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CAPÍTULO 2 – EM DEFESA DA ESCOLA PÚBLICA DE QUALIDADE SOCIAL PARA A

2.3 Escola pública de qualidade social para a formação humana: apontamentos iniciais

A qualificação humana diz respeito ao desenvolvimento de condições físicas, mentais, afetivas, estéticas e lúdicas do ser humano (condições omnilaterais) capazes de ampliar a capacidade de trabalho na produção dos valores de uso em geral como condição de satisfação das múltiplas necessidades do ser humano no

seu devenir histórico. Está, pois, no plano dos direitos que não podem ser mercantilizados e, quando isso ocorre, agride-se elementarmente a própria condição

humana (FRIGOTTO, 2003, p. 32, grifos nossos).

A partir do que foi apresentado, iniciamos a abordagem sobre a formação humana dos estudantes, já que é esta a principal função da escola pública de qualidade social. No entanto, antes, acreditamos ser necessário revisitar alguns apontamentos feitos no primeiro capítulo, quanto aos processos formativos decorrentes da lógica impressa pela concepção gerencialista, defendida pelos setores empresariais para a educação. Pelo contraponto, será mais fácil explicar o que concebemos por formação humana.

Como apontado anteriormente, “cada vez mais, o mundo dos negócios enfoca os serviços de educação como uma área em expansão, na qual lucros consideráveis devem ser obtidos” (BALL, 2004, p. 1.111). Nessa direção, em 2000, a Organização Mundial do Comércio (OMC), declarou ser a educação “um dos espaços mais fecundos para negócios rentáveis” (FRIGOTTO, CIAVATTA, 2003b, p. 96).

Para tanto, os testes padronizados, aplicados periodicamente e de modo censitário, tornam-se a pedra angular. Por eles, torna-se possível aferir a “qualidade” e estabelecer comparações entre escolas, municípios, estados e até mesmo entre as diferentes nações. As hierarquias de resultados – ou os rankings, como são conhecidos – interessam aos empresários por possibilitar a inserção, na educação, da perspectiva acima anunciada. Como alguns estudos apontam, os resultados das avaliações externas em larga escala relacionam-se

com a fiabilidade do País em atrair investimentos financeiros (RICHTER, 2013; PEREIRA, 2016), bem como com a indústria de apostilas, assessorias e editoras (MATHISON; ROSS,

2004; MAHIRI, 2005; BAUER, 2008, FREITAS, 2011a; GUISBOND; NEILL;

SCHAEFFER, 2012).

Outro fator que aparece, nesse contexto, como de interesse dos empresários, é a instituição de um currículo mínimo, básico. Em seus discursos, defendem que com ele será possível melhorar a qualidade da educação. No entanto, como afirma Apple (1993, p. 231), tal currículo tem como papel principal o “fornecimento de um quadro em que os exames nacionais podem funcionar” (tradução nossa). Assim, a defesa do currículo mínimo/básico contribui para a proliferação dos testes padronizados, a partir dos quais pode-se intensificar a atuação empresarial na educação39.

Como consequência, presencia-se o aprofundamento dos efeitos da responsabilização vertical, impressa pela lógica gerencial, nas práticas escolares. Entre tais efeitos, está a tendência de os professores se concentrarem “naqueles alunos que estão mais próximos da média ou dos padrões médios de desempenho” (FREITAS, 2012, p. 384-385) e, por conseguinte, ocorre a exclusão, nos processos de ensino-aprendizagem, daqueles que mais precisam da atenção da escola para ter acesso aos conhecimentos historicamente construídos pela humanidade.

Temos, também, as práticas escolares, sobretudo as de sala de aula, centradas na instrução e no treinamento e, portanto, distantes da “cooperação, organização, pesquisa, criatividade, autonomia, solidariedade, tolerância” (CABRITO, 2009, p. 194). De acordo com Cabrito (2009, p. 194), quando se privilegiam os testes,

[...] é incentivada a aprendizagem na sua formulação mais tradicional e redutora: o programa é para “dar”, é para “cumprir” e não para debater, reflectir, decidir, questionar; e os alunos deverão aprender (memorizar) respostas-chave que, com elevada probabilidade, corresponderão a algumas das questões colocadas. Isto porque, obviamente, trabalhar um tema tendo por detrás o desenvolvimento individual e social do aluno “demora” mais tempo do que “ensinar a matéria”, impedindo que se “dê o programa”.

39 De acordo com Luiz Carlos de Freitas, a padronização interessa aos reformadores empresariais. Por meio dela,

ocorre o controle das escolas. Para tanto, esse processo, em muitos países, se dá pela instituição de um currículo comum obrigatório, articulado a um sistema de avaliação, e deles decorrem ações relacionadas à formação dos professores e produção de materiais didáticos e sistemas de ensino (MUNHOZ, 2016). Como se nota, a padronização, via currículo e avaliação, favorece a indústria de assessorias, apostilas e editoras, intensificando os lucros dos reformadores empresariais. Há, portanto, um entrelaçamento entre currículo básico, testes padronizados e formação mínima (para atender às demandas do sistema produtivo) destinado aos filhos da classe trabalhadora.

