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2.2.1. A argumentação dos defensores

Mesmo sem entrar diretamente na questão e não negar a possibilidade de respeito às propriedades individuais, os defensores da quilombidade demonstram afinidades com os aspectos coletivos das terras. Para isso recordam, com nostalgia, o tempo em que não havia cercas e restrições de acesso às diversas localidades do Quilombo. Tempo em que podiam

fazer suas roças, levar animais a pastar e usufruírem da caça, pesca e da colheita de frutos silvestres, sem que ninguém reclamasse de invasão de propriedade.

Da mesma forma, lamentam as restrições de hoje, ou seja, muitas cercas, muros, redução das estradas, a presença de pessoas estranhas à comunidade, cuja mentalidade privatista, visa tão somente as terras, em área quilombola. Desejam o retomar, ao menos em parte, a liberdade perdida; o direito de ir e vir com segurança. A exemplo, o E04, reclamando de um tipo de complacência da comunidade que não reagiu, contrariamente, a um não- quilombola que queria colocar um portão, restringindo a passagem de pessoas em área importante de travessia, diz: “Não vamos permitir colocar essa porteira porque se colocarem vai ser mais uma vez o controle. Imagine eu... ter que pedir todo dia para abrir a porteira para eu entrar. Não colocaram a porteira. Nem irão colocar”

Assim, os defensores do Quilombo reclamam o direito de encontrar os parentes para conviver e celebrar suas tradições como as folias com suas expressões típicas, como a “Catira da Raposa”, exclusiva de Mesquita. De voltarem a ter os trabalhos em mutirão como antigamente, tal como o que chamavam “treição”. Esta modalidade de mutirão consistia no seguinte: quando alguém estava impossibilitado de executar seus trabalhos da roça, a comunidade se organizava sem que o interessado soubesse e, quando ele menos esperava, logo cedo chegava todo o grupo. Os homens iam para a roça e as mulheres para a cozinha. E, à noite, a culminância - um grande baile, mas com um detalhe: só quem havia trabalhado tinha direito à dança.

Segundo as declarações do relatório antropológico do Incra (BRASIL, 2011), as terras do Mesquita, quando da chegada dos escravizados para tomar posse, não tinha dono. Qualquer um podia fazer sua roça em qualquer lugar, a escolher, pois bastava que o local estivesse desocupado. E as ações de produção, em geral, eram muito voltadas para a coletividade. Daí, os mutirões, os plantios na “meia” e a resolução coletiva dos problemas, construção dos regos d’água, por exemplo, davam o tom de uma sociedade coletivista. 2.2.2. A argumentação dos opositores

O principal motivo de negação da quilombidade, por parte dos opositores, é a concepção fundiária coletiva determinada pela legislação. Estabelece o Decreto 4887, de 2003, que a terra quilombola coletiva – propriedade da comunidade quilombola – e transmitida de geração para geração, não pode ser vendida, alienada ou hipotecada (BRASIL, 2003).

Esta postura de oposição, à posse coletiva, em detrimento da propriedade individual é constatada nas declarações do E13:

Esse pessoal que migrava do Quilombo , na verdade eles não têm documento de terra nenhuma... O Decreto 4887 fala o seguinte que aquelas pessoas onde não tinha a titulação que [fizesse] uma área coletiva...

Eu acho que o negro já sofreu demais... Dando essa área coletiva fica parecendo que o negro não tem capacidade de administrar o que é seu... Se eu não posso vender, não posso comprar, não posso alienar, fica complicado... Acho que tira assim o título de eu ter minha propriedade... Dizem “ah, você pode deixar de herança!” Mas como posso deixar de herança se eu não posso deixar para o meu filho e meu filho poder vender quando quiser. Sei lá! Estar com algum problema... Sair de um lugar para outro, não ter essa liberdade... A Constituição dá liberdade, direito de ir e vir... Não entendo fazer uma demarcação coletiva... e anular minha escritura...

Para o E13, a posse coletiva da terra quilombola representa uma humilhação para o negro, o qual passa a ser visto como incapaz de administrar. E, neste caso, representa mais um elemento de peso na sua história de opressão. Portanto, o poder de vender, comprar, transitar de um lugar para outro e dar o destino que quiser à sua propriedade, é exercer o direito à liberdade, que lhe foi sempre negada.

Junto à reclamação de observância do direito à propriedade privada, o E13 expressa fascínio pela possibilidade de comercialização das terras e entrar no mundo da modernidade: “Hoje aqui com a concentração imobiliária ... exploração hoje... a questão dos condomínios, construções... Fica um pouco complicado... Se fosse antigamente tudo bem... A gente não segura o crescimento da área imobiliária...”

