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Os diferentes dialetos italianos e a coiné

No documento Nanetto Pipetta : modos de representação (páginas 63-66)

O grande contingente de imigrantes italianos foi instalado nos lotes coloniais obedecendo a alguns critérios como a capacidade de endividamento familiar, entre outros.39 Nessa forma de ocupação, os fatores étnico-lingüísticos não foram observados como parâmetros orientadores na distribuição dos lotes aos imigrantes italianos. Logo, imigrantes procedentes de regiões distintas da Itália, por vezes, ocupavam lotes vizinhos nas comunidades que começavam a ser organizadas. Sobre a ocorrência desse tipo de interação, Frosi e Mioranza ressaltam o fato de que

[...] as comunidades não viviam isoladas umas das outras. É certo que laços étnico- sócio-religiosos possibilitavam encontros freqüentes: festas dos padroeiros das capelas e atos de culto congregavam os habitantes de diferentes comunidades; batizados, casamentos, óbitos e comemorações uniam da mesma forma, conhecimento, amizades e proveniência de uma mesma Região ou Província italiana faziam com que elementos de comunidades diversas convivessem também, embora esporadicamente, devido às distâncias e às precárias vias de comunicação. Outros contatos eram feitos por objetivos que pudessem interessar, de igual forma, às pequenas comunidades. Não obstante fatores adversos, a comunicação entre habitantes de lugarejos vizinhos foi sempre um fato presente na Região. (1975,p. 62)

39 Frosi e Mioranza (1975) consideram que, mesmo sem a preocupação em ocupar os lotes segundo critérios étnico-lingüísticos, houve casos em que algumas comunidades lingüísticas apresentavam um só dialeto ou dialetos afins. Esse fato, segundo esses estudiosos, pode ter resultado de três tipos de fatores: de grupos vindos da Itália em uma mesma leva (como é o caso de Nova Milano); de grupos vindos sucessivamente de uma mesma região ou Província e que ocuparam áreas demográficas vizinhas, formando comunidades com o mesmo dialeto ou com dialetos afins (isso teria ocorrido em Nova Vicenza); ou nos casos de reorganização de novas comunidades quando das primeiras migrações internas (seriam casos assim as cidades de Nova Prata e Guaporé).

Como ocorreu com os demais elementos da cultura constituída nessa nova ecologia, também os dialetos foram passando por transformações e sofrendo interferências no novo contexto em que se viram inseridos. Nesse contato entre diferentes dialetos, a maior ou menor preservação de um dos dialetos ou mesmo a utilização mais cedo ou mais tarde da Língua Portuguesa, seriam definidos pela realidade e pela necessidade dos grupos que utilizavam essa forma de comunicação. Quanto a isso, os estudos de Frosi e Mioranza (1975) mostram que, se a comunidade se caracteriza pela ocorrência de um mesmo dialeto utilizado por todos os habitantes, a tendência desse falar será de se manter preservadoem suas características, até o momento em que se vir exposto a fatores extralingüísticos. Nessas comunidades, somente mais tarde a Língua Portuguesa será utilizada. Isso ocorre devido ao fato de o dialeto de origem, ou que viria a ser dominante, ter suprido as necessidades de comunicação do grupo.

Por outro lado, esses mesmos estudos revelam o fato de que, em uma comunidade onde há diversos dialetos em decorrência da diversidade de origem dos habitantes, a tendência mais imediata desse grupo será fazer uso de uma forma dialetal que contemple as suas necessidades de comunicação. Nesses grupos, em que a variedade de dialetos é significativa, há uma possibilidade maior da entrada da Língua Portuguesa mais rapidamente do que ocorreria no caso anterior.

Essas trocas lingüísticas tanto podiam ser feitas na realização das pequenas tarefas quanto nos encontros sociais. Importantes nessas trocas também eram as casas de serviços como “[...] ferrarias, funilarias, moinhos [...]” (FROSI; MIORANZA, 1975, p. 63-64), onde a necessidade de comunicação propiciava a interação e, com ela, as trocas dialetais. Com o passar do tempo, esses dialetos foram submetidos a um processo evolutivo que resultou em um falar correspondente às necessidades de comunicação da Região de Colonização Italiana do Rio Grande do Sul. Para tanto, os dialetos passaram por três etapas em sua evolução. Essas três etapas são apresentadas nos estudos de Frosi e Mioranza, sendo caracterizadas da seguinte forma: “A primeira etapa das transformações lingüísticas poderia, pois, ser caracterizada pela predominância de um dialeto de uma Região da Itália sobre outro da mesma Região.” (1975, p. 64) Na segunda etapa, as comunidades

