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2.3. SÍNTESE

2.3.2. A contradição do conceito de quilombo em mesquita

A dimensão conceitual em relação a quilombos é óbice desde a criação da comissão responsável para estudar e mapear as comunidades remanescentes de quilombo em todo o Brasil. Isto é evidenciado pela declaração de Cantarino (2000):

Os antropólogos e outros profissionais das ciências humanas têm sido ainda indagados sobre uma definição de quilombo que permita a aplicação do preceito constitucional. Porém, orientados pelo saber teórico da nossa disciplina, reconhecemos que qualquer definição de tipo ideal e prévia pressupõe opiniões pré- concebidas de quais são os fatores significativos na gênese, estrutura e padrões de organização destes grupos (p. 67-68).

A postura teórica e pedagógica representada por Cantarino (2000) parece partir do pressuposto da pluralidade das comunidades remanescentes de quilombo, o que significa que nem o preceito constitucional está isento de erros. Portanto, prefere-se o conhecimento, advindo da verificação in loco, a qualquer tipo de conceito ou pré-conceito apressado e restritivo. E ainda continua Cantarino (2000):

Os estudos que serão realizados permitirão, ao contrário, relativizar certas noções baseadas em julgamentos arbitrários e indicar formas de se perceber os fatos a partir de uma dimensão, que venha a incorporar o ponto de vista dos grupos que pretendem, em suas ações, a vigência do direito atribuído pela Constituição Federal (p.68).

Cantarino (2000), também desenvolve sua abordagem tendo em conta a discussão gerada em torno da pecha de isolamento, ou existência interiorana das comunidades remanescentes de quilombo:

É preciso também destacar que as populações ou grupos mobilizados pela aplicação do artigo 68 não se encontram naturalmente isolados, nem são naturalmente isolados culturais ou sociais. O isolamento quando observado, é consciente e defensivo, praticado por esses grupos diante de situações de conflito fundiário, tal como ocorreu no Nordeste, ou de grandes projetos minerais e outros que se desenvolveram na Amazônia (p. 68).

Outro aspecto levantado por Cantarino (2000), que parece incidir diretamente na realidade Mesquita, é a presença forte dos laços de parentesco ou “compadrio”, segundo a autora. Aqui poderia visualizar os vínculos vigorosos, presentes nas inter-relações das famílias Pereira Braga, Pereira Dutra, Teixeira Magalhães e Lisboa da Costa:

Os grupos chamados “remanescentes de quilombo”, de acordo com o termo da legislação, podem ainda ser pensados como identidades locais, de lugares

específicos que emergem em defesa de formas orgânicas de existência baseadas no parentesco, na vizinhança e no compadrio (p. 69).

Com finalidade, então, de definir a orientação metodológica dos trabalhos de mapeamento sob a responsabilidade do grupo, Cantarino (2000) apresenta uma “definição operacional de quilombo”, conforme segue:

1) Processo de produção autônomo (livre acesso à terra, decisão do que plantar e comercialização independente de qualquer controle externo);

2) Capacidade de organização político-administrativa; 3) Critério ecológico de preservação dos recursos; 4) Autodefinição dos agentes e da coletividade; 5) Grau de conflito e antagonismo;

6) Formas de uso comum; combinação de domínios privados (familiares, domésticos) e públicos (p.70).

Esta mesma perspectiva de Cantarino (2000) é utilizada na produção do relatório antropológico do Incra (BRASIL, 2011), quando adota um conceito mais amplo e isento de pré-concepções. Desta forma, as divergências conceptivas, presentes em Mesquita, não parecem de todo insolucionáveis. Evidentemente, os defensores preferem uma compreensão mais ampla e os opositores uma concepção mais restrita. No entanto, a tendência atual é uma orientação, partindo de um conceito mais abrangente, conforme já aludido no tocante às definições do relatório do Incra (2011) e de outros documentos oficiais (BRASIL, 2004; 2012; 2014a; 2014b).

E, mesmo que se adote um conceito mais restrito, parece também difícil negar a quilombidade de Mesquita, pois se é laborioso provar que ele nasceu de escravizados fugidos do sistema escravocrata, conforme compreende o conceito mais restrito. Igual dificuldade é encontrada também em provar que entre os escravizados ou escravizados alforriados, que ocuparam Mesquita, não havia ninguém fugido.

A concepção (ou concepções) de quilombo parece navegar nas mesmas dificuldades do termo “identidade negra”, o qual pode abranger vários significados ao mesmo tempo. Talvez por isso, Chagas (1996) defende que a identidade negra é um termo em construção, podendo-se ter várias leituras e, portanto, compreendendo situações diversas.