Nessa direção, Darling-Hammond e Ascher (2006) lembram que, nos anos 1970, nos Estados Unidos da América, enquanto os índices obtidos em testes sobre habilidades básicas aumentavam, diminuíam os resultados das avaliações das habilidades do pensamento complexo. As autoras esclarecem que, segundo os assessores da Avaliação Nacional para o Progresso Educacional (Naep)40,

[...] os métodos correntes de ensino e de leitura de testes requerem respostas curtas e baixo nível cognitivo de pensamento, resultando em uma ênfase em opiniões superficiais às custas de um pensamento racional e disciplinado..., [assim] não é surpresa que os estudantes deixem de desenvolver habilidades de raciocínio e de análise mais abrangentes (NAEP, 1981) (DARLING-HAMMOND; ASCHER, 2006, p. 27, grifos do original).

Desse modo, privilegiar os testes padronizados – tanto nos seus conteúdos como em sua forma – induz a um processo formativo caracterizado como básico e inicial, mas que, em grande parte, acaba por se tornar único e, portanto, limitado. De acordo com Freitas (2012, p. 389), para os “reformadores empresariais” é pelo básico (mínimo) que será possível alcançar os demais patamares de formação; entretanto, como destaca o autor, “sabemos que a juventude mais pobre depende fundamentalmente da escola para aprender, e se for limitada a sua passagem pela escola às habilidades básicas, nisso se resumirá sua formação” (FREITAS, 2012, p. 390). E mais:

Com esta lógica de senso comum, são definidos os objetivos da “boa educação”. Mas o básico exclui o que não é considerado básico – esta é a questão. O problema não é o que ele contém como “básico”, é o que ele exclui sem dizer, pelo fato de ser “básico” (FREITAS, 2012, p. 390, grifos do original).

Percebemos, assim, que o projeto de formação em pauta visa à formação do sujeito dotado de competências e habilidades necessárias41 para a nova configuração dos meios de produção e, evidentemente, sem potencial de análise quanto aos valores, padrões e à visão de mundo disseminados. Por essa via, constitui-se um processo educativo unilateral que,

40 National Assessment of Educational Progress.

41 Vale lembrar que as chamadas habilidades socioemocionais também pautam a matriz formativa, defendida pelos setores empresariais. Entre elas, está a resiliência, destacada pelas agências internacionais como capacidade a ser valorizada no século XXI. Nesse processo de instabilidade do capital, em que novas formas de organização do trabalho entram em cena, a resiliência significa a persistência do trabalhador perante situações adversas. Cada vez mais o foco passa a ser a pessoa, em um sentido de silenciamento das causas estruturais que originam as desigualdades e, consequentemente, “afetam a própria condição de poder disputar e esforçar-se para evitá-la” (FREITAS, 2016b). A OCDE, por meio do Pisa, fez associações entre os resultados dos estudantes obtidos nos testes padronizados e declarou que os resilientes assistem a mais aulas regulares e apresentam alto nível de desempenho acadêmico. Mais detalhes ver: <https://avaliacaoeducacional.com/2016/12/20/uberizacao- ocde-e-habilidades-socioemocionais/>.

ao dividir o conhecimento e centrar-se em alguns, limita-se a um ensino entendido “como instrumento, como aquisição de técnicas” e renuncia-se “aos objetivos da educação e da formação dos sentimentos” (MANACORDA, 2007, p. 109). Ou, como explica Frigotto (2003, p. 26), nessa lógica

[...] a educação dos diferentes grupos sociais de trabalhadores deve dar-se a fim de habituá-los técnica, social e ideologicamente para o trabalho. Trata-se de subordinar a função social da educação de forma controlada para responder às demandas do capital.

No entanto, tais propósitos para a educação muitas vezes não se evidenciam à primeira vista, sobretudo porque, articulados à propagação do mínimo ou básico, os discursos carregam termos que, em grande parte, também fazem parte do vocabulário dos educadores profissionais.

Frigotto e Ciavatta (2003a) e Dagnino (2004) advertem que as palavras utilizadas não são inocentes, mas buscam dar sentido a ambições de determinadas classes sociais. Por esse motivo, é preciso adotar uma “vigilância crítica [...] desvendar o sentido e o significado das palavras e dos conceitos, bem como perceber o que nomeiam ou escondem e que interesses articulam” (FRIGOTTO; CIAVATTA, 2003a, p. 46).

Como já destacamos em outros momentos, qualidade e participação são empregados, nos discursos empresariais, a partir de seus interesses. Nesse esteira, também estão a flexibilidade e a integração. Frigotto (2003) enfatiza que tais termos são utilizados em um contexto de reorganização econômica decorrente da acirrada competitividade mundial. Desse modo, “a integração, a qualidade e flexibilidade constituem-se nos elementos chaves para dar os saltos de produtividade e competitividade” (FRIGOTTO, 2003, p. 146).