[...] se constituídas por imigrantes vênetos e lombardos (ou seus descendentes), adotarão gradativamente um sistema lingüístico que apresentará realizações diversas: ou predomina o lombardo, ou o vêneto, ou cria-se uma nova expressão lingüística de caracterização mais acentuadamente lombarda ou vêneta. (p. 65)

Já a terceira etapa encontra-se relacionada de forma direta a algumas modificações que ocorreram nas colônias, como a abertura de estradas e o comércio do vinho. Nessa etapa não será a intercalação de dialetos o principal agente da mudança, mas a necessidade de comunicação eficiente entre os núcleos que passam a interagir de forma mais freqüente com outros grupos. É preciso que o dialeto seja um instrumento satisfatório para o novo tipo de necessidade criada pelo contexto desse período.

[...] houve, pois, o domínio de um dialeto que passou a ser o sistema lingüístico de comunicação de toda a Região. O fato, porém, requer uma análise mais detalhada: o dialeto que vingou não foi um dialeto puro, mas uma soma de características dialetais ou supradialeto, uma Koiné. (FROSI; MIORANZA, 1975, p. 66-67)

Mesmo a coiné – ou fala comum – mostrou-se inserida em um constante processo de mudanças. Dentre essas mudanças está a inserção, de forma gradativa, de vocábulos da Língua Portuguesa. Entretanto, cabe salientar que essa inserção deu-se de maneira peculiar. Os vocábulos da Língua Portuguesa, embora guardassem em sua constituição o significado da nova terra, recebiam uma forma falada ou escrita com características condizentes com o dialeto em que foram inseridos. É nesses casos que o chimarrão passa a ser o simaron. A bebida típica gaúcha mantém suas características; entretanto, o vocábulo, inserido em um novo contexto cultural, recebe os contornos sonoros desse novo falar, nesse caso, da coiné.

Da mesma forma como os dialetos italianos foram sofrendo transformações ao longo dos anos, também a coiné tem estado em constante processo de mudança desde seu surgimento até os dias de hoje. Essas modificações vão ocorrendo na medida e na velocidade correspondentes ao processo evolutivo do grupo da qual faz parte. Assim, o percurso de constantes modificações pelas quais passaram os dialetos até que se chegasse à coiné, não se estagnou com a formação desse novo falar.

A obra de Aquiles Bernardi que aqui se analisa pode ser considerada como um dos exemplos escritos dessa evolução. A primeira edição, datada de 1937, é o primeiro texto de ficção escrito em dialeto na Região de Colonização Italiana no Nordeste do Rio Grande do Sul e é também o texto que serve de base para a realização deste estudo. Nessa edição o dialeto representa uma das etapas de evolução da coiné, quando é possível verificar a ocorrência pouco freqüente de vocábulos da Língua Portuguesa, se a compararmos com as edições que a sucederam.

Tanto é possível perceber essa evolução que, a cada nova edição publicada, o texto era revisto. Na quinta edição, o texto não apenas foi “revisto”, tendo sido alterada uma série de vocábulos, bem como foi acrescida a essa edição uma “Gramática do dialeto italiano rio- grandense e um vocabulário do dialeto italiano rio-grandense” (BERNARDI, 1975), esse último elaborado pelo Frei Victor Stawinski. Também é dele a justificativa da necessidade de tais acréscimos:

Como em qualquer outro idioma popular, o dialeto vêneto, usado pelo autor de

NANETTO PIPETTA, tem estrutura e características próprias. Pode, pois, apresentar

sérios embaraços e certas dificuldades de interpretação a quem não esteja familiarizado com sua índole e terminologia. (1975, p. 3)

Em outras palavras, o novo tempo a que se referia Stawinski, demandava que fossem acrescidas ao texto não só explicações do uso de determinados termos, bem como a própria explicação do que esses termos abrangiam em suas relações de significado. A coiné viu-se inserida, vale repetir, em um contexto em constante mudança. Cada vez mais, expressões da Língua Portuguesa foram sendo incorporadas à representação da fala40 dos imigrantes italianos. E, na preocupação de “evitar embaraços e certas dificuldades de interpretação”, ficava nítida a tentativa de transportar os caracteres lingüísticos de uma época para a demanda de um outro tempo.

No documento Nanetto Pipetta : modos de representação (páginas 63-66)