Na fala do entrevistado, enfim a revelação do que realmente está em jogo. Atualmente, os quilombolas sofrem grande pressão de empresas imobiliárias, mineradoras e de outros ramos de empreendimentos para venderem suas terras. Os valores são tentadores, assim como a promessa de “desenvolvimento” do lugar, por meio de grandes empreendimentos como construção de condomínios de luxo, loteamentos, shoppings e outros. As terras do Quilombo são de grande interesse para o comércio, em geral, pois constituem propriedades bem valorizadas.

À medida que se dá a pressão dos empreendedores, por meio de oferecimento de propostas elevadas de compra, de ameaças às lideranças contrárias, do trabalho de convencimento ao aceite das benesses do “progresso”, muitos quilombolas veem, aí, a real possibilidade de melhorarem sua situação financeira. E a forma mais propícia a isso, parece ser a venda de suas terras, mesmo que isto signifique tornarem-se depois funcionários dos novos empreendedores.

Para reforçar o posicionamento contrário à determinação legal de propriedade coletiva, os opositores questionam o papel da Arequim e a postura de atuação do Incra:

Esta associação não tem eleições... ela pertence a uma única família...

O Relatório Antropológico do Incra nem terminou e encerrou o relatório. Sem nem ter feito a árvore genealógica... A gente viu [no Relatório] muitas desinformações, informações falsas sobre a comunidade... As fotos tiradas todas em preto e branco... As casas hoje em dia têm cerâmica... Hoje o pessoal sai daqui para trabalhar em Brasília. Não tem ninguém que vive da própria terra aqui...

Nas afirmações acima, o E13 questiona os atores institucionais e os elementos estruturais que dão suporte ao Quilombo. Para ele, a Associação não age de forma legal e representa apenas uma família (a dos Pereira Braga). Por outro lado, o próprio Incra não tem a postura institucional correta, pois produz o Relatório sem os devidos trâmites. E as terras, que os defensores do Quilombo querem torná-las coletivas, sequer são usadas atualmente pelos Mesquita, os quais trabalham fora (em Brasília). Assim, as declarações do E13 focam em seu ponto central de interesse, isto é, a questão fundiária. Como ninguém mais usa a terra, nem vive dela, não faz sentido torná-la coletiva e inviabilizar sua comercialização.

Não envolvendo, portanto, a dimensão fundiária, o E13 não vê problema em reconhecer o Quilombo:

Eu sou a favor [do Quilombo]. Eu sou a favor de construir em algum lugar um centro cultural dentro de uma comunidade... Um centro cultural onde possa não prejudicar a área territorial... Onde possa não transformar tudo em comum... Concentrar tudo em um lugar para mostrar a cultura...

Além de afirmar que os atuais Mesquita não mais vivem de suas terras e de dizer-se favorável a um quilombo reduzido a um centro cultural, o E13 questiona a possibilidade de existência de uma cultura quilombola em Mesquita:

Mesquita não é quilombo porque aqui ninguém luta capoeira, aqui ninguém sabe o que é candomblé, aqui é uma comunidade religiosa como o Muquém, igual a Minas Gerais, que tem uma tradição de Folia de Nossa Senhora da Abadia, Folia de Reis... A tradição nossa hoje é voltada para a questão religiosa...

O que quero hoje é o pessoal entrar em um consenso...

Dada a importância da história e da cultura vinculadas às características africanas dos negros, para que se reconheça o território quilombola, o E13 não reconhece nem um elemento que comprovaria qualquer vínculo com o passado escravo. Para ele, a cultura local reduz-se apenas às folias, típicas de vários lugares do Brasil - a tradição Mesquita é unicamente religiosa. E neste caso, “religiosa” corresponde às práticas da religião cristã, tão somente.

O Entrevistado 12 (E12) segue a mesma linha do E13, ou vice-versa. De início, a respeito da cultura em Mesquita, o E12 afirma ser ela de caráter geral, sem nada de especial ou particular. Ela é tal qual a cultura de Minas, Goiás, Brasil “A cultura em Mesquita não é de origem escrava, mas [como a cultura existente em todo Brasil].”

O E12 também responsabiliza o movimento pró-quilombo de querer impor uma realidade fictícia e recente:

Estão querendo criar um quilombo após cento e tantos anos da abolição da escravatura e eu não concordo muito sobre o que estão dizendo... Aqui não é um quilombo... Se aqui é um quilombo deveria ter sido um quilombo. O que não pode é as pessoas chegarem por desinformação “senhor (nome do entrevistado), sabe que aqui é a mesma coisa que na África, que nos quilombos da África?”

