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Poética de Aquiles Bernardi

No documento Nanetto Pipetta : modos de representação (páginas 82-86)

A maneira como Aquiles Bernardi elaborou aspectos da cultura da imigração italiana dentro de sua narrativa de ficção, remete para aquilo que, no universo compreendido pelos estudos literários, é delimitado pela definição de poética. O termo, como afirma Staiger (1972), é de origem grega e abrevia a expressão poetikè téchne, algo que talvez pudesse ser compreendido como a técnica da poesia. Entretanto, a real abrangência desse conceito se estende para limites que ultrapassam aqueles cerceados pela poesia e, logo, nesse contexto, o estudo de produções em forma de prosa também passou a fazer parte. É partindo desse fator que se passa a denominar o fazer literário de Aquiles Bernardi como a sua poética.

Para compreender o que constitui esse fazer, volta-se para a menção de Staiger ao “[...] antigo ensinamento da arte da poesia, de toda poética que se apóia na antiga poetikè téchne, pressupõe o conhecimento da essência da poesia, se possível em sentido geral”. (1972, p.181) Logo, o que se tem é uma nova indagação que conduz à tarefa de compreender o que, de fato, constitui essa chamada “essência” da poesia. Seu sentido geral poderia abranger tanto as questões relativas à forma – que a definem como poesia – quanto os elementos que, além da forma, contribuem como constituintes semânticos do que se apresenta em cada elaboração definida como poética. No que se refere à prosa de Aquiles Bernardi, pretende-se analisar o segundo, compreendido a partir da maneira como é apresentado pelo primeiro. Ou seja, compreender a poética do autor de Nanetto Pipetta implica buscar os sentidos que ele foi

capaz de construir, a partir dos elementos que utilizou: uma linguagem de sentidos compartilhados por determinado grupo cultural e uma forma de lhe atribuir contornos que a imaginação do texto de ficção permitia que lhe fossem agregados. Esses são os constituintes da poética de Aquiles Bernardi, a partir dos quais se parte em busca da compreensão dos sentidos construídos por esse frade capuchinho.

O cuidado revelado na tarefa de organização e composição dos elementos de uma poesia remonta para sua origem e para os significados que lhe foram atribuídos desde seu começo.

O tipo de composição que chamamos de ‘poética’ era ab initio um recurso inventado para servir às necessidades de registro e preservação em uma época de comunicação inteiramente oral. Essa preservação só podia acontecer nas memórias vivas de seres humanos reais. A sintaxe de enunciados feitos na poesia oral tinha, portanto, de conformar-se a certas leis psicológicas que operam para garantir alguma fidelidade na repetição. (HAVELOCK, 1996, p. 239)

Em tempos em que o legado de uma determinada cultura era preservado e transmitido pela oralidade, a poética se definia como uma forma de organização dos enunciados elaborados, de modo que pudessem ser preservados pela memória dos indivíduos pertencentes àquela comunidade de cultura de tradição oral. É provável que, para tanto, as técnicas de preservação se utilizassem de recursos que facilitassem a memorização, tais como recursos sonoros da linguagem, como rimas e trocadilhos. Entretanto, os recursos lingüísticos por si, não compunham toda a “técnica poética”, isso porque, além de uma forma que favorecesse a memorização, talvez fosse necessário que a própria construção a ser memorizada não o fosse, de todo, estranha aos sentidos conhecidos por quem a procurava memorizar. Em outras palavras, na mesma medida em que recursos técnicos da linguagem oral colaboravam para a preservação de determinados elementos pela memória, era necessário também que essa mesma construção atendesse a princípios culturais que sustentassem esse processo.

A essa altura, é possível pensar em algo que talvez pudesse ser definido como a necessidade de uma “competência cultural” na realização desse processo. Para tanto, esse tipo de competência deveria ser compartilhado tanto por quem compunha quanto por quem recebesse o texto produzido, isso para que a composição pudesse ser – mais do que memorizada – compreendida nos significados que propunha. No momento em que se percebe que a elaboração de um elemento cultural comporta elementos técnicos do uso da linguagem e, juntamente com esses, elementos culturais que a sustentem, torna-se possível

pensar que o processo de elaboração denominado poética possa vir a abranger mais do que a pura técnica presente na construção de uma poesia – como em sua concepção primeira – , e seja determinada também pela maneira como, nessa construção, os elementos de uma cultura acabaram sendo representados.

Logo, o que se vê é que o universo da criação poética e das tentativas de compreensão desse processo não está limitado às produções que se definem a partir da denominação de poesia. Outrossim, a prosa passa a se mostrar como uma produção que, em alguma medida e de alguma forma, demanda um percurso de construção de significados. No estudo da poética da prosa, de maneira similar ao que se viu na poesia, também haverá a utilização de determinados recursos em busca da construção de um sentido desejado. É possível que esses recursos se voltem a questões diversas da primeira necessidade de memorização, antes mencionada. Isso não é mais do que o fazer se estruturando a partir dos contornos de cada tipo de produção literária, voltado para corresponder às características do período em que foi produzido. Por outro lado, a necessidade de construir a representação de sentidos compartilhados culturalmente se mantém. É ela que, no universo da prosa de Aquiles Bernardi, fará com que surjam tantas expressões e modos de dizer que – pela gama de nuanças de sentidos culturais que comportam – não comportam a possibilidade de ser traduzidos em sua plenitude. Porém, mesmo assim, sendo compartilhados por quem os produziu e por quem se depara com eles dentro de um texto literário.

