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A transmissão de saberes e conhecimento na cultura popular e na cultura douta

No documento Nanetto Pipetta : modos de representação (páginas 34-36)

2.2 Cultura popular

2.2.5 A transmissão de saberes e conhecimento na cultura popular e na cultura douta

Quando acima se falava do popular em sua relação com a cultura de tradição oral, estava-se falando de uma das possíveis maneiras de transmissão de saberes e conhecimento. O conhecimento produzido pelas sociedades, ao longo dos tempos, tem sido armazenado com os meios de que cada um desses grupos dispunha em seu contexto. Viu-se o conhecimento podendo ser armazenado e transmitido às novas gerações a partir de dois instrumentos: a oralidade e a escrita. Enquanto a oralidade a um tempo tornou-se instrumento característico da preservação da cultura entre as classes iletradas, a escrita realizava essa mesma função quanto ao conhecimento sistematizado pelos doutos, aqueles que, dentro de uma sociedade, dominavam as habilidades da leitura e da escrita.

O povo e os doutos compartilhavam e preservavam seu conhecimento de maneiras diferentes. Os séculos XVI e XVII são citados por Burke (1989) como épocas nas quais já era possível ver essa diferença entre a preservação da cultura entre os doutos e entre o povo. Da maneira como cada um desses segmentos construía e preservava seu conhecimento, surgiriam as definições de “grande tradição” e “pequena tradição”, propostas por Redfield (1930, apud BURKE, 1989). Embora essas duas definições guardem distinções entre si, elas têm a característica comum de partirem da idéia de tradição, como algo a ser entregue às próximas gerações. E, mesmo que cada um dos segmentos cumpra essa tarefa de maneira própria, essa preocupação mostra-se presente tanto entre os doutos quanto entre o povo.22

Ao se buscar compreender o que seja tradição, vê-se que a etimologia do termo remonta à idéia de traditio, enquanto ‘consignação’ “[...] a passagem de um conjunto de dados culturais (em sentido antropológico) de um antecedente a um conseqüente que pode

22 A idéia de grande tradição e pequena tradição é apresentada pelo antropólogo Robert Redfield (1930, apud BURKE, 1989). Esses dois conceitos são tratados de maneira mais detida no decorrer deste trabalho.

configurar-se como famílias, grupos, gerações, classes ou sociedades”. (PRANDI, 1997 a, p.166) Por esse processo de passagem é que são transmitidas às novas gerações as concepções de uma sociedade acerca dos comportamentos humanos em suas mais variadas relações. Além dos padrões de comportamento, de relações entre os indivíduos e de legados, que comportam técnicas e saberes construídos de maneira própria, no decorrer das gerações, as tradições abrangem também os costumes da comunidade. O modo como se concebe a vida, o estar-no- mundo e os saberes de uma forma geral, que um grupo busca transmitir às outras gerações, estão “[...] ‘inscritos’ na consciência coletiva dos grupos que delas são portadores, como normas implícitas ou direitos tidos como adquiridos no tempo e, como tais inextinguíveis”.(PRANDI, 1997ª, p.166) São esses saberes que também vêm colaborar para que se delimitem determinadas condutas, comportamentos e atitudes aceitos ou não dentro do grupo.

Com esse mecanismo de transmissão de saberes – saber agir, saber fazer, saber como se deve pensar –, os conhecimentos de determinado grupo cultural transitam de uma geração a outra, passando por um processo de conservação/inovação em maior ou menor grau, dependendo da forma como se dá essa transmissão. Dito de outra forma, mesmo passados de geração em geração, o que fará com que um saber se preserve em maior ou menor grau será não apenas a maneira como foi transmitido, mas o próprio contexto em que passa a ser inserido. Será o novo contexto e a realidade que o constitui que poderão vir a colaborar para que ele seja preservado de maneira integral ou não. Muitas vezes, sendo preservado naquilo que constitui sua essência, mas sendo “reconstruído” em algo que o redefina nessa nova realidade. Esse processo foi definido por De Maistre como a “[...] recuperação do passado no presente [...]”, expressa no círculo fechado “[...] conservação – tradição – inovação – conservação [...]” (Apud EINAUDI, 1997a, p.179).

Os saberes transmitidos pela oralidade desencadeiam um processo que pode se caracterizar pela neutralização ou pelo obscurecimento de suas origens. Procurando a origem de determinadas práticas, dentro de uma comunidade de tradição oral, é possível que não raro surjam informações do tipo “sempre foi assim”, ou, “era assim desde os nossos avós...”, limitando o conhecimento da origem de determinada prática ao arco comportado pela memória que a resguarda. Nesse momento, um parêntese pode ser bastante elucidativo. Segundo Prandi (1997b, p. 200), a origem de tais saberes pode ser associada a fatores que

repensam a idéia da construção popular movida unicamente pelas necessidades do grupo e pela criatividade frente a cada situação.

O antropólogo Van Gennep (apud EINAUDI, 1997b, p. 200) ao examinar a questão, acena para a possibilidade de que parte dos fazeres, hoje reconhecidos como populares, possam ter uma origem palaciana, em um processo caracterizado pelo autor como um

programa de aculturação pelo alto. Nesse processo, alguns saberes (ou práticas)

característicos da cultura douta teriam sido recontextualizados pela cultura popular, recebendo por isso traços específicos. A origem dessas práticas acabaria, então, esquecida com o passar do tempo, pelo simples fato de sua preservação estar confiada à memória do grupo que a utiliza. No processo de preservação de um conhecimento pela memória, é possível que a atenção maior estivesse voltada para a assimilação da nova prática e sua aplicação em seu cotidiano, do que propriamente em resguardar dados que remontassem à sua origem.

Em síntese, a origem de determinadas práticas culturais, sua forma de manutenção e transmissão entre as gerações acabariam por nos remeter, de certa forma, ao conceito de tradição. Mais especificamente ao conceito de pequena tradição. Contudo, a cultura popular que já se diferenciava da cultura douta, pela forma de registro e pelo tipo de informação que construía, passaria também a se diferenciar nas formas de preservação e transmissão dos saberes em cada um dos dois segmentos.

A idéia de “grande tradição” e “pequena tradição” é apresentada por Redfield (1930, apud BURKE, 1989), quando a cargo dessas duas faces da tradição ficará o resguardo da cultura das sociedades. Cada uma das duas tradições fará essa tarefa de maneira própria, uma vez que, além de serem distintas pela maneira como armazenam o conhecimento, serão diferentes também quanto ao nível de acessibilidade aos conhecimentos e ao próprio tempo de sobrevivência destes.

No documento Nanetto Pipetta : modos de representação (páginas 34-36)