• Nenhum resultado encontrado

Não vamos aqui relatar o que foi a Revolução de 5 de Outubro de 1910, porque ela não é aquilo que vulgarmente julgamos. Com efeito, a palavra revolução tem vários signifi- cados e, sendo um «conjunto de alterações bruscas e profundas nas estruturas políticas, económicas, sociais e institucionais de uma comunidade, geralmente imposto de forma violenta» (Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa sem Acordo Ortográfico), pode ser também um motim ou revolta. É neste último sentido que a palavra revolução está asso- ciada à data de 5 de Outubro de 1910, porque, no outro sentido – no do conjunto de altera-

ções – ela só aconteceu depois de formado o Governo Provisório, que não foi estável desde

o primeiro dia (5 de Outubro) até à sua dissolução, por vontade própria, em 4 de Setembro de 1911. Na verdade, o conjunto de legislação aprovado pelo Governo Provisório, porque constituído por membros do comité central do PRP, foi revolucionário, introduzindo as- pectos modernos na vida portuguesa e criando condições para profundas alterações no comportamento e na mentalidade dos Portugueses.

Temos de destacar um pormenor muito importante, o Governo Provisório não represen- tava, realmente, todas as tendências republicanas dentro do PRP; assim, quando se elegeu o primeiro Presidente da República e se formou o primeiro Governo Constitucional surgiram os primeiros desentendimentos que, menos de dois anos depois, deram origem à cisão e ao aparecimento de dois outros partidos republicanos: o Evolucionista e o Unionista; aquele, era moderado – de centro, se se preferir – e este era conservador. Liderava o primeiro o Dr. António José de Almeida e o segundo o Dr. Brito Camacho. No PRP ficou a ala mais radical chefiada por Afonso Costa, que assumiu chamar ao seu grupo Partido Democrático.

Percebe-se que a autoria de uma boa parte da legislação mais revolucionária do Governo Provisório se ficou a dever à vontade de Afonso Costa, que, afinal, a havia anunciado muitos anos antes, na tese de doutoramento, em Coimbra (SOUSA, s. d. 13-19), na qual evidencia a sua tendência para ideais socializantes. Esta perspectiva da República ia, de certo modo, ao arrepio do pensamento moderado e conservador dos outros dois líderes republicanos.

Após a vigência do Governo Provisório ia ter início o confronto entre o radicalismo de Afonso Costa – com uma visão alargada do que poderia vir a ser a República Portuguesa – e uma pequena reviravolta política na política monárquica que se havia herdado depois da queda da Monarquia. Julgamos que o peso da tradição terá configurado um tipo de Re- pública aceite por António José de Almeida e Brito Camacho, que pouco ou quase nada se identificava com a República de Afonso Costa. Por isso, parece-nos – e os factos dão-nos manifesta razão – de cada vez que Afonso Costa formou Governo viveu-se, durante esses períodos (Janeiro de 1913 a Fevereiro de 1914; Novembro de 1915 a Dezembro de 1917), a continuação da revolução iniciada no Governo Provisório, embora com outros objectivos. Realmente, no Governo de 1913-1914, Afonso Costa revolucionou os impostos de tal forma que conseguiu, pela primeira vez, desde 1834, superavit orçamental, deixando preparado um orçamento com previsão de novo saldo positivo. No Governo iniciado em Novembro de 1915, Afonso Costa pôs em prática uma estratégia diplomática que visava conseguir a beligerância nacional na Grande Guerra, dando continuidade à revolução que o animava desde os tempos de estudante. E havia razões para tal. Vejamo-las.

Mal eclodiu a guerra, na Europa, em Agosto de 1914, começou a circular o desejo de apoio à Grã-Bretanha, aliada de Portugal, para defesa das colónias. Vamos tentar descodificar esta fórmula, aparentemente simples, de demonstrar o desejo de ser beligerante.

- Defender as colónias do ataque de quem? Quase evidente, aparece hoje a resposta:

- Do ataque dos Alemães, vizinhos no sul de Angola e no norte de Moçambique! - Mas Portugal só tinha estas colónias?

- Não. Portugal tinha os arquipélagos de S. Tomé e Príncipe (na época, o maior produtor mundial de cacau, sofrendo ataques na Câmara dos Comuns, em Londres, provocados pela fúria do maior chocolateiro mundial, o senhor William A. Cadbury) (Afonso; Vladimiro, 1982, 711-713), Cabo Verde (arquipélago estratégico para a navegação do Atlântico Sul pelas embarcações movidas a vapor) e mais outras no Oriente.

