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CAPÍTULO 2 – EM DEFESA DA ESCOLA PÚBLICA DE QUALIDADE SOCIAL PARA A

2.2 A construção coletiva da qualidade social

De acordo com Camini (2001), Flach (2005) e Azevedo (2007), a concepção de qualidade social da educação ganha terreno no processo de redemocratização do País, ao longo dos anos 1980. Nesse período, “os interesses das classes populares se tornam mais evidentes e adquirem força, crescendo os debates nos movimentos populares, os quais se fortalecem com a possibilidade de uma nova ordem social e política no país” (FLACH, 2005, p. 4). Ainda segundo a autora, é no interior dos referidos movimentos que ocorre a discussão acerca da qualidade da educação em uma direção oposta à “qualidade total de cunho empresarial” (FLACH, 2005, p. 4)38.

Como consequência desse momento histórico e político em que os debates ocorrem, a concepção de qualidade social da escola pública encontra alicerce na participação e na democracia. A esse respeito, inspirada em Paro (2001), Flach (2005, p. 14) ressalta que,

Através de um processo participativo, que expressa materialmente o exercício da democracia, é possível conseguir uma proposta educativa consistente e realista, onde a educação seja pensada considerando a concretude da escola e dos sujeitos que a compõe, e não de forma acrítica, onde sua função seja tomada apenas como a apropriação, pelos educandos, dos conhecimentos incluídos nas tradicionais disciplinas curriculares (PARO, 2001). (grifos nossos).

Para Belloni (2003, p. 232), a construção da escola pública de qualidade social fundamenta-se no “princípio da democracia como valor humano”. A autora destaca a participação das instâncias colegiadas da escola como potente meio de articulação entre os

38 Flach (2005, p. 4) destaca que “a qualidade social em educação evidencia-se mais fortemente como objetivo

central no Projeto Político dos governos de esquerda, sendo que o Partido dos Trabalhadores é aquele que consegue, de maneira mais efetiva, demonstrar a preocupação com a implementação de uma educação de qualidade social para todos”. Apesar de a autora destacar o Partido dos Trabalhadores (PT) como preocupado com a implementação da qualidade social, vale lembrar que, nos dias atuais, o PT, “tem o social como prioridade, porém o executa sob os princípios, valores e ideais do neoliberalismo” (BETINI, 2009, p. 40), por exemplo, na realização de parcerias entre Estado e iniciativa privada, como vimos no capítulo anterior com o Compromisso Todos pela Educação.

diversos segmentos da instituição na negociação sobre os caminhos a seguir. O olhar plural para a realidade escolar, portanto, constitui-se em “estratégia para a concretização da qualidade social da educação, que inclui a formação de cidadãos democráticos” (BELLONI, 2003, p. 233).

De modo semelhante, Camini (2001, p. 45) realça a democracia como eixo central da qualidade social da escola, da qual “deriva o compromisso político com a viabilização de um intenso processo participativo” (grifos nossos). E continua: “Só faremos uma escola com conteúdo democrático desenvolvendo processos democráticos, só faremos uma escola popular com a participação direta de todos os sujeitos envolvidos no processo educativo” (CAMINI, 2001, p. 47, grifos nossos).

Nesse sentido, vemos a participação como um dos ingredientes imprescindíveis para a construção da qualidade social da escola pública. Pela participação, se efetiva a democracia, a partir do concurso das vozes dos vários atores concernidos ao processo educativo. Assim, em uma perspectiva de educação emancipatória, não há como dicotomizar participação e qualidade Elas convergem e se transformam em unidade porque comungam do seguinte pressuposto: para se fazer qualidade social, é preciso olhar para si (em seus múltiplos aspectos), negociar as metas e partilhar responsabilidades identificadas a partir de um processo dialógico e democrático entre poder público e aqueles que vivenciam a instituição.

No entanto, assim como qualidade é um termo polissêmico (e por esse motivo estamos qualificando-a como social), o mesmo ocorre com a participação. Desse modo, a disputa hegemônica mais uma vez se manifesta e, a partir da visão de mundo, sociedade e educação que se defende, se terá um determinado sentido atribuído à participação. Bordenave (1987, p. 42) enfatiza:

Numa sociedade regida mais pelos sistemas de interesse que pelos de solidariedade com uma marcada estratificação socioeconômica, na qual umas classes exploram outras, a participação será sempre uma guerra a ser travada para vencer a resistência dos detentores de privilégios.

Assim, a participação, no discurso neoliberal, corresponde ao deslocamento de responsabilidades do Estado para as instituições escolares. Como explica Azevedo (2007, p. 13):

As políticas oficiais apropriaram-se de termos comuns aos movimentos democráticos da educação. Descentralização, participação, cidadania adquiriram outro sentido. Passam a ser entendidas como desoneração do Estado e transferência para as comunidades do financiamento da educação; são introduzidos projetos do

tipo “trabalho voluntário”, visando desarticular a ideia da participação coletiva, da cooperação, da vida comunitária, retirar o sentido político da ação comunitária, passar a ideia de que tudo pode ser resolvido diretamente por um indivíduo isolado. É a tentativa de dicotomizar indivíduo e contexto cultural, eliminar o sujeito coletivo e substituí-lo por um indivíduo egoísta, dirigido à competição predatória da dinâmica do mercado.