Não aceitar a realidade quilombola pode ser uma negação da própria identidade negra, como afirma o E13: “Não sou quilombola, sou brasileiro”. Isto conduz à reflexão para o campo da abordagem étnico-racial. A negação do ser quilombola pode significar também recusa do ser negro. Recusa essa possivelmente resultante do processo de opressão do passado, qual seja, o mesmo sistema que hoje pressiona os quilombolas a venderem suas

terras e a renegarem particularidades que, sob o ponto de vista da pertença e da identidade, são inegociáveis, em nome de uma pretensa igualdade de um “ser brasileiro”.

Percebe-se na discussão do conceito de quilombo, o que pode levar ao de identidade, uma contradição comum nas ideologias. O grupo que nega a coletividade em nome da propriedade privada, nega também a individualidade quando recusa os valores identitários quilombolas e assume as generalizações de um “ser brasileiro”, de um “ser humano”.

Convém relembrar que as diferenças conceptivas de quilombo parece ser lugar comum entre os teóricos e mais ainda entre os quilombolas. As pessoas que discordam da quilombidade de Mesquita relacionam quilombo a algo oposto ao desenvolvimento, algo capaz de privar a comunidade de todas as benesses da modernidade. Mas, quando são inquiridas quanto a concordar com a quilombidade de Mesquita, caso isso não representasse empecilho ao desenvolvimento moderno, elas se mostram a favor:

Esse entendimento de quilombo, relacionado ao passado, tende também a restringir o tema ao tempo da escravidão e vinculá-lo, quase que necessariamente, à luta física. Por conseguinte, trata-se de uma entidade que não mais se faz sentido em manter.

Uma compreensão mais ampla do conceito de quilombo pode ser também baseada nos elementos do texto da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) (BRASIL, 2014b). Segundo o que apresenta esse órgão institucional, os quilombos não surgiram apenas da luta física e da fuga das propriedades, mas também de doações motivadas pela desagregação da lavoura de monocultura, da compra feita pelos próprios negros, de serviços religiosos prestados e de serviços militares. Afirmações como esta podem ser verificadas também à página do Programa Brasil Quilombola (BRASIL, 2014). Segundo este veículo, novos estudos comprovam que, além dos quilombos do tempo da escravidão, muitos outros surgiram após a Lei Áurea (1888), visto continuar para muitos a única forma de viver em liberdade. Constituir quilombo, tornou-se um imperativo, pois a referida Lei deixou os recém-libertos desprovidos de qualquer recurso (inclusive terras). Além disso, muitos negros recusaram-se a viver no mesmo espaço de pessoas que os tratavam com desprezo e desconsideravam sua cultura e visão de mundo.

Observa-se assim que mesmo não havendo provas claras de enfretamento físico, compreendido por luta de libertação, Mesquita pode ser classificado como quilombo porque sua origem é a do tempo da escravidão (inclusive antecede a 1888, fato comprovado por Registros Paroquiais, desde 1854); porque manteve sua estrutura familiar tendo negros por maioria; porque guardou uma cultura específica e por seu espaço geográfico ter sido sempre

associado aos negros, recebendo inclusive o título de Arraial dos Pretos, Mesquita dos Crioulos.

Concluindo, considerando o fim da mineração em Luziânia no final dos anos 1700 com o êxodo de famílias pioneiras de Luziânia, com a comprovação documental da continuidade das famílias tradicionais (quilombolas) em Mesquita, tendo por base a força da memória local em relação à doação das terras às três escravas, verificando também a percepção contínua de Mesquita como comunidade negra e as informações das fontes bibliográficas, pode-se afirmar a quilombicidade de Mesquita como uma realidade.

Todavia, não se pode compreender o processo de aquilombamento (inclusivo do apoderamento das terras) como algo ocorrido definitivamente de uma só vez. Pelo contrário, as ações para obter o domínio fundiário e garantir a continuidade da posse tem sido uma constante desde o fim do século XVIII, passando pelo século XIX, enfrentando as crises internas de 1943 (divisão das terras entre os herdeiros), resistindo às pressões imobiliárias ocasionadas pela fundação de Brasília e de Cidade Ocidental, chegando à situação atual (ações de legalização definitiva do Quilombo). Tem-se, portanto um longo processo de formação e consolidação quilombola, o qual encaminha-se enfim para a titulação das terras por meio de decreto presidencial.