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A questão não é se precisamos ou não de responsabilidade, mas os tipos de lógicas

de responsabilidade e para quem ela está orientada, que tende agora a guiar o

processo de escolas públicas e instituições de ensino superior. Uma alternativa à imposição externa de objetivos, critérios de desempenho e resultados quantificáveis – mas que não desconsidera a questão da responsabilidade pública – precisa ser construída (APPLE, 2005, p. 81-82, grifos nossos).

Como salientado, responsabilizar os atores escolares pelos resultados obtidos nos testes padronizados está entre as estratégias adotadas pela reforma de cunho gerencialista, produto da racionalidade política neoliberal. Nesse modo de olhar para a educação, não há o

compartilhamento de responsabilidades entre escola e poder público e, como consequência, surge a culpabilização das instituições escolares. Diversos autores (CASASSUS, 2007; FREITAS, 2012; RAVITCH, 2013; FALABELLA; DE LA VEGA, 2016) têm ressaltado que esse uso dos resultados das avaliações externas em larga escala não melhora a qualidade das escolas – mesmo quando a qualidade relaciona-se, apenas, ao aumento de índices. Casassus (2007, p. 74) explica que

Apesar de todos los esfuerzos desplegados mundialmente desde hace 20 años, los puntajes no suben en ningún país donde se mida el rendimiento académico. Las pruebas de los estudios comparativos internacionales (TIMSS, LLECE, PISA) así como las mediciones nacionales, que se basan en evaluaciones puntuales entregan resultados decepcionantes. De acuerdo a estos criterios, la educación parece estar estancada. Si aceptamos este principio, la evidencia empírica indica que los esfuerzos desplegados no han rendido los frutos esperados: en algunos países, como es el caso de Brasil, Chile, España, Francia o EEUU los puntajes han bajado y la desigualdad persiste. La respuesta que han dado las autoridades ante esta falencia no ha sido que es necesarios cambiar de política, sino mas bien, su postura ha sido la de profundizar en la política actual, situando en el centro de las políticas de estándares y mas evaluación cuantitativa (grifos nossos).

Nessa direção, para Afonso (2009; 2013), Arroyo (2010), e Mendes et al. (2015), a responsabilização vertical, via testes padronizados, caminha em sentido inverso do combate às desigualdades, já que silencia a diversidade ao imprimir um determinado padrão e fazer com que as práticas escolares sejam moldadas, independentemente da realidade e das necessidades locais31. Para Gentili (1996, p. 23), atingidas por essa lógica, as escolas acabam degradando o trabalho que desenvolvem. De acordo com o autor, as escolas “serão piores porque serão mais excludentes”.

No Brasil, mesmo sem um aumento considerável nos resultados, presenciamos a continuidade e proliferação de iniciativas de responsabilização vertical nas políticas públicas educacionais, sobretudo com as ações do MEC direcionadas à instituição de um currículo comum em consonância com o sistema censitário de avaliação, assim como ocorreu nos Estado Unidos da América (BROOKE, 2006; RAVITCH, 2013). Percebemos, dessa forma, iniciativas de padronização, por meio de metas, definição curricular e testes que, além de movimentarem uma indústria de assessorias e editoras32, intensificam a transferência de responsabilidade pela educação pública do Estado para as escolas (APPLE, 1993).

31 Guisbond, Neill e Schaeffer (2012) trazem dados que comprovam que o estreitamento curricular é maior nas

escolas com alunos de baixa renda ou oriundos de minorias.

32 De acordo com Freitas (2013a), nos Estados Unidos da América, a proliferação da indústria dos testes

padronizados, com assessorias, apostilas e editoras, já ultrapassou a casa do 1,4 trilhão de dólares e, no Brasil, superou a casa do bilhão. Importante destacar, ainda, que de “1994 a 2006, dos 645 municípios [paulistas], 161 informaram adotar ou já ter adquirido, neste período, ‘sistema apostilado’ para a educação infantil e ensino fundamental” (ADRIÃO et al., 2009, p. 804, grifos do original).

Para que as melhorias educacionais ocorram de fato, entendemos que a partilha das responsabilidades é imprescindível. Afonso (2012, p. 481), baseado em Young (2011), ressalta que a responsabilidade é essencialmente coletiva e, nesse sentido, deve ser compartilhada. Assim, sem negar as dimensões individuais, há que se considerar que “as pessoas estão inseridas num contexto de múltiplas interações, e não se podem abstrair os fatores relacionais e contextuais quando se consideram essas ações”. Ainda de acordo com o autor, a responsabilidade pode e deve ser pensada “como lugar em que se medem as

consequências decorrentes de uma determinada ação política, educacional ou social”

(AFONSO, 2014, p. 502, grifos do autor).