Nessa direção, Dagnino (2004) enfatiza que a homogeneidade no vocabulário obscurece diferenças. O projeto societário neoliberal opera na despolitização da participação, ao dissolver os debates sobre os próprios objetivos da participação e, consequentemente, edifica formas individuais para abordar questões sociais. A autora ainda complementa sua análise ao afirmar que, nessa perspectiva, a participação fica restrita às ações e não ao compartilhamento do poder de decisão sobre políticas públicas (DAGNINO, 2004).

No Brasil, o TPE, por exemplo, defende “a participação das famílias e da comunidade, mediante programas e ações de assistência técnica e financeira, visando à mobilização social pela melhoria da qualidade da educação básica” (BRASIL, 2007). Tal qualidade, como apontado no capítulo anterior, restringe-se ao aumento do Ideb. A participação, por essa lente, limita-se ao acompanhamento das atividades escolares pelas famílias na intenção de elevar os resultados da escola obtidos em testes padronizados, sem que ocorra sua contextualização. Desse modo, não há partilha de responsabilidades. A melhoria da qualidade institucional, entendida como aumento do Ideb, compete à ação da escola, a qual pode ser potencializada a partir da “participação” da família no acompanhamento dos índices escolares (FERRAROTTO; MALAVASI, 2016).

Na contramão do que prega o TPE, entendemos que o Estado e a comunidade escolar são corresponsáveis pela qualidade social da escola pública e formação humana dos estudantes. Destarte, a participação a que nos referimos diverge da intenção de transferência de responsabilidades para a ponta do processo (escola e professores) e, portanto, é contrária à defesa de um “Estado que capitula diante da sociedade mediante a redução de seu tamanho e de suas atribuições, conforme prega o discurso neoliberal” (NOGUEIRA, 2004, p. 120).

Desse modo, a construção da qualidade social da escola pública ocorre quando seus atores, ao participar do ciclo de autoavaliação, negociação, planejamento e desenvolvimento de projetos, sentem-se pertencentes e se reconhecem nesse processo. Como o alvo é a qualidade social, tais ações visam à comunidade como um todo, sem que os interesses individuais sejam colocados acima dos coletivos. Nesse sentido, como afirma Nogueira (2004, p. 133), a “‘vontade geral’” – o pacto social – se objetiva, se recria e se fortalece” (grifo do original).

Outro aspecto de grande valia para a construção da qualidade social, via participação, refere-se à deliberação, pois colabora para que não haja segmentação entre os que planejam, os que decidem e os que executam (BORDENAVE, 1987). Assim, as possibilidades decisórias estão diluídas entre aqueles que compõem a comunidade escolar, bem como quando estabelecem negociação com o poder público, em um processo sem hierarquia de vozes. Ainda quanto à deliberação, Nogueira (2004, p. 153) enfatiza que “tão relevante quanto a decisão é o modo (o processo, o caminho institucional) como se delibera”. Os processos participativos, ancorados no diálogo horizontal, promovem novas aprendizagens, ao possibilitar a exposição e a análise dos diferentes modos de visualizar uma mesma situação. Há, portanto, “ganhos políticos fortes, mais que qualquer outra coisa” (NOGUEIRA, 2004, p. 157).

Para materializar a democracia no contexto escolar, via participação, retomamos a defesa de Belloni (2003) quanto à atuação dos colegiados escolares. Esses colegiados, ao contemplar a voz de estudantes, comunidades, professores, gestores e funcionários, tornam-se “verdadeiras escolas de participação” (BORDENAVE, 19887, p. 21). Nesse sentido, é participando que se aprende a participar (BORDENAVE, 1987). Entre os aspectos que Bordenave (1987) ressalta para efetivar a participação, três, em nosso entendimento, são essenciais quando se pretende constituir colegiados escolares comprometidos com a construção de uma escola pública de qualidade social, a saber:

• O grupo precisa se conhecer e se manter informado – para o autor, os integrantes do grupo devem criar processos que os levem a conhecer a si mesmo e ao ambiente do qual fazem parte, com “canais informativos confiáveis e desobstruídos” (BORDENAVE, 1987, p. 50).

• Diálogo – para Bordenave, a maior força para a participação é o diálogo. No entanto, dialogar não é sinônimo de conversar. O diálogo, para o autor, “significa se colocar no lugar do outro para compreender seu ponto de vista”, “respeitar a opinião alheia” e, ainda, “tolerar longas discussões para chegar a um consenso satisfatório para todos” (BORDENAVE, 1987, p. 50).

• Vivência coletiva – a participação ocorre ao se viver coletivamente. Não há como participar em âmbito individual, “de modo que somente se pode aprender na práxis grupal” (BORDENAVE, 1987, p. 74).

poucos sujeitos, mas se constrói no coletivo, pelas vozes que a compõem. Nessa construção, a participação – oposto à transferência de responsabilidade e, portanto, em um sentido de fazer parte e tomar parte nos processos dinâmicos da sociedade (BORDENAVE, 1987) – favorece a formação mútua entre os envolvidos nesse processo. As aprendizagens oportunizadas pela vivência coletiva e pela negociação dos destinos a seguir, trilham caminhos alargados, distintos daqueles perseguidos quando somente se almeja o aumento dos índices externos. Um caminho com múltiplas possibilidades, em que as potencialidades de cada estudante são valorizadas já que não são alinhadas a uma única direção. Sobre essa formação omnilateral, objetivo maior da escola de qualidade social, passaremos a refletir na próxima seção.