Bertagna, Oliveira e Miranda (2014, p. 8), ao analisar o documento World Bank (2011), também identificam ambições dos setores empresariais e esclarecem:

Trata-se de ser crítico, criativo, participativo, desde que nos marcos destes interesses, sintetizando uma concepção educacional voltada para a formação, nos indivíduos, da disposição para uma constante adaptação à sociedade vigente, o que parece se aproximar da participação falaciosa denunciada por Antunes (2009), segundo o qual quanto mais se fala do envolvimento participativo na era da empresa flexível, mais eles encontram-se distantes dos processos decisórios sobre os rumos da produção.

O mesmo ocorre com a cidadania, contida nos discursos da OCDE, articulada à competências valorizadas nas sociedades modernas. Em seus relatórios, a partir dos resultados

do Pisa, os conhecimentos mínimos de Português e Matemática são apontados como necessários para uma cidadania ativa e a participação produtiva no mercado de trabalho (PEREIRA, 2016). Desse modo, conforme alerta Dagnino (2004, p. 155): “tornar-se cidadão passa a significar a integração individual ao mercado, como consumidor e como produtor”. Ainda segundo a autora, associado à cidadania, está o apelo à caridade, ou seja, o chamamento a um movimento de “solidariedade” aos mais pobres, em um sentido de retirar do debate as causas das desigualdades e a (des)responsabilização do Estado nesse processo (DAGNINO, 2004).

Em síntese, cidadania, criatividade, participação, integração e flexibilidade, ressignificados, passam a fazer parte do discurso daqueles que almejam o aumento da capacidade de produção e, consequentemente, veem a educação como instrumento para tal. Segue, desse modo, a perpetuação de um modelo para poucos, com “formas renovadas de exclusão” (FRIGOTTO, 2000, p. 77).

Em oposição à lógica reducionista de formação, entendemos que os processos formativos devem ser alargados, sem que as aprendizagens sejam alinhadas às aspirações do sistema produtivo. Acreditamos que, para além dos aspectos cognitivos relacionados a determinados componentes curriculares, perspectivas variadas precisam ser contempladas (aspectos artísticos, físicos, afetivos, políticos), quando se objetiva a formação humana dos estudantes.

Nessa direção, damos destaque a seis dimensões que, em nosso entendimento, estão entre aquelas que precisam ser consideradas no debate acerca da formação humana (Quadro 1).

Quadro 1 – Algumas das dimensões essenciais para a formação humana

Dimensões Descrição

Político-social Pode ser abordada por meio da constituição de espaços e momentos coletivos de participação, nos quais os alunos desenvolvam uma capacidade de refletir e propor rumos de ação para o ambiente escolar e social em que se inserem

Ética Inclui a formação de valores que compactuem com: alteridade, diálogo, cooperação, solidariedade, respeito, justiça. Afirmar esses valores implica definir qual visão de mundo os embasa

Afetiva Inclui o âmbito das relações interpessoais entre sujeitos da escola e entre estes e a comunidade, pautadas por sentimentos de afeto, cuidado, preocupação, respeito

Corporal Envolve o desenvolvimento de uma concepção de saúde atrelada ao bem-estar físico e ao conhecimento sobre o próprio corpo

Cognitiva Implica os conhecimentos e conteúdos das variadas áreas do conhecimento. Conhecer vai além de ter informação e desenvolver habilidades para saber lidar com as informações disponíveis na chamada “sociedade do conhecimento”. Significa, pois, também solidificar conteúdos de base das diferentes áreas do conhecimento

Artística e cultural

Trabalhar com manifestações artísticas e culturais que permitam o desenvolvimento da criatividade por meio de múltiplas linguagens

Fonte: Bertagna (2017, p. 37-38).

Por essa via, torna-se possível ampliar os processos formativos, de modo a romper com a unilateralidade que se manifesta quando apenas uma dimensão é enfatizada – como, por exemplo, nas ações direcionadas aos testes padronizados. Vale destacar que tais dimensões não são exclusivas na busca pela formação humana dos estudantes. Outras devem ser agregadas a fim de trilharmos a “direcção de um intercâmbio activo e positivo com práticas educacionais mais amplas”, sem as quais a educação “não pode realizar as suas muito necessárias aspirações emancipadoras” (MÉSZÁROS, 2007, p. 122, grifos do original).

Não podemos perder de vista que a educação, apesar de ser um elemento determinado, não está inerte em sua relação com a sociedade (SAVIANI, 1999). Nesse processo dialético, pode contribuir com a transformação social, ao possibilitar aprendizagens à sua comunidade – na vivência de reais espaços democráticos, bem como nas amplas ações desenvolvidas, de modo a contemplar as múltiplas dimensões da formação humana – que possibilitem um outro olhar para a sua realidade e, por conseguinte, favoreçam a construção da superação das circunstâncias opressivas e exploratórias a serviço da manutenção de privilégios de alguns sobre a maioria (MÉSZÁROS, 2007).

2.4 Escola pública de qualidade social para a formação humana: dando continuidade ao