Esta nova perspectiva de compreender a ideia de defesa das colónias leva-nos a perceber que havia, na afirmação, uma subtileza só compreensível por parte de quem a soubesse ler. - E o que era preciso para saber ler essa subtileza?

- Saber que, em 1898, Londres e Berlim haviam assinado um tratado de apoio financeiro, a Portugal, com um anexo secreto, no qual se previa a partilha de quase todas as colónias nacionais entre a Grã-Bretanha e a Alemanha, a troco de os Alemães reduzirem o seu in- vestimento na construção da frota naval.

Curiosamente, em Lisboa, em 1912, começou a suspeitar-se que novo acordo estava a ser negociado, em Londres, entre os mesmos dois Governos (Lichnowsky, 1918) o qual só foi interrompido com a eclosão da guerra, em Agosto de 1914. Então, para os mais esclarecidos politicamente, não se tratava de defender as colónias do perigo alemão, mas da Pérfida Al-

bion (Ximénès, 1820, 160). Havia receios e desconfianças da política britânica, cujas raízes

se entranhavam no passado, porque, pelo menos desde as Invasões Francesas, Portugal vivia sob uma feroz tutela britânica.

A Revolução Liberal, em 1820, com a imposição da saída da oficialidade inglesa do país, levando à frente o detestado Beresford, não foi suficiente para reduzir a intervenção britâ- nica nem para colocar Portugal num patamar de igualdade soberana com a Grã-Bretanha. Os constantes desentendimentos políticos, mesmo no período do constitucionalismo libe- ral, deram sempre oportunidade a que a Inglaterra tivesse uma palavra a dizer na corte e na sociedade portuguesas. Essa oportunidade ampliava-se de cada vez que, para colmatar os deficits orçamentais, se tinha de contrair empréstimos em Londres. Portugal, mesmo no final do século XIX, continuou a ser um Estado tutelado pela Grã-Bretanha. E, com des- gosto da ala mais radical dos republicanos, o mesmo aconteceu, mesmo depois de Outubro de 1910. De certo modo, a situação agravara-se, pois, a República, numa Europa essencial- mente monárquica, concitara sobre Portugal o desejo de anexação por parte de Espanha (Torre-Gómez, 1978), sendo a diplomacia inglesa quem continha Madrid em estado letár- gico. Por outro lado, a República prosseguiu a prática de uma política financeira deficitária, contando com as boas vontades da Grã-Bretanha. Assim, parece, não havia como fugir à tutela. Contudo, expliquemos melhor como poderia ser redireccionada essa política e des- feita essa tutela.

Antes do mais, era necessário que em Portugal se deixasse de acreditar na bondade bri- tânica como Velha Aliada; era preciso que se entendesse que a política tem várias caras e que nem tudo o que se passa no seu âmbito obedece aos mesmos princípios éticos da vida dos homens em sociedade.

Depois, era preciso que se percebesse – que toda a gente, em Portugal, percebesse – que, no plano externo e das relações entre Estados soberanos, não há uns que tutelam outros, ou seja, não há Estados mais importantes do que os restantes, ainda que, alguns, sejam militarmente mais poderosos ou economicamente mais ricos.

Em seguida, tornava-se imperioso fazer compreender que o Estado credor, porque em- presta ou é fiador de empréstimos, não passa a ter sobre o Estado devedor qualquer tipo de superioridade ou de autoridade.

Por fim, impunha-se a percepção, em Portugal, por toda a gente com alguma ilustração, que, tanto ou mais importante do que ser, no plano internacional, é parecer, isto é, o que se julga de um Estado é mais relevante do que aquilo que ele é na realidade.

Ora, estes princípios resultantes da prática das relações internacionais eram atropelados pelas práticas políticas internas herdadas do passado, cheias de manhas, de preconceitos e de irregularidades. De tudo isto não estava isento, também, o Partido Democrático, sim- plesmente nele pugnava-se por um novo tipo de projecção internacional bem diferente do que se havia herdado da Monarquia. Era nisto que se consubstanciava uma parte do sentido

revolucionário de Afonso Costa e dos seus seguidores.

Para se perceber a forma como o líder mais radical dos políticos republicanos pretendia executar a sua estratégia internacional, temos de passar à análise da forma como foi vivida a guerra em Portugal, desde a primeira hora.

A Guerra

Nos primeiros dias de Agosto de 1914, Lisboa, através do seu ministro plenipotenciário em Londres, Manuel Teixeira-Gomes, interrogou o Foreign Office sobre o que a Grã-Bretanha esperava do Governo português. A resposta não demorou: o Governo de Sua Majestade desejava que Portugal se declarasse não neutral e não beligerante.