Nega-se, portanto, sem tergiversar, a historicidade de Mesquita vinculada à quilombidade e, nas palavras do E12, toda a memória oral, deve ser tida por “história da carochinha”, sem nenhum valor comprobatório. O que deve valer tão somente neste caso são as “árvores genealógicas” e as “cadeias dominiais”.

Com relação ao conceito de quilombo, o entrevistado em referência utiliza do conceito mais restrito. Segundo ele, quilombo é um lugar resultante da ação de escravizados fugidos com intenção de resistirem à escravidão. Portanto, suas categorias enquadram o conceito de quilombo nos critérios de fuga e resistência:

Quilombos: grupos de resistência à escravidão... O Decreto 4887 começa a criar dúvida nessa definição... O Decreto não tem constitucionalidade, ele é inconstitucional...

ENTREVISTADOR: Mas como você tem plena convicção de que Mesquita não é um quilombo?

ENTREVISTADO: Quilombo é um núcleo de resistência... E ali nunca foi isso. ENTREVISTADOR: Como você conceitua essa resistência? Você se refere a um enfrentamento físico?

ENTREVISTADO: ... os escravizados fugiam e se escondiam e lutavam para não voltar à escravidão e ali formavam comunidades para que pudessem se defender e não voltar para aquela situação de escravidão... Se escondiam em locais de difíceis acessos como grotas, encostas.

ENTREVISTADOR: Abdias Nascimento apresenta um conceito mais ampliado... ENTREVISTADO: ... então ele está errado...

Como foi visto acima, para Nascimento (2002), os quilombos podem ser vistos como formas associativas afastadas da civilização ou totalmente urbanas, com finalidades religiosas, recreativas, beneficentes, esportivas, culturais, escolares ou de auxílio mútuo. Afirma ainda que não se pode compreender quilombo como algo resultante de ajuntamento de escravizados fugidos, mas sim como um outro modelo de civilização.

Em consonância com o discurso dos oponentes do Quilombo, E12 acentua a necessidade de se respeitar o direito de propriedade privada. Este direito, segundo ele, é o mais importante fundamento da Constituição de 1988. Caso isso não seja respeitado, caem por terra todas as determinações constitucionais:

Se você esquece o direito de propriedade, rasga a Constituição e joga fora...

Você quer criar uma minoria étnica pré-fabricada tentando resgatar uma coisa fabricada...

Se querem montar um quilombo, se querem montar uma minoria étnica, respeitem a Constituição e vão no Artigo 68... As terras que as pessoas ocupam... É obrigação do Estado emitir-lhe o seu certificado de propriedade.

O Artigo 68 da Constituição (BRASIL, 1988) determina que aos quilombolas, que atualmente residam em suas terras, seja assegurado o direito da posse e que o Estado forneça- lhes as devidas documentações. Contudo, a determinação legal não restringe o favorecimento do Estado apenas em caso do quilombola estar ocupando a terra. Nesse sentido, algumas políticas de governo, inclusive por meio do Decreto 4887, de 2003 (BRASIL, 2003), têm ampliado o alcance dessa determinação.

Sendo assim, pessoas que por um motivo ou outro tiveram que deixar suas terras, têm a possibilidade de retornarem a elas, caso queiram. Isso é garantido pelos atuais programas de governo, executados particularmente pelo Incra.

Percebe-se também que, segundo o E12, a base da Constituição Brasileira (1988), é o direito de propriedade. Tal acepção, de cunho capitalista, deixa a entender que até mesmo as situações sociais de expressiva relevância têm que se submeterem a esse princípio. Por isto, no caso dos quilombolas que venderam suas propriedades, deve-se aplicar o referido princípio, isto é, se as terras foram vendidas, obrigatoriamente, deve-se assegurar a posse aos compradores.

O E12 ainda expressa sua opinião sobre algumas ações dos governos de cunho mais socialistas “Aí começou... a velha república, clientelista, paternalista... as graciosidades do governo... cestas básicas para todos os lados, cartões sei lá de que para todos os lados... o povo começou a viver por conta do Estado.”

Como particularidade dos dois últimos entrevistados, verifica-se profícuo conhecimento jurídico na abordagem dos problemas em foco. Considerando a afinidade do discurso, no que se refere ao conteúdo e formato dos argumentos apresentados, parece evidente que fazem parte de um grupo bem articulado. Pela qualidade da argumentação apresentada, pelo embasamento jurídico, deduz-se tratar de um grupo possuidor de egrégio

assessoramento jurídico, o que caracteriza também a posse de razoável situação financeira. Fato não registrado entre os entrevistados pró-quilombo.