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O fazer que conjuga visões culturais de universos distintos

No documento Nanetto Pipetta : modos de representação (páginas 108-112)

A maneira como essas nuanças são concebidas na narrativa de Aquiles Bernardi faz com que se retomem alguns aspectos já mencionados nos primeiros capítulos deste estudo. A forma como esse autor conjugou mais de um sentido, para que sua representação alcançasse o resultado que se vê em Nanetto, conduz para que se pense como conhecimentos de mais de uma área, ou de mais de uma origem cultural, foram conjugados para que ele alcançasse conseguir esse misto de doutrinação e riso, em meio às aventuras daquele que se vê inserido em uma representação que se utiliza, dentre outros elementos, de traços da cultura da imigração italiana. Aquiles Bernardi foi um frade que construiu um personagem capaz de protagonizar as situações de que seu criador necessitava em cada contexto. Entretanto, construir não só o protagonista como o narrador, e suas participações na narrativa, direciona este estudo à tentativa de compreender que tipos de pensamento acabaram perpassados nessa criação literária.

Burke (1989), ao falar dos frades, definia-os como indivíduos “anfíbios ou biculturais”. Ao classificá-los dessa forma, acabava por lançar luzes sobre um tipo peculiar não só de formação, como de atuação característicos de determinados segmentos do clero. Desde sua formação até a realização de pregações, os frades viam-se inseridos em universos culturais de contornos significativamente distintos. Por outro lado, a esses frades cabia a

tarefa de estabelecer uma comunicação entre as realidades de dois mundos culturais – a cultura popular, aqui representada pela cultura da imigração italiana, e a cultura douta, aqui representada pela cultura clerical –, que, embora com características distintas entre si, tinham existência paralela. A figura do frade, a uma certa altura da história, passa a corresponder a de um indivíduo diferenciado dos demais indivíduos da comunidade. Essa diferenciação dava-se a partir do momento em que a ele era oferecida uma formação caracterizada pelo acesso ao conhecimento característico da cultura douta. O frade não apenas teria acesso à cultura douta, como a ele cabia a tarefa de encontrar formas de transmiti-la a outras esferas sociais que não a sua.

Aí está a questão. Os frades eram formados no conhecimento da cultura douta, mas, depois, de certa forma, viam-se envolvidos na tarefa de reconstrução desse conhecimento, atribuindo-lhe traços que pudessem torná-lo acessível ao povo. Para isso, o conhecimento das universidades não bastava. Era preciso conhecer a cultura para a qual o conhecimento douto deveria ser transmitido. Mais do que isso, era preciso que o frade compartilhasse da cultura do povo, dos sentidos que ela guardava, da força de cada expressão, quando inserida em determinado contexto. Somente quando conseguia reelaborar o conhecimento que tinha a transmitir, dentro dos códigos culturais do grupo, que receberia esse conhecimento, é que o religioso conseguia estabelecer a ponte que lhe permitiria alcançar êxito em sua tarefa: fazer com que chegasse ao povo, de maneira compreensível, aquilo que ele estava incumbido de transmitir. Fossem ensinamentos, a importância de determinadas práticas ou mesmo a idéia de punição frente a determinados comportamentos, quaisquer ensinamentos da cultura douta só seriam compreendidos na cultura popular se nela fossem representados, a partir de signos culturais e lingüísticos reconhecidos pelo grupo que os recebia.

O fazer de Aquiles Bernardi mostra que o trânsito do conhecimento, pertencente ao universo da cultura douta para o da cultura popular, foi realizado de forma que se revelou capaz de transmitir determinados sentidos, a partir da maneira como alguns elementos específicos foram utilizados.

Aquiles Bernardi constrói uma representação da cultura da imigração italiana no Rio Grande do Sul. Para que tenha conseguido chegar ao resultado que alcançou, mais do que o conhecimento da cultura douta era-lhe essencial conhecer os traços daquilo que aqui se definiu como a cultura da imigração italiana no Rio Grande do Sul. Conhecendo essa cultura em suas nuanças, na significação comportada em suas muitas expressões – muitas das vezes intraduzíveis –, é que ele pôde construir episódios em que descrever uma surra, como o lugar

dove no bate el sole, torna-se algo de uma significação cultural de tal forma repleta de

sentidos, que uma descrição puramente lingüística deixaria a desejar, em muito, o que ela significa.

O material de construção literária de Aquiles Bernardi constituía-se de uma cultura que – como todas as outras – diferenciava-se das demais, por possuir significados e uma maneira de viver expressos em seus sentidos particulares. A opção pela cultura da imigração italiana não surge como fonte para a representação de maneira aleatória. Aquiles Bernardi é filho de imigrantes italianos, faz parte dessa cultura e, por isso, compartilha seus significados de maneira particular. Isso já se constituiria em um importante indicador na escolha de Aquiles Bernardi. Contudo, não seria por certo o único. Quando se torna frade, Aquiles Bernardi tem contato com a cultura douta. Mais do que isso, vê-se frente à já mencionada necessidade de reconstruir o pensamento da cultura douta. Essa reconstrução, pensada dentro dos limites comportados pela representação, precisaria ser estruturada a partir de elementos, de formas de expressão, de determinados posicionamentos, que pudessem ser reconhecidos como parte da cultura da imigração italiana. Para utilizar a definição de Burke, Aquiles Bernardi é um indivíduo bicultural. A ele cabe a tarefa de transmitir, em suas representações, elementos da cultura douta, de maneira que esses pudessem ser assimilados pela cultura popular representada nesse contexto de imigrantes italianos.

