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A constituição de Nanetto e dos demais personagens

No documento Nanetto Pipetta : modos de representação (páginas 93-96)

Não é preciso que transcorram muitos episódios da narrativa para que se saiba como

Nanetto é. E, o que se vê é que ele vai se manter sem grandes mudanças ao longo da narrativa.

O protagonista de Aquiles Bernardi consegue manter, durante o transcorrer de toda a narrativa, os mesmos traços que o caracterizam desde o princípio. Esses contornos fazem a representação do desafortunado e desajeitado indivíduo do qual se podem prever, de certo modo, as atitudes. Avesso aos grandes esforços, tanto de ordem física quanto cognitiva, segue por boa parte da narrativa. Uma tentativa de mudança se esboça quando, quase ao término da narrativa, Nanetto decide levar a vida a sério, quer casar e para isso busca no trabalho os meios para adquirir sua meia colônia. Entretanto, antes de alcançar o que pretendia, acaba morrendo afogado no rio das Antas.

Nanetto é um personagem que se mostra de todo desde o início da narrativa. A partir

daí, o leitor se vê envolvido não em descobrir-lhe novos traços de personalidade, mas em imaginar como o protagonista, dentro das possibilidades que lhe foram atribuídas pelo seu criador, reagirá frente a cada novo desafio. Nanetto talvez constitua o personagem que é, de certa forma, previsível. E talvez seja exatamente nesse seu caráter de previsibilidade que resida a graça frente ao indivíduo que, pelo fato de ser conhecido em suas limitações, nos convida a acompanhar de que maneira se colocará frente às adversidades que encontrará pelo caminho.

Personagens como Nanetto que apresentam determinados traços e que se mantêm sem grandes modificações ao longo da narrativa, foram definidos por Forster (apud MUIR, 1928)

como “personagens planos”. Essa denominação refere-se à pouca ou inexistente sensação de profundidade que esse tipo de personagem apresenta em sua forma de constituição. O personagem plano o é exatamente pelo fato de poder ser definido sem grandes dificuldades. Suas características podem ser reconhecidas dispensando-se a necessidade de parênteses ou ressalvas sobre diferentes nuanças em seu modo de pensar ou de agir. Diferentemente do personagem que se descobre ao longo da narrativa, o personagem plano reage da forma como o faz exatamente pelo fato de se saber, desde o início da narrativa, que ele é assim e que, sendo dessa forma, só lhe resta passar pelos episódios com os “instrumentos” de que dispõe, com as qualidades e limitações que, já de início, lhe haviam sido atribuídas.

Forster já afirmava que

personagens planos eram chamados “humours” no século XVIII, e às vezes são chamados de tipos e às vezes, caricaturas. Em sua forma mais pura são construídos em volta de uma única idéia ou qualidade: quando há mais de um fator neles, temos o início de uma curva em direção ao esférico, [...] os personagens planos [...] são facilmente reconhecidos sempre que aparecem e lembrados com facilidade pelo leitor depois. (apud Muir, 1928, p. 80)

À parte a questão do humour de que se tratará mais adiante, o apontamento de Forster sobre a constituição dos personagens planos – como figuras reconhecidas e lembradas com facilidade pelo leitor – merece que se lhe dedique uma reflexão, ainda que breve. Os personagens de Aquiles Bernardi – e, com eles, também o protagonista – foram constituídos como figuras planas dentro da narrativa. Afirmar isso implica analisá-los além do limite abrangido pelas discussões que se voltam à pura técnica literária. Explica-se. Aquiles Bernardi escrevia para um determinado público. Seu público, além de reconhecer nas histórias formas do dialeto que utilizava em seu cotidiano, acabou encontrando, nelas, figuras que poderiam ser encontradas também no seu dia-a-dia. Essas figuras, por sua vez, caracterizavam-se pelo fato de ser construídas sem grandes níveis de complexidade – ou profundidade. Isso mostra que, mais do que preocupado com a complexa organização de seus personagens, é possível que o criador de Nanetto estivesse voltado para a construção de figuras possíveis não só de serem reconhecidas, como compreendidas e aceitas como possíveis de serem imaginadas por quem as lesse. É possível que o foco de Aquiles Bernardi estivesse voltado para o que poderiam representar os personagens que construía, muito mais do que para a própria representação destes numa mais complexa construção literária.

Construindo personagens planos, Aquiles Bernardi possibilitou que suas criaturas pudessem ser compreendidas e reconhecidas pelo seu leitor sem grandes dificuldades. Mais do que isso, ao invés de voltar sua atenção para descobrir novas faces dos personagens que pudessem surgir a cada novo contexto, o foco de atenção do leitor acabava voltado para como os personagens, ao serem mostrados sem reservas, reagiriam frente às situações em que se viam inseridos.

Por outro lado, ao definir Nanetto como um personagem que se aproxima do “tipo” em sua maneira de constituição, não se estará afirmando, com isso, que ele seja uma representação do típico imigrante italiano. Se for para ser um “tipo”, Nanetto talvez possa ser definido como o típico sonhador, aquele que espera alcançar a fortuna, de preferência, sem grandes esforços. Aquele que se vê em constante desafio frente à sua pouca destreza com relação às situações que o meio lhe apresenta em seu percurso. Ingênuo, lhe são atribuídas limitadas noções da realidade e de concepções de vida que, descontextualizadas da visão do grupo, e apresentadas de forma peculiar, acabam por conduzir o leitor ao riso.

Se Nanetto é construído de forma a poder ser definido como um personagem plano, com os demais personagens de Aquiles Bernardi não é diferente. A diferença maior talvez seja que, de maneira distinta ao que ocorre com o protagonista da narrativa de Aquiles Bernardi, dos demais personagens o que se sabe é o estritamente necessário para que a narrativa possa se desenrolar. Ribeiro (2005) já ressaltava a falta de maiores descrições no que se refere às personagens secundárias de Aquiles Bernardi. Nanetto é colocado no centro das atenções na narrativa. Das demais personagens da narrativa o autor de Nanetto se limitou a construir aquilo que se fazia necessário para que cada episódio pudesse ocorrer, não mais do que isso.

O que se sabe das personagens secundárias são denominações pouco específicas, relacionadas, em geral, com o papel que essas personagens desempenhavam ou com a atividade que exerciam dentro do contexto em que foram representadas. Há figuras conhecidas como la vécia, le donne, il paron, el dotore, dei litratadori,53 que surgem e desaparecem da narrativa sem que saibamos delas muitas informações além daquilo que o nome que as designa é capaz de informar, e suficiente para que se compreenda sua participação na narrativa.

53 Essas figuras são, respectivamente, a velha, as mulheres, o patrão, o médico e o indivíduo que tira “litrati”, ou seja, o fotógrafo.

A brevidade com que essas figuras secundárias aparecem e saem da narrativa talvez venha confirmar a idéia que já se apresentava anteriormente. É possível que o autor, na maneira como construiu os personagens de sua narrativa, estivesse mais interessado em perpassar as lições de cada episódio do que, com detalhes ou minuciosas descrições, ater-se à constituição de cada um de seus personagens. O que ele informava de cada personagem parecia o suficiente, a partir do momento que, com aquelas informações, fosse possível ao leitor construir uma idéia de que tipo de figura se fazia presente naquele contexto.

No documento Nanetto Pipetta : modos de representação (páginas 93-96)