Vejamos quais eram os benefícios para ambos os Estados pela aceitação desta postura portuguesa perante o conflito que acabava de estalar e que todas as chancelarias julgavam iria ser de curta duração.

Para a Grã-Bretanha era absolutamente necessário que Portugal não fosse neutral, pois, sendo-o, perderia certas vantagens que beneficiariam tanto os navios da Armada britânica como o seu Exército, já que havia normas muito precisas para a permanência de embar- cações de guerra em portos neutrais tal como as havia para a travessia de territórios. Ora, a Grã-Bretanha carecia de desembarcar em portos ultramarinos portugueses tropas para reforço das suas colónias africanas sem acesso ao mar e de abastecer os seus navios com carvão nos portos atlânticos nacionais. Objectivamente, a não neutralidade portuguesa servia objectivos políticos e militares britânicos.

Para Portugal a situação de não neutral poderia representar uma excelente vantagem, pois colocava-o, sem o desgaste da beligerância, na mesa das conversações finais do con- flito, se fossem os Aliados os vencedores da guerra. Mas essa vantagem desfazia-se, de

imediato, com a segunda parte do desejo britânico: que não fosse beligerante. Ora, não sendo beligerante, Portugal tinha de ser neutral, mas essa condição estava-lhe vedada pela exigência de Londres e assim lá ia por água abaixo a possibilidade de estar na mesa das negociações finais. Ficava evidente, agora sem dúvidas, o estatuto de Estado tutelado pela Grã-Bretanha.

Para o Reino Unido, Portugal não ser beligerante, trazia vantagens, pois Lisboa nunca poderia reivindicar qualquer tipo de benefícios ou compensações materiais no final da guerra, exactamente por não ter sido beligerante.

Enfim, a Velha Aliada ganhava vantagens e Portugal perdia, em toda a linha, qualquer tipo de migalhas que pudessem cair da mesa da conferência da paz.

Pior do que as negociações de paz, que iam ainda longe logo no começo da guerra, foi a instabilidade interna que este desejo inglês veio causar, pois serviu para dividir, de imedia- to, as opiniões nacionais: por um lado, ficaram os que acreditavam na bondade britânica e, pelo outro, os que duvidavam dela. Mais grave ainda, foi a declaração feita, no Parlamento, por Bernardino Machado, pois era tão ambígua que a França – Estado invadido e carente de todos os apoios internacionais –, a princípio, a tomou como uma afirmação de beligerância até que sofreu o terrível desengano (Fraga, 2012 a).

João Chagas, ministro plenipotenciário em Paris, homem informado quanto à Grã-Bre- tanha e ao seu usual meio de proceder, político e jornalista experiente, percebeu a urgência de uma tomada de posição em França e pediu autorização a Lisboa para se deslocar a Por- tugal, sem que, todavia, em Bordéus, falasse primeiro com o ministro dos Negócios Estran- geiros francês e lhe desse conhecimento das suas intenções, ao mesmo tempo que, com subtileza, lhe pediu auxílio para conseguir levar a bom porto a missão que o fazia deslocar- se ao seu país (Fraga, 2012 b). A verdade é que tudo resultou como ele previra: a França pediu auxílio a Portugal, através de este ceder, àquela, armamento que lhe fazia falta. Mas Portugal tinha uma aliança com a Grã-Bretanha e não com a França. Assim, Paris tinha de envolver Londres no pedido de auxílio e, deste modo, o Governo britânico tinha de recuar na sua posição inicial. O laço estava a apertar o Foreign Office.

No entanto, na Grã-Bretanha tinha-se conhecimento perfeito das incapacidades logís- ticas portuguesas e, também, dos desentendimentos políticos. Foi nisto que se apostou.

Manuel de Arriaga, Presidente da República, com o auxílio indirecto de Machado Santos e de parte da oficialidade do Exército da guarnição de Lisboa – através do chamado Golpe

das Espadas – levou a que o Gabinete Azevedo Coutinho – claramente pró-beligerante –

apresentasse a demissão e fosse, por iniciativa presidencial, nomeado o general Pimenta de Castro para formar Governo, com a intenção de retardar ou acabar com os preparativos beligerantes resultantes do pedido francês. Desta maneira a Grã-Bretanha, sem grande es- forço, viu Portugal ficar sem o armamento, que seguiu para França, e sem concretizar o seu desejo de beligerância. Internamente, os não-beligerantes encarregaram-se de faci- litar os objectivos do Governo de Londres. Voltava-se à situação anterior: não beligerante e não neutral. Agora, os adeptos da beligerância – não por ela própria, mas como meio de alcançar um objectivo nacional e internacional, como já explicado – tinham de reverter a situação interna e tentar alterar a situação externa. Tudo se complicava.