Foi essa característica dos frades, como indivíduos biculturais em sua relação com o povo e com a cultura douta, que acabou, de alguma forma, perpassando a própria construção dos traços da representação da cultura da imigração italiana na narrativa de Aquiles Bernardi. Ou seja, de forma parecida com o trânsito estabelecido na realidade, quando os sermões precisam ser elaborados pelos frades, de maneira que possam ser compreendidos pelo povo, Aquiles Bernardi conseguiu, em sua obra de ficção, representar traços da cultura da imigração italiana, sem distanciá-los de sua relação com uma cultura, que se deixa revelar pelos pressupostos implícitos em cada episódio, do que seja certo ou errado dentro de determinado contexto representado em uma narrativa de ficção.

Aquiles Bernardi estabelece, em sua narrativa, o diálogo entre a cultura da imigração italiana e a cultura clerical. Ele faz isso da seguinte forma: primeiro, conhece os significados da cultura da imigração italiana no Rio Grande do Sul como parte deles. A partir do que conhece desse universo, Aquiles Bernardi passa a se utilizar dos recursos da construção da narrativa de ficção, para fazer com que os episódios se desenrolem e cheguem a desencadear o efeito que ele busca. Para isso, ele não constrói personagens complexos ou portadores de

mistérios incessantes. Os personagens de Aquiles Bernardi se mostram ao seu leitor sem reservas, e isso faz com que a atenção se volte não para a descoberta do que cada personagem é, mas para a maneira como poderá agir dentro de determinada situação. Como os contornos de cada personagem são delimitados desde cedo, acabarão por fazer com que cada personagem se condicione a um comportamento caracterizado por alguns traços, ao invés de outros.

As atitudes dos personagens em cada episódio – em especial as atitudes do protagonista – desencadeiam, mais do que o simples desenrolar da narrativa, a menção a uma série de significados culturais compartilhados por quem constrói e por quem lê a narrativa. Com uma diferença: quem constrói, mais do que compartilhar significados representados, tem a possibilidade de manipular a ação dos personagens, a fim de que alcance representar determinada situação da maneira como espera, podendo apontar, com os resultados que alcança, o que pode resultar de um posicionamento específico dentro de um determinado contexto.

Ao conhecer alguns dos recursos de construção literária e os resultados que poderia alcançar com sua utilização, Aquiles Bernardi passa a fazer a ponte de que se falava há pouco. Aquiles Bernardi consegue, utilizando-se de elementos da cultura da imigração italiana, construir em sua narrativa a representação de situações em que deixa implícitos certos posicionamentos da cultura douta, da qual é portador. Daí o traço de doutrinação que perpassa cada um dos episódios. É construindo uma representação com traços de uma cultura popular que ele consegue se fazer entender pelo povo. É através dos sentidos que compartilha com essa cultura, e neles, que consegue transmitir os valores e o conhecimento da cultura douta. Dessa forma, acaba atribuindo à narrativa caracteres que a aproximam do tipo de texto que tem uma moral, que é capaz de desencadear afirmações do tipo: “– Viu? Quem não agir de determinado maneira, acaba acontecendo isso ou aquilo. Portanto, aja dessa maneira.” A maneira recomendada, não por acaso, era a considerada adequada dentro dos parâmetros do clero, adequados ao contexto de devoção e religiosidade presentes, tanto na cultura da imigração italiana quanto em sua representação.

Nanetto é o instrumento que Aquiles Bernardi põe à observação de seu narrador. Nanetto é constituído como o herói às avessas e, se não servirem para nada além do riso, suas

investidas servirão, ao menos, para se ter um exemplo de como não agir, para se chegar a alcançar o êxito. O narrador traz consigo aqueles sentidos possíveis de serem compartilhados pelos indivíduos da cultura da imigração italiana, e as situações que narra, mesmo não sendo

reais, são possíveis de ser imaginadas, uma vez que se embasam em maneiras de pensar a vida que fazem (ou poderiam fazer) parte de um contexto real. Pelo riso desencadeado na narração, devido as atitudes de Nanetto, têm-se as repreensões que essa cultura faz ao modo de agir do protagonista. Nesse riso compartilhado, residem as verdades pertencentes a uma cultura, que a sustentam naquilo em que seus indivíduos acreditam e tomam por certo.

No documento Nanetto Pipetta : modos de representação (páginas 108-112)