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Alguns fatores resultantes dessa conjugação

No documento Nanetto Pipetta : modos de representação (páginas 112-115)

Dizia-se há pouco que Aquiles Bernardi estabeleceu o diálogo entre uma cultura de traços populares e uma cultura douta – aquela que, mesmo de forma implícita, se fazia presente nos fios que sustentavam e norteavam a construção literária, para a representação de sentidos com contornos bastante específicos. Fazendo parte da cultura da imigração italiana, Aquiles Bernardi conheceu desde a importância de valores básicos que a sustentam – como o valor do trabalho e da religião – até as minúcias de sentidos que determinada expressão podia comportar em seus muitos níveis de significação. Conheceu, da mesma forma, o delicado limite entre o risível e o não risível, dentro da cultura que decidiu representar em sua narrativa. Talvez também seja possível afirmar que acreditasse ter, no riso, a forma de expressar tantos significados, sem que estes ganhassem forma de pesada doutrinação ou de saberes impostos. O autor de Nanetto conseguia representar o que pretendia, utilizando-se de uma forma de construir seu texto literário que seria única.

Doutrinação ou representação de uma certa “moral” em cada episódio e na própria história vista como um todo. A narrativa de Aquiles Bernardi deixa-se perpassar por uma visão de traços que remontam para uma cultura de traços doutos, expressa em ditos populares. É na narrativa de Aquiles Bernardi que os saberes reconstruídos de sua forma elitizada, de sua linguagem formal, ganham novos traços e passam a se tornar possíveis de serem compreendidos no novo universo de ficção do qual passariam a fazer parte. De forma parecida com o trabalho de construção dos sermões, aos quais Burke se referia, Aquiles Bernardi também constrói suas representações na narrativa. O lugar das narrativas de Aquiles Bernardi não é a praça do mercado, mas talvez pudesse ter sido. Exemplo disso é a apresentação de

teatro adaptada a partir do texto de Aquiles Bernardi e apresentada na região cultural de imigrantes italianos.60

A forma, a maneira como Aquiles Bernardi conseguiu construir o diálogo, o trânsito entre saberes da cultura douta para a cultura popular é o que, em grande parte, colaboraria para que a representação da cultura da imigração italiana resultasse no texto que se viu. Pela conjugação que propõe, Aquiles Bernardi constrói seu narrador como uma figura que intriga de maneira particular. O narrador das histórias de Nanetto é alguém que, pela sua forma de narrar, pela maneira como utiliza a linguagem e, na medida em que se torna uma figura reconhecida e aceita pelo leitor, parece ter contornos de alguém que poderia ter sido parte da cultura da imigração italiana em seu contexto real. O narrador de Aquiles Bernardi não precisa se indagar sobre determinados significados culturais da imigração italiana e, embora ele não o afirme, acaba fazendo-o dessa maneira, porque foi constituído como se constituiria um indivíduo que compartilhasse dessa cultura. A ele foi instituído um saber a priori o qual não se questiona, apenas se verifica não só no que ele diz, mas na maneira como o faz, em tudo o que o seu discurso é capaz de manter resguardado, latente em suas entrelinhas.

Por outro lado, ainda que o narrador de Aquiles Bernardi tenha essa visão próxima da cultura da imigração italiana, sua visão não é a de um colono, de um imigrante italiano. Um colono poderia construir sua representação com os mesmos elementos culturais de que Aquiles Bernardi se utilizou, mas é bastante provável que os resultados não fossem os mesmos. Essa diferença se estabelece por essa segunda visão presente no narrador de Aquiles Bernardi. Ele não conhece apenas os traços da cultura da imigração italiana. Mais do que isso. A voz do narrador é capaz de ponderar sobre as atitudes de Nanetto e sobre o desenrolar de cada episódio. Essa ponderação, por sua vez, vem repleta de sentidos que remetem a um conhecimento de traços distintos daquele puramente constituído de uma cultura popular – nesse caso, da cultura da imigração italiana. Em outras palavras, a visão que norteia o desenrolar dos episódios não é a voz de um imigrante italiano, mas de alguém que, compartilhando seus sentidos culturais, é capaz de, mediando a compreensão do que acontece em cada episódio, construir, a partir deles, determinados juízos de valor que, de certa forma, acabam instaurados na visão que se constrói do protagonista e de suas ações na narrativa.