Nessa direção, Darling-Hammond e Ascher (2006) defendem que o Estado deve ser responsável pelas políticas que adota, avaliando seus efeitos e fornecendo os recursos necessários para atender aos interesses dos estudantes e da comunidade escolar. Dessa forma, a escola não deve ser o único alvo das avaliações. Os processos avaliativos, ancorados no compartilhamento de responsabilidades, contemplam as demais instâncias do serviço público. No interior da escola, seus atores, de diversos segmentos, coletivamente analisam seus indicadores de qualidade, internos e externos; identificam fragilidades e potencialidade no desenvolvimento de seu PPP; e negociam novas práticas com vistas a obter melhorias. Para além da escola, o poder público também é chamado a refletir sobre as ações efetuadas, de modo a cumprir seus compromissos e pactuar com a comunidade escolar meios que favoreçam a qualidade social da instituição.

A esse movimento de partilha de responsabilidades, com processos avaliativos que não se restringem à escola e que contempla múltiplas vozes e olhares, chamamos de responsabilização participativa (SORDI; FREITAS, 2013). Segundo Sordi e Freitas (2013, p. 91),

Assentados nas categorias da participação e da negociação com os atores sociais implicados, esses processos [avaliativos], mais do que incluir atores, buscam com eles deliberar sobre os objetivos e compromissos inerentes às concepções mais amplas de qualidade educacional capazes de servir a interesses emancipatórios. A responsabilização participativa inscreve-se como forma de contrarregulação (FREITAS et al., 2012) e envolve esforços coordenados dos múltiplos atores interessados na defesa de uma qualidade educacional que se confronte com a lógica das políticas imediatistas e restritas a interesses específicos de setores econômicos. Implica exercitar o coletivo da escola em processos de apropriação dos problemas do cotidiano e refletir sobre o futuro, principal função dos processos avaliativos (grifos nossos).

Ainda sobre a responsabilização participativa, Sordi (2017, p. 94) destaca alguns de seus princípios, os quais permeiam os processos avaliativos em que se faz presente, são eles:

1. Relocalização da avaliação na escola com forte apelo à centralidade da AIP

como instância articuladora dos atores da comunidade escolar cabendo-lhes

titularidade na definição dos caminhos.

2. Adoção dos princípios da avaliação formativa com respeito à historicidade dos

processos e aos princípios do não ranqueamento.

3. Explicitação dos significados da qualidade social sob a perspectiva crítica (engravidamento das palavras) para referencialização do processo avaliatório. 4. Defesa de pluralidades de excelências como expressão de qualidade para todos os estudantes da escola pública tomado como norte para o trabalho docente (AFONSO, 2009; 2012; 2014).

5. Contestação da crença na unidimensionalidade do fenômeno educacional

tomada como verdade nos modelos atuais de avaliação de larga escala que

pautam a agenda das redes de ensino/escolas e padronizam o teor das aprendizagens que devem ser tomadas como meta.

6. Implicação de todos os atores, inclusive dos governantes, com aquilo que lhes compete assegurar para que a qualidade educacional ultrapasse a dimensão discursiva e se construa levando em conta as condições objetivas intra e extraescolar (grifos nossos).

Não se trata, então, de excluir o fator responsabilidade, mas ampliá-lo, de modo a abarcar outros atores e aspectos relacionados à educação, para além de índices quantitativos provenientes dos testes padronizados. Isso não significa a inexistência de metas, mas a sua construção coletiva, a partir do olhar da comunidade escolar para si. Por serem construídas pelo coletivo, considerando sua realidade, o controle social das práticas é aceito e a prestação de contas à comunidade constitui-se em ação elementar ao movimento de partilha de responsabilidades (SORDI; FREITAS, 2013). Controle social e prestação de contas, por sua vez, passam a ser alimentados por valores como justiça e participação, com vistas à pluralidade e em direção oposta à homogeneização de práticas e ao silenciamento da diversidade (AFONSO, 2009). Nesse novo horizonte, o sentimento de responsabilidade não é

penoso e exclusivo a uma categoria, já que o “Estado entra como um dos polos de negociação, sendo o outro formado pela própria escola e seus atores” (SORDI; FREITAS, 2013, p. 88).

Desse modo, participação e negociação são pilares dos processos avaliativos ancorados na responsabilização participativa, direcionados à construção da qualidade social da escola pública.

Participar e negociar a qualidade são faces de uma mesma moeda. A qualidade deve ser negociada no sentido de que as diversas perspectivas e pontos de vista em jogo devem emergir, postos em confronto e levados a interagir para chegar a um quadro de conjunto o máximo possível compartilhado; a qualidade é um processo participativo, no sentido de que a sua realização comporta uma ação sinérgica dos vários protagonistas da cena educativa. Efetivamente, a qualidade não é algo que se confere, que se verifica o nível ou a adequação a padrões prefixados, é também algo que se “faz”, se elabora, através do concurso de todos aqueles que operam em uma certa realidade educativa. A qualidade é inscrita e incorporada na vida de uma instituição – escola, creche, etc. – , nas relações entre as pessoas, na organização dos tempos e dos espaços, nas atividades, nas modalidades de participação. “Fazer a qualidade” é pelo menos tão importante quanto defini-la e avaliá-la (BONDIOLI, 2013, p. 34, grifos do original).

