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Grande tradição e pequena tradição

No documento Nanetto Pipetta : modos de representação (páginas 36-39)

2.2 Cultura popular

2.2.6 Grande tradição e pequena tradição

Muito embora a contradição que as definições possam comportar, a grande tradição caracteriza-se por pertencer a uma minoria culta, ao passo que a pequena tradição pertence à grande massa composta pela classe camponesa e pelos demais indivíduos que não têm acesso aos mesmos equipamentos, que são suportes da grande tradição. Mais do que isso, enquanto boa parte da população não tinha acesso à grande tradição, a pequena tradição era aberta a todos, inclusive aos doutos e à elite, que compunham a grande tradição. Logo, as duas definições justificam-se por outro motivo: tanto a grande tradição quanto a pequena tradição

caracterizam-se, entre outros fatores, pela maneira como preservam seu conhecimento. Para essa tarefa, a grande tradição dispunha de indivíduos que tinham as habilidades da leitura e da escrita e que se utilizavam desses instrumentos para fazer os registros dos saberes, e do conhecimento que lhes era próprio. Dispondo desses recursos, conseguiam registrar e armazenar uma quantidade significativa de informações, às quais podiam ter acesso sempre que necessário, bastando, para isso, consultar seus registros. Ou seja, a cultura douta contava, por dominar a escrita, com um repositório de informações de proporções significativamente maiores do que a memória dos iletrados podia armazenar.

Essa diferença na forma de armazenamento de informações, embora possa parecer pouco relevante, mostrou-se decisiva quanto à quantidade de informações possíveis de serem preservadas por um longo período. A memória, recurso da pequena tradição, não apenas apresentava uma capacidade limitada de armazenamento de informações como, ao contrário da grande tradição, estava sujeita a lapsos ou esquecimentos, nem sempre podendo ser acessada com a mesma facilidade e com os dados preservados com a mesma fidelidade, como acontecia com os registros escritos da grande tradição.

O que se percebe então é que a pequena tradição não é assim denominada por ser a depositária de um conhecimento menos importante do que a grande tradição. Ao contrário, essa definição não resulta de um juízo de valor frente às duas tradições, mas, tão-somente, pela disponibilidade de registro e armazenamento dos saberes e do conhecimento que cada uma das duas formas é capaz de comportar.

As duas tradições não se diferem apenas pelo que guardam e pela maneira como o fazem. Também a possibilidade de acesso a essas duas tradições se dava de maneira distinta em cada uma delas. Uma dessas formas de acesso era delimitada pela linguagem de que se utilizava cada uma das duas tradições. A grande tradição, em seus registros dos inícios da Europa moderna, caracterizava-se pelo uso do latim ou, então, de uma forma literária do vernáculo. Os indivíduos que faziam parte da pequena tradição, por sua vez, não falavam a linguagem da grande tradição. Diferentemente do que acontecia na linguagem da grande tradição, os dialetos falados pelos indivíduos da pequena tradição não precisavam, nem poderiam, ser aprendidos em livros ou manuais. O dialeto, falado pelos indivíduos da pequena tradição – mas não exclusivamente por eles – era uma linguagem que haviam aprendido de seus pais e avós, que se podia ouvir na praça do mercado, nas conversas informais; aprendido e compartilhado por quem estivesse disposto a descobrir suas muitas nuanças comportadas pelo seu veículo de transmissão – a oralidade – e preservadas pelos arquivos registrados pelos

iletrados em sua memória. A linguagem, como os demais aspectos que compõem o conhecimento da pequena tradição, era guardada pela memória e transmitida pela oralidade.

Os locais de cada uma das duas tradições também colaboravam para que fossem freqüentados por um estrato social mais ou menos restrito. Todos podiam freqüentar a praça do mercado, local da pequena tradição, bastando para isso que lhes aprouvesse. Entretanto, o mesmo não ocorria com o acesso a universidades e liceus, locais da grande tradição que “não eram abertas a todos”. (BURKE, 1989, p. 55) A linguagem e os locais da pequena tradição podiam ser utilizados e freqüentados pelos indivíduos da grande tradição. Mas o inverso não ocorria. A grande tradição apresentava traços de exclusão, tanto pela sua linguagem quanto pelos espaços em que se instituía. Ao passo que a pequena tradição podia comportar indivíduos dos mais diversos estratos.

A grande tradição era transmitida formalmente nos liceus e universidades. Era uma tradição fechada, no sentido em que as pessoas que não freqüentavam essas instituições, que não eram abertas a todos, estavam excluídas. Num sentido totalmente literal, elas não falavam aquela linguagem, A pequena tradição, por outro lado, era transmitida informalmente. Estava aberta a todos, como a Igreja, a taverna e a praça do mercado onde ocorriam tantas apresentações. (BURKE, 1989, p. 55)

As pessoas que faziam parte da pequena tradição não tinham livre acesso à grande tradição. As pessoas com acesso à grande tradição, por sua vez, podiam freqüentar também os ambientes da pequena tradição, sempre que isso lhes aprouvesse, ainda que a cada uma das duas tradições fosse atribuída uma função diferente: a grande tradição era séria, a pequena

tradição era diversão. (BURKE, 1989, p. 55).

Entre os representantes da classe hegemônica, que podiam participar das duas tradições nos inícios da Europa moderna, estava o clero. Este não apenas tinha o acesso (cultural e político) aos registros e ao convívio da grande tradição, como podia participar das manifestações características da pequena tradição, realizadas na praça ou no mercado.

Não era apenas a nobreza que participava da cultura popular; o clero também, particularmente no século XVI. Durante o Carnaval, como observou um florentino: [...] homens da Igreja estão autorizados a se divertir. Frades jogam bola, encenam comédias e, vestidos a caráter, cantam, dançam e tocam instrumentos. Mesmo as freiras são autorizadas a celebrar, vestidas como homens [...]. (BURKE, 1989, p. 53)

Como outros fatores, também a participação do clero nas duas tradições se caracterizaria por um processo composto de transformações que acompanhavam as mudanças dos grupos sociais ao longo dos tempos. O trânsito dos frades entre as duas tradições dar-se-ia de maneira e com propósitos bastante específicos, o que viria a colaborar para que essa interação recebesse os contornos dos quais se passará a tratar.

No documento Nanetto Pipetta : modos de representação (páginas 36-39)