Partindo-se desse raciocínio, a poética, como afirma Todorov, torna-se um conceito capaz de abranger produções que vão da prosa à poesia, uma vez que “[...] o que ela estuda não é a poesia ou a literatura, mas a ‘poeticidade’ e a ‘literalidade’. A obra singular não é para ela um fim último; quando se detém numa obra e não em outra, é porque esta deixa transparecer de maneira mais clara as propriedades do discurso literário”. (2003, p. 51).

Quando fala das propriedades do discurso literário, Todorov acaba possibilitando uma análise que vai além das vertentes literária e lingüística. Isso porque, para se elaborarem significados que façam sentido, em um determinado grupo, é necessário que, juntamente com a linguagem e com a forma literária, se façam presentes representações de referências culturais passíveis de serem reconhecidas pelo grupo que as recebe.

Dessa maneira, o que Todorov propõe em sua definição nada mais é do que o reconhecimento de um ponto ao qual chegou o conceito de poética em seu processo de evolução, que, mesmo passando da oralidade para a escrita, mantém-se, em algum sentido, preservada em suas origens, uma vez que continua a ter na technè seu maior objeto de estudo.

Hoje, estudos da poética ainda buscam compreender as técnicas que, em outras épocas, facilitavam a preservação de manifestações culturais com o auxílio da memória dos indivíduos de cada grupo.46 No entanto, passou-se também a perceber a importância de compreender como determinado texto cultural foi elaborado, a fim de que resultasse em um fazer de abrangências tais que o permitissem ser, ao mesmo tempo, individual e coletivo, regional e universal em um mesmo autor, como é o caso que se vê na obra que compõe o

corpus deste trabalho.

Na análise aqui proposta pretende-se elaborar uma leitura da representação dos elementos culturais da cultura da imigração italiana na poética de Aquiles Bernardi. Essa proposta de análise é, de certa forma, mencionada por Todorov no fim de sua discussão sobre a evolução do conceito de poética:

[...] nosso século presenciou um renascimento dos estudos de poética, vinculado a várias escolas críticas: o formalismo russo, a escola morfológica alemã, o New Cristicism anglo-saxão, os estudos estruturais na França (em ordem de surgimento). Essas escolas críticas (sejam quais forem as divergências entre elas) situam-se num nível qualitativamente diferente do que qualquer outra tendência crítica, na medida em que elas não procuram nomear o sentido do texto, mas descrever seus elementos constitutivos. Por isso, o método da poética tem afinidade com o que um dia se poderá chamar de “a ciência da literatura”. (2003, p. 319)

A descrição de alguns dos elementos constitutivos da poética acima mencionados é o que propõe este estudo. Isso porque uma análise literária, lingüística e cultural da poética de Aquiles Bernardi que contemplasse os aspectos presentes em cada um desses segmentos na obra demandaria um percurso que ultrapassaria ao que se considera realizável nesta etapa de estudos. Essa análise constrói-se com a consciência da importância do diálogo com a lingüística e a literatura, uma vez que, somente com a idéia desse “todo”, presente na poética de Aquiles Bernardi, é que se acredita ser possível alcançar uma proposta de compreensão dos significados construídos pelo autor de Nanetto.

A escolha do viés dos estudos culturais não se deu de maneira aleatória, mas pela possibilidade de se analisar como foi construída, pelo autor de Nanetto Pipetta a representação dessa que é uma das bases culturais da formação do povo gaúcho – a cultura da imigração italiana no Nordeste do Rio Grande do Sul. Mais do que isso, nesse processo de elaboração, tem-se a oportunidade de compreender quais e que tipo de posicionamentos foram

46 É o que se vê em estudos como o de Havelock (1996) In: A musa aprende a escrever: reflexões sobre a

construídos a partir da questão cultural e qual sua possível contribuição à maneira como Aquiles Bernardi construiu suas representações dessa cultura.

Quando reflete sobre a poética, Staiger afirma que “ela se anuncia como uma contribuição da Ciência da Literatura para o problema da Antropologia Geral, quer dizer, ela esforça-se para provar como a essência do homem aparece nos domínios da criação poética” (1972, p.197). Ao levar em conta o pensamento de Staiger, pode-se compreender que o estudo do texto literário colabora como indicador para que se percebam indícios que fazem com que se reconheça aquilo que ele definiu como a “essência do homem” reconhecida naquilo que ele produz e na forma como o faz, analisada seja em seus contornos literários, seja culturais.

Dessa forma, quando se faz menção ao termo poética, no decorrer deste estudo, estar- se-á fazendo referência à construção conceitual que aqui se apresentou. Aqui, poética não é algo limitado ao estudo da forma característica da poesia. É, mais do que isso, algo que oportuniza a compreensão da representação da cultura da imigração italiana na maneira como foi concebida na obra que constitui o corpus deste trabalho.

No documento Nanetto Pipetta : modos de representação (páginas 82-86)