60 A peça de teatro aqui mencionada foi apresentada pelo grupo teatral Mìseri Coloni, na década de 80, em algumas cidades da região de imigração italiana no Rio Grande do Sul. Na peça, Pedro Parenti era Nanetto

Pipetta contando histórias não apenas de Aquiles Bernardi, mas do próprio Parenti, que, além de ator, também

Ainda em tempo, é preciso que se faça aqui um breve parênteses. A construção de Aquiles Bernardi – a sua poética – resulta também em outro fato que instiga à análise e a uma tentativa de compreensão. Essa tentativa consiste em observar que, a maneira como Aquiles Bernardi construiu o seu narrador e o protagonista, o lugar e a visão que lhes atribuiu dentro da narrativa foram de importância definitiva para o surgimento de determinados sentidos. É possível que o leitor guarde, da obra de Aquiles Bernardi, a figura ou a lembrança de Nanetto, de suas peripécias, de suas investidas pouco exitosas. Entretanto, não é a visão que Nanetto tem de si mesmo, mas a visão que o narrador constrói sobre o protagonista que constitui esse desenho último que fica para o leitor.

Falar de Nanetto pode ser, de certa forma, reforçar a imagem que seu narrador construiu dele ao longo da narrativa. Pode-se até mencionar o modo de pensar, ou de agir, desse protagonista, mas esse resultará não mais do que no riso, aquele de que falava Propp: que pune ou que denuncia certos defeitos, limitações, ou que aponta para uma tal rigidez de espírito, que se revela em cada nova investida desse protagonista. Também é possível que esse seja o riso daquele que acha melhor relevar, compreender essas atitudes, como típicas do

strambo, não apenas em sua forma de agir, mas de pensar e se comportar, em meio a uma

série de códigos culturais preestabelecidos dentro de um grupo em determinado período de sua história.

A sentença do narrador, já no capítulo de conclusão, dispensa maiores explicações. Ela, por si, é o espírito atribuído a essa voz que, dada sua importância, delimitou seus contornos dentro da narrativa. Quanto ao que possa significar o far puito, por certo ele estará ligado aos saberes de que se falava há pouco. Estará presente dentro da representação dessa cultura, delimitando modos de pensar e de agir. Mas não deve haver dúvida. Mais do que as questões da cultura da imigração italiana, que é capaz de evocar, será o portador de uma voz capaz de delimitar determinados modos de vida dentro de uma cultura – a visão clerical. “Cari Amissi, la storia xe finia. Chi fa puito gavarà ben, e chi no fa puito el pole spetare na coalche desgrasia.[...] L’ Amico vostro.61” (1937, p. 138)

61 “Caros amigos, a história terminou. Quem ‘fizer direito’ terá o bem, e aquele que não ‘fizer direito’ pode esperar uma desgraça qualquer. O amigo vosso” (T. da A.). Nessa tradução, as aspas foram acrescentadas devido à significação abrangente dessa expressão. Far puito – mais do que a tradução literal em fazer direito –,está relacionado à idéia de comportar-se bem, ter boas ações dentro do que é esperado no convívio entre os indivíduos de um determinado grupo. Essa expressão está ligada de forma particular aos parâmetros de comportamento e de atitudes definidos não só pela cultura da imigração italiana, mas, principalmente, pelo clero, em suas muitas investidas, na tentativa de ditar modos e formas de viver em comunidade.

No documento Nanetto Pipetta : modos de representação (páginas 112-115)