O Partido Democrático teve de recorrer à revolta militar para conseguir alterar a po- lítica nacional. Foi assim que, depois de o general Pimenta de Castro, em Março de 1915, ter começado a governar sem apoio do Parlamento, impedido de reabrir, se iniciou uma

conspiração que levou, em 14 de Maio, ao derrube do Governo e à resignação do Presidente Manuel de Arriaga o qual, declaradamente, havia entrado em ruptura com a política beli- gerante.

Quando Afonso Costa, depois de algumas peripécias de ordem não política, assumiu, fi- nalmente, a presidência do Ministério, em 29 de Novembro de 1915, estavam criadas as condições para, novamente, se definir toda a estratégia condutora à beligerância e, por conseguinte, capaz de levar Portugal à paridade de soberania com a Grã-Bretanha, sonho e objectivo do Partido Democrático. Todavia, um obstáculo se levantava: a oportunidade de o Governo britânico pedir a intervenção de Portugal na guerra. Havia, por conseguinte, de criá-la. Ela surgiu poucos meses após o início da governação, tendo como base de partida o facto de elevado número de navios mercantes alemães e austríacos, no começo da guerra, tomando como princípio a neutralidade portuguesa, se terem recolhido em portos nacio- nais. Dada a actividade destruidora dos submarinos germânicos sobre os navios mercantes britânicos, a tonelagem de transporte inglesa estava bastante reduzida, facto que afectava o comércio aliado. Londres carecia de todos os navios possíveis e mais de setenta estavam paralisados nos portos portugueses; impunha-se requisitá-los ou tomá-los como presa. O Governo de Lisboa fez aprovar, na lei que regulava o preçário e a distribuição dos géneros alimentares, um artigo no qual se permitia a requisição de todos os meios de transporte estrangeiros estacionados em território nacional e respectivas mercadorias (MARQUES, 1974). Estava montada a armadilha.

Enquanto se preparava o processo de levar Londres a solicitar o auxílio de Portugal, o Governo de Lisboa, para proceder ao rearmamento, organização e equipagem do Exército tinha de pedir um empréstimo de três milhões de libras à Grã-Bretanha e o Foreign Of-

fice, pela boca de Sir Edward Grey, resolveu, também, armadilhar a resposta, de modo

a obrigar o Governo português a requisitar os navios sem alterar o estatuto imposto pela Inglaterra. E fê-lo do seguinte modo: emprestava dois milhões e o terceiro milhão ficava condicionado a Lisboa requisitar os navios alemães e austríacos (Vicent-Smith, 1975).

Naturalmente, esta era a contra-armadilha britânica. Em Portugal sentiu-se o efeito do

jogo de Londres. Mais uma vez, a Velha Aliada estava a fugir a invocar a aliança e a impor

ao Governo da República outro favor. Contra isso reclamaram os ministros em reunião do Gabinete (Fraga, 1912 a, 286-297). Havia que fazer braço de ferro. Mas, na Grã-Bretanha sentia-se terrivelmente a falta de navios e cerca de duzentas e quarenta mil toneladas bru- tas representava um auxílio extraordinário. Deste modo, por pressão do chamado Gabi-

nete de Guerra, o Foreign Office teve de apelar para a requisição dos navios ao abrigo da

aliança luso-britânica. Estava ganha uma parte da partida; havia que garantir a restante. Para tal, em Lisboa, no designado quadro do Tejo, os navios alemães foram tomados por destacamentos da Armada, como se de um acto de guerra se tratasse, e, no final, um navio de guerra português disparou vinte e um tiros de salva saudando o feito, com o claro intuito de provocar o ministro plenipotenciário alemão em Lisboa, barão von Rosen. E conseguiu- se o efeito desejado: a Alemanha declarou guerra a Portugal. Estavam alcançados todos os objectivos portugueses.

Restava, para se consumar a política revolucionária de restauração da dignidade in- ternacional portuguesa, fazer marchar para as trincheiras de França uma grande unidade militar, cujo efeito táctico e estratégico seria quase nulo, mas cujo efeito diplomático e político era de importância máxima. Foi o que aconteceu nos primeiros dias de Fevereiro

de 1917. Contudo, em Londres não se deixou de desenvolver uma política de obstrução aos objectivos portugueses; agora, se não se podia já evitar a beligerância de Portugal, havia que a denegrir, reduzindo-a a uma expressão táctica e estratégica capaz de ser menospre- zada aquando da conferência da paz. É o que vamos ver de seguida.