Relações horizontais, ações colaborativas e confiança sustentam a lógica da partilha das responsabilidades e emergem em contextos de participação e negociação. Vivenciar a participação e a existência real de canais de negociação são a fonte para o empoderamento dos atores escolares. Como afirma Batliwala (1997), o empoderamento possibilita a edificação de uma nova relação, sustentada pela democracia e pelo poder compartilhado com responsabilidades coletivas assumidas nos processos decisórios33. Desse modo, a comunidade escolar se fortalece diante da necessidade de demandar, ao poder público, condições dignas de trabalho para caminhar em direção a uma escola que realmente possibilite a inclusão e não apenas a inserção dos estudantes, sobretudo das classes menos favorecidas.

Uma vez assumido o diálogo, a negociação e o compartilhamento de responsabilidades, admite-se a posição do Estado de demandar dos atores escolares que também cumpram seus compromissos. Entendemos que o principal compromisso da escola deve ser a formação humana dos seus estudantes. Como bem lembra Gentili (2009, p. 1062),

33 Ainda segundo Batliwala (1997, p. 201), o empoderamento demanda a transformação das estruturas de

dominação. Manifesta-se como uma redistribuição do poder entre nações, classes, gêneros ou indivíduos. Em suas palavras: “El proceso de empoderamiento es, entonces, una espiral que altera la conciencia, identifica áreas de cambio, permite crear estrategias, promueve el cambio, canaliza las acciones y los resultados, que a la vez permiten alcanzar niveles mas altos de conciencia y estrategias mas acordes con las necesidades y mejor ejecutadas. Visto así, el empoderamiento en espiral afecta a todos los involucrados: el individuo, el agente activista, la colectividad y la comunidad".

temos uma dívida histórica com a educação dos mais pobres. A eles, foi negado o acesso à escola e hoje,

[...] esse direito é negado quando não lhes é oferecida outra alternativa a não ser a de permanecer em um sistema educacional que não garante nem cria condições para o acesso efetivo a uma educação de qualidade, quando se limitam as condições efetivas de exercício desse direito pela manutenção das condições de exclusão e desigualdade que se transferiram para o interior do próprio sistema escolar.

Vemos, nos processos de responsabilização participativa, a resposta propositiva à exclusão, que ocorre no interior das escolas, quando, a essas crianças, são ofertadas ações apenas instrucionais, com um currículo estreito, decorrentes de um direcionamento e do controle advindo dos testes padronizados. Assim, defendemos a educação ampla, de formação humana, porque a concebemos como “base, o início e, ao mesmo tempo, a aspiração e o ponto de chegada de toda luta pela justiça social e pela igualdade, de toda luta contra a humilhação e o desprezo aos quais são submetidos milhões de seres humanos por terem nascido pobres” (GENTILI, 2009, p. 1.072).

Se a forma escola que temos cumpre funções sociais que “adquire do contorno da sociedade na qual está inserida” (FREITAS, 1995, p. 95), é urgente a proposição de alternativas que almejem a formação humana dos estudantes em sentido de confronto diante da lógica que acompanha a utilização das avaliações externas, a partir da ótica gerencial, a qual sofistica as formas pelas quais a educação pública continua a produzir e reproduzir exclusão e subordinação (FREITAS, 2010). Entendemos que não podemos ficar à espera de um “‘período favorável’, no futuro indefinido. É preciso começar ‘aqui e agora’[...] se quisermos alcançar as mudanças necessárias no momento oportuno” (MÉSZÁROS, 2007, p. 125, grifos do original).

Quanto à utilização da avaliações externas em larga escala, começar aqui e agora significa que a comunidade escolar deve se apropriar dos seus resultados, refletir sobre eles a partir de seu contexto e, em um movimento contrarregulatório, realizar demandas ascendentes, em direção ao poder público, de modo a denunciar as reais intenções do discurso de “mais educação” para a classe trabalhadora. Assim, a superação da responsabilização vertical não se constrói pelo fim da avaliação externa em larga escala, mas por sua incorporação em outra lógica, na qual as críticas construídas conduzem a uma proposta radicalmente nova (SAVIANI, 1999), em que seus resultados passam a ser instrumento de reflexão coletiva e compartilhamento de responsabilidades, em um caminho que possibilite a

CAPÍTULO 2 – EM DEFESA DA ESCOLA PÚBLICA DE QUALIDADE SOCIAL