perscrutarmos o passado, para entendermos o presente e preparamos o futuro.

Por outro lado, o interesse académico que me move leva-me a observar o peso do para- digma da guerra, no início do século passado, mas também o parto do paradigma da paz, que emerge dessa guerra destrutiva, tímido e incipiente, porventura inconsequente, mas afirmando já os princípios que viriam a ditar, no longo século XX, a emergência do para- digma da paz. Refiro-me aqui, em especial, ao finar do conflito, aos acordos que selam a paz, transitória, incompleta e ferida ainda dos ódios da guerra, mas que contêm também as raízes de um discurso de cooperação, que não de competição bélica entre os Estados. No texto que se segue, aludirei, pois, aos textos constitutivos da Liga das Nações e da Organi- zação Internacional do Trabalho (OIT), vertidos nos tratados de paz do fim da I Guerra, o de Versalhes e os demais (vide infra). Se aquele tratado ficou tristemente conhecido pela dureza das condições impostas aos vencidos e pelo impacto que tal terá tido na sequência de acontecimentos que viriam a levar à II Guerra Mundial, é certo, também, que os pactos do fim da I Guerra continham o gérmen de um novo sistema internacional, albergado à sombra da cooperação entre Estados, da relação internacional pacífica, em última análise de uma humanidade una emergente, ainda que longínqua e teórica.

Na triste alvorada do século XX, por entre os destroços da alegada ‘civilização’, auto-a- niquilada, soavam, pois, acordes dissonantes, como em alguma da música da época14, rom-

pendo convenções e irritando a ortodoxia da guerra, cantando em desarmonia as pautas da paz possível e duradoura.